Por Dantarez
O debate sobre os “identitarismos” é de fundamental importância no capitalismo atual, deve ser aprofundado se buscamos uma reconstrução da esquerda anticapitalista. Por mais que eu, no geral, compartilhe em grande parte das críticas e angústias normalmente colocadas no Passa Palavra em forma de artigos ou de comentários, acerca dos identitarismos, acredito que seja necessário esclarecermos algumas coisas dentro desse tema. Talvez sejam apenas angústias ou incapacidade de compreender da minha parte. De qualquer forma, trago aqui alguns pensamentos.
Vou citar um ou outro artigo do Passa Palavra que acho que valem a leitura e me fizeram pensar em tudo isso.
A questão dos identitarismos e do “multiculturalismo” é central no atual estágio do capitalismo, como todos sabemos. E o ponto fundamental é justamente a massiva evolução daquilo que se chama de “esquerda” numa defesa fragmentada de pautas cada vez mais específicas. Quanto a isso, talvez valha a pena dar uma olhada nesta série.
Não estudei a pós-modernidade mais do que superficialmente, não sou especialista nas distinções de visões de mundo que se confrontam entre um foco na subjetividade do ser, a separação (ou sobreposição) de uma perspectiva centrada nas microrrelações e não nas relações estruturais, apesar de ter noção de pelo menos algumas das contradições que se geram das implicações desse pensamento. A “classe trabalhadora” se constitui de pessoas que são atravessadas por diversas relações sociais estruturais de opressão, mas compartilham todas da opressão das condições materiais de produção (e consequentemente, isso afeta toda sua existência em todos os aspectos e potencialidades), por parte dos capitalistas e, portanto, estão ligadas por um elo universal. Superficialmente quero dizer com isso, e talvez já me posicionando sobre o assunto, que considerar as individualidades e as diversas opressões é importante e é necessário, mas, dentro de um projeto igualitário de mundo, perder o norte, a referência, talvez seja o fim de toda a chance de mudança.
Assumimos que existem essas estruturas de opressão e marginalização. O machismo, o racismo, a homofobia, etc. Mas de que forma reconhecemos essas opressões? Existem aqueles que defendam mesmo essas características da submissão da mulher ou do negro como sendo bases do capitalismo no próprio processo de acumulação primitiva, colocando-as em igualdade com a opressão através do trabalho exercida pelo capital. Ora, cabe um debate sobre esse tema, claro, mas Marx não escreveu nenhuma bíblia, então acredito que, a princípio, elucidar outras formas de opressão tenha apenas a somar com o debate por uma sociedade de iguais. Isso tem a ver com a coisa da “centralidade” do trabalho na visão marxista do mundo e de suas condições de existência e de mudança. O capital se apropria de qualquer forma de exploração que puder ser útil e a classe capitalista, que também se forma por indivíduos, pessoas reais, verificáveis, se constituiu historicamente como uma classe predominantemente branca e masculina, por isso, também, atravessada pelas questões de raça, gênero, etc; e as fazem reproduzir no mundo do trabalho. Daqui começamos um mundo de problemas.
Quando falamos em “movimentos identitários”, a que estamos a nos referir? Quais são, na prática, esses movimentos? Qual sua abrangência, capacidade de ação, articulação? Atuam majoritariamente segundo a forma que criticamos? Ou criticamos um grupo específico de “identitários”? Por que o “movimento trabalhador” não é identitário se os trabalhadores também são indivíduos negros, brancos, homens mulheres, etc, atravessados pelos seus próprios preconceitos? Se partimos de uma construção de ideal que acentua a diferença, ao invés de acentuar a construção de um mundo de iguais, isso sem dúvida se torna problemático, mas a pauta inicial não deixa de ser de relevância, como algumas pessoas já disseram aqui em comentários e artigos.
Ora, o que sabemos dos movimentos chamados identitários concretamente?
O que são vai além do que aparece na mídia e tem recebido cada vez mais apoio do capital? É evidente que a classe dominante vai continuar, em certa medida, apoiando esses movimentos que parecem querer criar um “capitalismo fofo” (o termo não é meu).
