Por Grouxo Marxista

No início de fevereiro repercutiu — pouco, pois não parece muita coisa a princípio  — a notícia de um dossiê anônimo sobre estudantes de esquerda, escrito e coletado por colegas de universidade, que foi enviado por um Procurador do Ministério Público Federal ao reitor da UNIRIO “pedindo esclarecimento e providências”.

Pois bem, qual a novidade?

Foi o que me perguntei também. Achei que era mais uma das várias denúncias protocoladas por estudantes de direita contra estudantes de esquerda, que começaram a pipocar desde as ocupações de 2016 contra a PEC do Fim do Mundo, mas aí que percebi algo um pouco diferente. Na verdade duas coisas.

Em primeiro lugar, tratava-se de um procurador da república intimando uma reitoria em função dessas denúncias. Ao fazer isso, o Ministério Público legitimou a ‘investigação cidadã’ (ou miliciana) desse(s) anônimo(s) que obtiveram informações investigando as redes sociais, os perfis e grupos de Whatsapp e as atividades dos “suspeitos”. Nesse sentido, é um movimento de estímulo estatal a essas iniciativas que pode fazer esse tipo de ação se tornar uma experiência a ser replicada em outros lugares. A ação se articula entre a ordem pública, reconhecida, ordeira e um poder que quer se constituir paralelo, anônimo e por isso mesmo incontrolável. Um caso similar aconteceu quando Bolsonaro, já eleito, citou nominalmente professores como “doutrinadores” ou com as professoras que o Escola Sem Partido elege como bruxas da vez. O objetivo da “ordem”, da convocatória da ordem, é desencadear um processo “incontrolável” que aniquile aqueles sujeitos azarados e assuste os demais.

Segundo, esse tipo de denúncia na época das ocupações era voltado contra as autoridades (os reitores ou administradores “simpáticos”) que supostamente não estavam reprimindo como deveriam o movimento. Não se voltava contra os estudantes, não a princípio, e não me recordo de nenhuma denúncia ou investigação personalizada dessa forma, com o perfil de cada “suspeito”. É possível ver um exemplo nessa notícia, em que é a União que é alvo do inquérito, não manifestantes individuais.

A denúncia formal, via de regra, é apenas um passo que precede o linchamento moral via redes sociais que essas pessoas certamente sofrerão. O respaldo institucional de terem sido encaminhadas por um procurador, por algum departamento burocrático da universidade ou pela imprensa certamente será um fator importante para dar confiança a esses rapazes e moças “preocupados e indignados” de esquerda ou de direita. O movimento aparentemente “autônomo e independente” apenas reforça a autoridade e o poder daqueles que de fato sancionam as exclusões, aplicam as penas, decidem os recursos a serem aplicados. É assim que se faz uma revolta dentro da ordem. E os resultados desse tipo de revolta são conhecidos para quem conhece a história dos fascismos.

Sem dúvida os movimentos de direita fazem os perfis dos principais militantes de oposição nas suas localidades, mas costumeiramente deixaram o trabalho policialesco para a polícia mesmo ou para as reitorias nos processos de perseguição que costumam suceder aos grandes movimentos. Vemos aqui, então, que está acontecendo uma mudança de método e dos agentes. Se soma aos processos burocráticos e ordeiros a ação “autônoma” dos militantes políticos.

Estranha convergência

A ironia é que esse método de luta, nas universidades públicas federais, não começou com a direita. Começou com a esquerda. Vou dar um exemplo ilustrativo: não é um ataque apenas contra esse movimento, não estou entrando no mérito da pauta, mas na prática do movimento ao lutar por ela.

A tática da “investigação cidadã” é exatamente a mesma que é utilizada nos casos dos caçadores de falsos cotistas com quem tomou contato. Os caçadores (ou investigadores) olham as listas de aprovados, procuram nas redes sociais o nome da pessoa, olham a foto, “verificam” e fazem a denúncia — primeiro nas vias legais, geralmente na ouvidoria, depois partem para o escracho e perseguição pública (que chamam de exposição pública) a partir das redes sociais, das mídias com o apoio de jornalistas bem intencionados (mais de 49 denúncias desse tipo ocorreram na UFG recentemente) e dos “vazamentos” de documentos oficiais de denúncias que até foram recusadas.