Quando um movimento identitário, por mais que contraditório, se articula para reivindicar salários melhores para mulheres de certa categoria, por exemplo, ou para as questões relativas à saúde da mulher, ou sobre como os negros saem atrás na própria busca por um emprego por conta de sua cor, enfim, se esses movimentos, apesar de suas contradições, conseguem promover avanços em objetivos específicos e, muitas vezes, imediatos, como criticá-los ou dizer que sua atuação cria uma “fragmentação” na “classe trabalhadora” quando a própria noção de luta da classe trabalhadora parece vaga?
Falamos da “classe trabalhadora” como se fosse um todo coeso e não um conjunto caótico e fragmentado, e que teve suas lutas também burocratizadas ou cooptadas pelo capital, assim como suas práticas, ideologias, formas de atuar ou mesmo de se expressar, ao longo da história. Não só pela repressão violenta, que se faz presente geralmente em maior grau quanto maior for o grau de risco e crítica ao próprio capital, mas também pela contraposição de interesses imediatos ou particulares e os ideais de longo prazo.
João Bernardo escreveu que “O capitalismo goza hoje de uma indisputada hegemonia.”
Sem dúvida alguma, não há nada dentro do que se pode se chamar “esquerda” que possa se apresentar como alternativa “viável”. E isso é importante mesmo no campo dos debates, pois as experiências que mostraram o “socialismo da miséria” vão continuar sempre sendo a justificativa dos acólitos do capital… para onde correr? Nesse sentido as críticas à forma como as lutas e as pautas foram cooptadas pelo capital ao passo que foram também individualizadas nas formas de identidades são extremamente pertinentes. Como haver coesão da classe trabalhadora num ambiente cada vez mais fraturado internamente (fratura que se dá no mundo do trabalho, desde o toyotismo e da terceirização massiva bem como nos campos sociais, culturais, na própria subjetividade da classe trabalhadora através das identidades, e por aí vai) enquanto o capital se globaliza livremente?
Mas quando falamos em “classe trabalhadora”, de quê estamos falando exatamente?
É claro que entendemos a classe na sua totalidade mas em termos práticos, o que é a “classe trabalhadora”? Onde ela atua? Como atua?
Como camaradas já apontaram aqui, como combater o identitarismo e o nacionalismo sem fazer pouco caso (ou sem deixar esquecidas) as opressões experimentadas pelos trabalhadores mulheres, negros, LGBTs…?
Apesar das críticas, não negamos a existência de estruturas sociais mesmo pré-capitalistas que são formas de opressão. A questão é como recuperar essas lutas para que assumam novamente o projeto igualitário.
Se não há, atualmente, uma teoria social revolucionária, como diz João Bernardo, não que esteja propondo pensarmos nisso aqui, mas se falamos de uma reconstrução da esquerda, ela passa não só pela crítica mas também pelo tratamento das questões identitárias.
Não queremos ser propositivos no debate, segundo afirmam alguns, mas será mesmo? É fundamental apontar as contradições e os efeitos dos movimentos, mas se a “esquerda marxista” ou “anticapitalista” não se propõe a articular práticas alternativas, talvez não possa contribuir para a reestruturação de si própria enquanto parte da classe trabalhadora.
Deve-se sempre ter em vista os objetivos de longo prazo, mas não necessariamente abandonar os objetivos imediatos, e se estes podem ser atendidos pelas ações dos movimentos identitários, em parte, talvez, na forma de políticas públicas ou mesmo que na mera construção de espaços que deem mais relevância às questões de identidade, isso deve ser considerado racionalmente.
Resumidamente, o que fazem os marxistas? Como os marxistas articulam as questões de identidade, sem ignorá-las, colocando-as dentro do anticapitalismo? Ou fazemos apenas a crítica pela crítica? Até que ponto essa crítica é útil e não só agressiva… enfim, movimentos dentro da esquerda que se criticam mas não têm capacidade de se unir jamais vão abalar um sistema tão forte e global.
Claro que pensar essas questões mais amplas e de longo prazo envolvem a própria concepção de capitalismo e seu fim. A chamada “esquerda anticapitalista” existe como um conjunto? Sequer há coesão em qualquer partícula da “esquerda”? Pessoas que apoiam movimentos não revolucionários podem ter em vista apenas resultados imediatos, deixando de lado os objetivos verdadeiramente transformadores do longo prazo, mas que crítica cabe a isso? Falar sobre o capitalismo não vai levá-lo a seu fim, e como há de vir esse fim? Vamos apoiar formas de convivência, produção, etc, entre pessoas, que tentam se propor a uma fuga do sistema do capital? Divergir acerca de haver ou não uma iniciativa revolucionária no MST e negar-lhe qualquer apoio são coisas que caminham juntas? Que tipo de movimento vai ser considerado “bom o bastante”, “marxista o bastante”?
Não que eu ache que essa discussão caiba aqui em grande profundidade, mas acredito que as divergências sobre as novas faces da “esquerda” e etc. têm muito a ver com a forma de ver o fim do capitalismo. Pragmatismo, teorização… Quer-se uma revolução da classe trabalhadora o quanto antes? Quer-se que o capitalismo desenvolva suas capacidades produtivas e leve a sociedade humana aos conhecimentos tecnológicos capazes de “livrá-la” da necessidade do trabalho e, se sim, como ajudar nesse tal “desenvolvimento do capitalismo”…?
Enfim, essas são algumas angústias que me acompanham e que não serão sanadas, mas que podem contribuir com alguma conversa, talvez.
O que me incomoda geralmente é ver a esquerda se atacando, em uma situação que serve apenas para definir se um está mais certo que outro, segundo o teórico tal, enquanto o capital continua sua tão solitária hegemonia.
As imagens que ilustram o texto são dos estudos de Pablo Picasso para Guernica.
“O axé entrou na festa, se perdeu no fashionismo e perdeu o discurso. Esqueceu que nasceu para funções sociais. Tem que parar com essa ideia equivocada de rainhas e reis. Não somos reis de nada, somos serviçais” (Carlinhos Brown, Folha de São Paulo de hoje 02/03/2019)
A questão do “identitarismo” é muito antiga e muito ampla. Mas acredito que o motivo pelo qual falamos sobre isso no dia de hoje se dá, principalmente, por uma nova onda de influência cultural estadunidense, resultado da interconexão quase global dos meios de comunicação. Já não são apenas os filmes e séries estadunidenses que consumimos, as ideias e os debates nos termos de lá vêm ocupando cada vez mais espaço aqui no sul.
Um dos indícios disso se dá inclusive na mais recente onda de críticas ao identitarismo, fruto da derrota de Hillary Clinton. Setores da intelectualidade de esquerda estadunidense chamaram a atenção para a polarização que se estabeleceu, entre políticas identitárias (de esquerda) e políticas de classe trabalhadora (direita). Vale lembrar que na Europa há também movimentos identitários de direita, deixando um vazio grande para as políticas classistas de esquerda no cenário global (poderá Jeremy Corbyn assumir esse papel no Reino Unido?).
As políticas identitárias sofrem das mesmas fraquezas que as políticas classistas, e o corporativismo é a pior delas. Isto não apenas porque as lutas corporativas tendem a criar lideranças “produtivistas”, que são avaliadas por suas bases de acordo à capacidade de conseguir melhores resultados em comparação às demais corporações, mas também por fortalecer o fracionamento. Um dos nossos principais modelos regionais e históricos disso é o “peronismo de Perón”: não foi suficiente ser um movimento extremamente nacionalista, foi necessário afirmar que “para un peronista no hay nada mejor que otro peronista”. Assim, qualquer crítica a uma política levada adiante por um representante de um tal setor facilmente se interpreta como um ataque a todo o setor. Assim, uma crítica ao sindicado dos metalúrgicos se torna um ataque aos metalúrgicos, a crítica ao sionismo se torna antissemitismo, a crítica a uma política feminista se torna ataque ao feminismo, crítica de uma política do movimento negro se torna racismo, etc.
Ainda que existam aquelas pessoas que pensam e sentem como se o feminismo tivesse sido criado ontem, todas aquelas questões hoje tratadas pelos “movimentos identitários” são muito antigas e o século XX foi fértil na criação das mais diversas correntes dentro de cada uma das temáticas em questão. Estas diferentes correntes, com suas produções teóricas e suas práticas militantes, são relegadas à latrina do esquecimento ou são tratadas como relíquias obsoletas (que nem sequer devem ser debatidas) pelas novas correntes difundidas pela internet. Não é casual que o novo feminismo use tantas expressões em inglês (https://www.geledes.org.br/glossario-de-termos-do-feminismo/), não é casual que setores do movimento negro brasileiro saibam explicar perfeitamente o que é o “black face” na cultura estadunidense mas desconheçam práticas culturais afro-brasileira (https://www.opovo.com.br/jornal/vidaearte/2017/02/rosto-pintado-de-preto-e-sempre-blackface.html).