No caso descrito no começo, praticado por essa nova espécie de milícia bolsonarista, são os procuradores, juízes, promotores, jornalistas e professores ‘coxinhas’ que legitimam e dão guarida ao trabalho paralelo de polícia, investigador e posterior linchamento. No caso dos caçadores de falsos cotistas o espaço primário de atuação são os departamentos e coordenações vinculados com os coletivos de direitos afirmativos que fazem o papel de legitimar, dar guarida e estimular essa prática. Mas a esquerda também tem seus promotores e jornalistas bem intencionados que reforçam e permitem o sucesso de alguns processos de expulsão e exposição pública dos bodes expiatórios da vez. Da mesma forma, aos processos formais correm paralelamente e de forma complementar o linchamento moral, as ameaças, a perda de emprego e por aí vai.

Talvez essa estranha convergência — ou, quem sabe, seja o aprendizado pela observação — de práticas seja mais uma evidência de que se tratam de polos complementares, que se alimentam entre si.

Um caso parecido é o do escracho. A prática de fazer ataques públicos contra indivíduos que não eram autoridades mas que personalizariam questões estruturais mais amplas ganhou mais visibilidade recente com os escrachos contra os militares responsáveis que não foram responsabilizados por seus crimes durante a ditadura civil-militar. Logo, essa tática transitou para atacar figuras que falavam coisas escandalosas em público, casos de machismo, professores assediadores… e hoje se afigura como uma das principais táticas da direita contra os jornalistas, militantes e professores de esquerda. A tática de ficar filmando as pessoas falando besteiras na manifestação para desmoralizar também começou com a esquerda e se tornou uma das táticas principais do MBL e outras milícias da direita… e por aí vai. Os exemplos são numerosos.

Conclusão

Com isso não quero dizer que é a esquerda que alimenta a direita, que a nossa radicalização alimenta a deles. Pelo contrário. A tática de individualizar, perseguir, policiar, linchar necessariamente cria um ambiente em que a emancipação, o debate racional e o protagonismo coletivo passam longe. Prevalece, então, o senso comum, o punitivismo. Por isso, essas táticas e esses métodos servem tão bem à direita e serviam tão bem às esquerdas inseridas nas burocracias formais ou informais.

Se agora pretendemos nos defender das ações milicianas da direita, que dão sinais de se multiplicarem neste ano, precisamos deslegitimá-las. Só teremos sucesso em deslegitimar esses ataques fazendo uma demarcação bem clara contra as práticas policialescas e linchadoras que rondam também o nosso campo político. Isso significa também se separar dos nossos departamentos, promotores e juízes que estimulam essa práticas. Sem esse ponto de partida, fica difícil esperar algo mais do que derrotas com preço altíssimo para aqueles indivíduos desafortunados que forem os alvos das ações dos milicianos neste ano e nos próximos.

Mas não basta ficar no ponto de partida. Ficar, em sua consciência, contra o escracho, os linchamentos, as perseguições, as humilhações públicas. É preciso levantar a voz individualmente, debater esse problema no coletivo, não se deixar intimidar, não deixar sozinho os azarados que foram eleitos para bodes expiatórios. Essas coisas tem mais efeito do que imaginamos e criam um laço capaz de diminuir em muito o estrago desse tipo de ataque.

Em resumo. Precisamos reconhecer que nos movimentos que lutam por pautas que nos são caras existem práticas de perseguição, de linchamento, de humilhação pública. Que isso não é apenas um excesso, tendo se convertido em método. E que essas práticas não tem nada a ver com a emancipação social que muitos de nós almejamos. Deixemos o linchamento e a perseguição dos indivíduos para os conservadores. E comecemos a criar um ambiente em que esse tipo de situação seja inaceitável para qualquer um, por princípio.

As imagens que ilustram o artigo são pinturas de Hendrick Avercamp, exceção a última imagem que é de Marco Dente.

3 COMENTÁRIOS

  1. Excelente reflexão. É uma loucura ler isso em abril de 2019. Não?!?

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here