Carlinhos Brown pode não ser anticapitalista, mas mostra que a crítica a certas políticas identitárias está presente nas próprias bases e setores relacionados às mesmas políticas identitárias. O nosso papel como militantes de esquerda anticapitalista não é necessariamente fazer a crítica de tudo o que não nos agrada; as vezes pode ser mais importante buscar quem está fazendo críticas interessantes, e nos aproximar.
Indo na esteira do esquerdo-amidalite, sinto que é necessário haver uma distinção entre política identitária e lutas que reivindiquem a identidade. Platão já disse que se falamos de um conceito cujo significado não sabemos , falamos sobre p%#$ nenhuma.
Dito isto, alguns problemas que se podem ocorrer quando entendemos que luta identitária é tanto o sentido positivo, quanto o negativo:
1) que, ao afirmar que devemos nos aproximar das lutas identitárias, para muitos significa que escutar o lado do oprimido significa abrir mão dos princípios de esquerda e de racionalidade. Essa parece a interpretação dominante, exemplo? Wagner Moura dizendo acertivamente que a esquerda nunca tratou da questão racial (e aí percebemos que parte da esquerda também tem uma relação amarga com a história).
2) que, se o identitarismo é uma merda, devemos interpretar qualquer reivindicação justa pela identidade é “pós-modernismo”, “liberalismo”, e por aí vai. Vemos também essa prática sendo efeito de uma confusão conceital (não somente, mas também). Nesse sentido, Mujeres Libres, Panteras Negras, Zapatistas e por aí vai são pós-modernos que sairam dos ralos putridos dos CAs mais controlados pelo senso comum universitário pseudo-progressista.
“TEM QUE ACABAR COM O TERMO IDENTITARISMO!”
Não, acho que ele merece ser usado pro sentido negativo, e passemos a usar um outro termo que faça claro ao respeitável público que as lutas pela identidade possuem potencial de aderir a um programa classista.
2)
A esquerda erra quando afirma que seu fracasso está ligado a outros grupos de esquerda. “Ah! Mas isso é culpa do identitarismo!” ou “Isso é culpa das alianças que o PT fez no passado!” ou “O PSOL é pequeno burguês”. Quando fazemos isso ignoramos o peso da materialidade econômica dos meios de comunicação, que a direita utiliza em escala industrial e a esquerda reproduz em escala artesanal; ignoramos as nuances da geopolítica internacional, onde informação e armas ditam os caminhos das nações e das pessoas dessas nações.
Creio que todos comentaram coisas relevantes, especialmente o reconhecimento de que a “formação” virtual de muitos adeptos ao identitarismo promovido, pelo sistema ou por militâncias, se dá pelas formas da internet e suas redes. Logo, percebe-se a desconexão desses formandos de seu lugar e história em razão de um imperialismo cultural; não somente o black face, mas todos os termos em inglês amplamente utilizados aqui como léxico feminista.
O texto, contudo, me parece que demonstra uma leitura hesitante de Marx; não creio que a luta de classes ou a classe trabalhadora seja vaga ou caótica, na verdade, ela assim se torna quando delineamos grupos e categorias que individualizariam trabalhadores. Aí sim, cria-se uma verdadeira aparência plural que esconde o que os une; sua condição material. Ao menos é o que entendo quando leio: “relações sociais estruturais de opressão, mas compartilham todas da opressão das condições materiais de produção”. Entendo haver aí um equívoco.
Mas partilho da idéia do autor acerca da validade da luta contra determinadas opressões. O problema, na minha visão, é que a condição atual destas trata-se somente em conquistar a “digna exploração”; se essas opressões nascem da luta de classes ou não, creio que não faça diferença para o futuro, uma vez que sem resolver a questão das classes, a luta identitária nada mais fará que singularizar categorias de miseráveis e de exploradores.
Obama liberou gays e transsexuais no exército americano. Esse tipo de coisa demonstra, claramente, a calhordice do que significa a “conquista” de certos “direitos” por parte de grupos marginalizados. Sem a reformulação social, a inserção dos marginalizados apenas permitirá o oprimido dos oprimidos sonhar em ser opressor.
” “E aí, deputado, o senhor vai ser a favor de a trabalhadora rural trabalhar 40 anos, com 20 anos de contribuição contínuos, que nem trabalhador urbano consegue?” O Leônidas vai dizer: “Não, sou contra essa aberração”. O Moses que, teoricamente, é aliado de Bolsonaro, vai dizer: “Estou indeciso”. O que me zanga é a burrice de certa esquerda, que ao invés de trazer para o povo essa dinâmica, fica se distraindo com causas identitárias. ” (Ciro Gomes)
A discussão sobre identitarismo parte de uma visão crítica ao fenômeno considerado pós-moderno (lembrando que os próprios autores nunca se auto-definiram dessa forma), considerando que – ao assumir novos atravessamentos no âmbito das opressões – se retirou a centralidade da questão do trabalho. Para rebater esses argumentos, há um livro publicado recentemente que remete ao período de acumulação primitiva e aponta onde a opressão de gênero e de raça cumpriu papel para a expansão do capital: Federici, Silvia. O Calibã e A Bruxa: Mulheres, Corpo e Acumulação Primitiva. A autora considera que as mulheres exercem papel central ao serem as criadoras e reprodutoras da principal mercadoria do capital – a força de trabalho, e que seu papel doméstico foi essencial para manter o sistema operando. Assim como foi essencial o fornecimento de café e outros suprimentos que advinham dos mercados escravocratas dos países periféricos. Fatores não aprofundados na obra de Marx.
Outro autor que também agrega ao ponto de vista é Achille Mbembe a partir da visão da Necropolítica que, ao mostrar que as relações instituídas de poder determinam quem vive e quem morre, pontua a centralidade deste debate para a manutenção da lógica capitalista.
Sempre aponto que na discussão sobre identitarismo há uma distinção entre o fenômeno concreto da exclusão e o fenômeno da reação (os movimentos sociais). Ao criticar a forma de atuação dos movimentos identitários, muitas vezes parte da esquerda parece negar inclusive a importância de discutirmos as opressões de gênero, raça e etnia. Sendo que o capitalismo é por si um sistema masculino e branco. E que, segundo esses autores citados (e também outros), essas outras formas de opressão são basilares para a manutenção do sistema tal e qual a opressão direta do trabalho.
Pelo meu ponto de vista, a contradição está, sem dúvida, na perspectiva liberalizante do debate. Em 2018, apenas 4.8% dos presidentes de empresas em todo o mundo eram mulheres. No Brasil não há nenhum indígena presidente de empresa. As mulheres negras representam 25,3% dos brasileiros, ou seja, um quarto do Brasil é formado por mulheres negras, mas elas não estão em nenhum espaço de poder, elas sequer estão no mercado de trabalho. Como vamos falar em luta de classe se essa parcela da população sequer consegue emprego para adquirir consciência enquanto classe trabalhadora.
Marielle Franco dizia: se a revolução não for negra e feminina ela não será. E precisamos pensar nesse ponto. Os movimentos da esquerda revolucionária sempre foram articulados em sua maioria por homens brancos. O movimento contra-hegemônico sempre foi eurocêntrico. Quando falamos em classe trabalhadora, estamos falando de quem? Acredito que é nesse sentido que o autor do texto comenta. Sabemos pelo ponto de vista marxista qual o entendimento de classe trabalhadora, mas na materialidade concreta cotidiana, se não levamos em consideração os atravessamentos das demais opressões (que muitas vezes são entendidas por teóricos como estando no “âmbito da cultura”), então vamos seguir com a mentalidade do homem branco, mesmo quando o movimento é contra-hegemônico.
O que não nos impede de apontar a fragilidade destas pautas sociais ao terem grande apelo ao capital. Essa reflexão é dialética: se criticamos o fato de que os movimentos identitários clamam uma retórica liberal ao reivindicarem o direito ao trabalho pelos grupos socialmente excluídos, então o contrário disso é a manutenção de um sistema onde a mulher negra continua no papel subalterno de doméstica – por exemplo. Ou seja, uma esquerda que crítica a inserção no mundo do trabalho pelos grupos minorizados está defendendo a manutenção dos homens brancos nos espaços de poder. Precisamos assumir a contradição deste debate, que no fundo não deveria ver o outro como inimigo, mas sim entender que é justamente a opressão do capital que mina todas as possibilidades de libertação e nos coloca nestes impasses que nos paralisam enquanto classe.
Caro(a), discordo veementemente de que a contradição central é a inclusão de minorias de “espaços de poder”. Por que?
Desde já adianto que o poder não é o problema a ser erradicado.
Sabemos muito bem que, na gramática atual, quando se fala de inclusão de minorias em espaços de poder, não estamos falando de que hajam construção lado a lado com as minorias em espaços com tendência de construção do poder popular: movimentos sociais, associações de bairros, sindicatos, representações estudantis, etc.
Pois bem, sabemos que:
1) os espaços de poder em questão são restritos, não cabem 1/4 da população.
2) quando um negro(a) conquista esse espaço, o poder é garantido para esse individuo, não para o conjunto da população pertencente à esta identidade.
3) sabemos muito bem que os espaços de poderes conforma subjetividades, e raramente serão essas pessoas que optarão em utilizar do seu tempo livre para investir em uma alternativa coletiva para a barbárie.
Sempre quando estamos nesse tipo de debate, acho que sempre podemos pensar no que foram os Panteras Negras, os zapatistas, os levantes latinoamericanos na 2a decada do século XX (Cordobazzo, Tucumanazzo, etc) para pensarmos nas contradicoes fundamentais e como que tipo de poder queremos (individual reprodutor da dominação x coletivo produtor de uma uma nova sociedade)
Respeitável público com orgulho apresento o espetáculo em cartaz desde abril de mil e quinhentos,
Acredito que a questão conceitual acerca do termo é realmente importante, talvez o grande problema esteja na forma de construir a crítica, para evitar que a crítica a um tipo de movimento no campo das opressões sexistas, racistas, etc se confunda com uma crítica ao todo, como disse o Folião com amidalite
Talvez definindo o conceito explicitamente ao realizar uma crítica seja mais produtivo por parte da esquerda.
Tendo dito isso, me parece que também é importante, se pensamos uma ”reconstrução”, tratar desses”princípios” de esquerda e de racionalidade, e da relação entre eles. E acredito que o Folião com amidalite tenha tocado num ponto que é crucial no debate e comentarei mais abaixo.
Como disseram vários camaradas, o peso dos meios de comunicação e a propagação massiva de determinadas formas ideológicas deve ser levado em conta já que enaltece uma visão sobre os movimentos sociais em questão que vai contra os ideais de uma sociedade sem classes (sem opressões de nenhum tipo). Esse é um meio de propagar a ideologia dominante ao mesmo tempo em que pode subverter movimentos sociais genuínos, rezumindo-os e ”liberalizando-os”. Pensando por essa perspectiva talvez seja ainda mais necessária a correta definição dos termos no que diz respeito à produção e propagação de conhecimento por parte da esquerda.
O que entendo como um dos pontos mais importantes a serem aprofundados no assunto e que aparecer aqui na nossa conversa é justamente quando se fala que as políticas ”identitárias” sofrem o mesmo problema das classistas – perdem-se em meio a objetivos imediatos, assumem uma mentalidade produtivista nos resultados de curto prazo e, paulatinamente, esvaziam tudo o que poderiam ter de verdadeiramente transformadores. Ora, os motivos para isso são, em enorme medida, vindos de fora, seja pela repressão bruta ou necessidades de subsistência, de crédito, de melhorias nas condições de vida imediatas, etc.
Julio,
É nesse aspecto que se dá a gritante contradição no tema. Lendo seu comentário percebo que não fui muito claro ao comentar sobre a classe trabalhadora. Mas acredito que o comentário de Polêmica com glitter possa ter ajudado: a classe trabalhadora enquanto definida em Marx está muito bem estabelecida, e comprovada na realidade material. Entretanto, essa classe é composta por indivíduos de diferentes níveis de renda e de condições materiais, com diferentes objetivos imediatos (um salário melhor, horas a menos de trabalho, seja o que for) ou corporativistas; por machistas e racistas e tudo isso que sabemos e chamamos de ”atravessamentos”. A contradição está, a meu ver, justamente na vida cotidiana: em haver movimentos que atuam contra o ideal de fim das opressões capazes de obter ”conquistas” imediatas e não estruturais mas que podem ser importantes para os grupos específicos na forma de direitos ou políticas públicas, por exemplo.
Evidentemente, do ponto de vista Marxista, podemos negar tal contradição. Considerando que essas ”conquistas” meramente passam de reestruturações dentro da ordem, e realmente é o que são. Entretanto, será que devemos assumir que ”tudo que não é eminentemente anticapitalista não presta”, ou posições similares? Como fazer a crítica a algo que faz diferença na vida de trabalhadores sem parecer desprezar a importância dessas ”conquistas dentro da ordem”. Devemos fazer a mesma crítica a um movimento da classe trabalhadora que lute por melhores salários (para o seu setor), e não pelo fim do sistema de salários?
Acredito que essa linha de raciocínio leve à questão fundamental quanto ao método. A própria forma de atuar, por parte da esquerda anticapitalista.
Deve-se pensar apenas no longo prazo e no ideal revolucionário rejeitar tudo que não tenha esse potencial ou proposta? Deve-se apoiar movimentos ”pragmáticos”, talvez haja termo melhor, ou que busque conquistas mais ”práticas”, já que podem afetar para melhor a vida material das fração da classe trabalhadora envolvida num prazo visível? São questões que não têm resposta. Apesar disso me parece importante que a esquerda seja capaz de dialogar com as massas em geral.
Cabe lembrar que a ”classe trabalhadora” só pode agir para a transformação e fim do modo capitalista se reconhecer (identificar) a si mesma como tal. Adquirir consciência de classe é assumir uma identidade, mas uma que é comum a todos os demais pertencentes a ela, que são pessoas reais (daí a importância de se preocupar com essas mesmas pessoas reais e seus ”objetivos imediatos”, condição de vida e etc). Talvez seja mais produtivo para a esquerda anticapitalista no, sentido de tentar promover a consciência de classe, dialogar com esse contexto já estabelecido dos ”identitarismos”, ou não, depende do que se considera o melhor ”método”. O que me parece ser verdadeiro, de qualquer forma, é que as fragmentações internas e o distanciamento entre a esquerda e as massas não são coisas lá muito produtivas.
Por último, preciso me aprofundar mais no tema, mas também não concordo que o sexismo, racismo, etc, foram condição de existência primária do capitalismo, apesar de serem condições que o compõe e o atravessam. O caráter material das relações desse sistema é influenciado pelas relações sociais que dele mesmo derivam mas se sobrepõe a elas. Apesar disso, como escrevi, esse tipo de atravessamento faz parte da realidade cotidiana da classe trabalhadora e também nos leva ao ponto de reflexão sobre método.
Do ponto de vista da teoria econômica e de uma maneira mais geral sobre o sistema capitalista, devem haver coisas que poderiam complementar Marx sobre as questões de sexo e raça, mas não acho que sei apontá-las.
O artigo é muito bem escrito e eficazmente articulado, contudo o autor não especifica historicamente e conceitualmente o identitarismo, além de cometer um erro crasso: fala de classe trabalhadora, expressão abstrata para o marxismo e, sobretudo, para Marx e Engels que tratam da classe operária. Segundo, de fato o pensamento de Marx não é bíblico, mas por detrás dele tem uma lógica metodológica em que a ideologia assume papel nuclear, portanto, os movimentos identitários não percebem a diversidade cultural e muito menos o culturalismo como movimento das diversidades de expressões culturais, mas os anula com chavões do tipo “lugar de fala”, “apropriação cultural” “questão de gênero” etc. O identitarismo é uma ideologia porque visa separar os operários pretos dos operários brancos, assim como almejam inimizar as relações entre operárias e operários com esse papo de macho opressor. A maioria dos operários são feministas, e as opressões mais contundentes que mulheres, pretos e gays sofrem não se encontram no mundo operário, mas se localizam nas classes médias e na burguesia. Veja, onde moram os travestis pobres? Onde moram os cabelereiros gays pobres? Onde moram os operários pretos, brancos, homens e mulheres pobres? Sim, o movimento identitário é pequeno burguês, próprio do universo de classe média que tenta universalizar suas angústias particulares, por isso defendem a descriminalização das drogas.