A elite intelectual: a realidade do advogado associado dentro do maior escritório de advocacia do país

Paquita Self

Muitos talvez não saibam, mas os advogados, pelo menos uma grande parte deles, não são contratados pelo regime da CLT. Nós somos contratados pelo regime de “associado”.

O associado é um regime que consta em provimentos e normas da OAB. Em termos bem gerais, é falado que o advogado associado “manterá sua autonomia profissional, não haverá subordinação ou controle de jornada”. Em tese, deveríamos trabalhar cerca de 4 horas por dia, e em poucos dias durante a semana.

A elite intelectual: a realidade do advogado associado dentro do maior escritório de advocacia do país

Isto não é o que acontece. Temos chefes, temos jornada de trabalho de 8 horas diárias; mas como não somos registrados, nós trabalhamos também em feriados e em fins de semana. Nossas férias, quando dão, são de apenas 1 semana ou, no máximo, de 15 dias, em um período pré-estipulado por eles, onde sequer temos direito de opinar.

Os grandes escritórios contratam advogados recém-formados apenas para explorá-los, se valendo da falta de vínculo e da passividade da OAB. Trabalhei por muito tempo no maior escritório de advocacia do Brasil, em número de advogados associados e filiais. Era um pesadelo em níveis que ninguém pode imaginar.

Quero primeiro falar do escritório como um todo. Ele tem cerca de quadro andares numa das regiões mais ricas da cidade de São Paulo. O andar mais baixo é considerado o andar “mais pobre”, isto é, na minha época, nós éramos tratados como trabalhadores de segunda classe. Não podíamos subir nos andares superiores, onde os outros advogados ficavam, pois talvez não “saberíamos” como nos portar ou algo assim. Caso fosse necessário subir a um daqueles andares, era necessário pedir autorização e confirmar o motivo da visita ao andar; muitas vezes que alguém subiu sem autorização, não deixaram entrar.

Eu trabalhava no cliente que ficava neste “andar mais pobre”. Em palavras irônicas, cuidava do maior cliente deles, em número de processos. Nós cuidávamos de cerca de seiscentos mil processos. Eu trabalhava em um setor onde, quanto mais processos você analisasse, mais dinheiro o escritório receberia. O escritório, não os advogados.

Eles queriam que cada um de nós analisasse cerca de 200 processos por dia. Duzentos. Não preciso dizer que isto era impossível, porque acredito que qualquer pessoa sã sabe disso. Mas eles não. Recebíamos e-mails diariamente nos cobrando e nos assediando moralmente, afirmando o quanto não “éramos capazes daquele trabalho”, o quanto não servíamos para nada, e também, várias vezes, ameaçando-nos de demissão.

O volume de trabalho e a pressão eram tantas que vários colegas meus desenvolveram problemas psicológicos. Como também não somos celetistas ou registrados, éramos assediados, além do horário de trabalho, incontáveis vezes via mensagens no celular, ou em ligações. E não importava o horário. O dia tinha 24 horas, e a semana tinha 7 dias.

Ocorria também, inúmeras vezes, reuniões dentro do escritório, onde éramos assediados para abrir contas correntes no Banco X, afirmando que “só pagariam os nossos salários se nós tivéssemos conta neste banco”. Não preciso dizer que não recebemos salário aos olhos da lei, não temos direito a conta salário, então ainda pagaríamos taxa ao banco.

A elite intelectual: a realidade do advogado associado dentro do maior escritório de advocacia do país

Quase nenhuma pessoa aguenta ficar muito tempo, então a rotatividade de advogados é enorme. Tratam-nos meramente como peças inúteis que “se você não quer o emprego, tem quem queira”.

Eu não aguentei e saí de lá, mas ouvi histórias dos meus colegas que estão bravamente tentando ter dinheiro para pagar suas contas: eles diminuíram o salário dos advogados (lembrem-se, não somos registrados; eles podem fazer o que quiserem!), e, agora, para você receber o mínimo que você recebia antes, você tem que analisar um número N de processos por mês; caso contrário, você ganha praticamente o salário mínimo.

E quanto à OAB, você pergunta? Ela não liga. O dono desse escritório possui uma grande rede de influência, assim como os donos de outros grandes escritórios no país. A verdade é que a contratação do associado é um pretexto dado pela OAB para escritórios de advocacia poderem abusar de advogados recém-formados.

Ninguém deveria passar por isso, mas nós passamos. Nós estudamos por cinco anos, nós aprendemos sobre a sociedade e a justiça, nós estudamos ainda mais para passar na difícil prova da Ordem; mas toda a falsa noção de casta nobre da sociedade camufla a falta de direitos e o baixo salário que passamos na carreira.

2 COMENTÁRIOS

  1. Por que o andar de baixo era considerado a parte mais pobre? Sou acadêmica de Direito e não conheço São Paulo, portanto não faço ideia de qual escritório seja (minto, em pensamento eu estou arriscando um que é muito conhecido e que não tem filial em BH), mas achei interessante o seu artigo. Eu não estudo em uma Federal, tampouco em uma faculdade de elite, e estou com medo do que esperar do meu futuro que cada dia mais me parece incerto. Você ainda trabalha como associado(a)? Se pudesse voltar atrás, teria feito outro curso? Grande abraço.

  2. Cara Jéssica,

    Não sou o autor do artigo, mas seu comentário evidencia uma preocupação que também é minha. Como você, sou da área das humanas, mas o mercado no meu caso é ainda mais restrito, pois tenho graduação em ciências sociais e mestrado em filosofia. No seu caso, sendo da área do direito, penso que as oportunidades são um pouco maiores, mas não muito melhores. Posso estar errado, mas abundam os escritórios de advocacia que pagam salários baixíssimos, equivalentes aos de trabalhadores muito menos qualificados, para os advogados contratados, correto?

    Pois bem, aí reside um grande problema, e não sei se essa é uma das suas preocupações. Os trabalhadores querem comer bem, ter boas condições de vida etc. Para tanto, precisam ter melhores salários. Ora, é preciso lutar por melhores salários e uma melhor jornada de trabalho, correto? Isso, aliás, é algo que eu pessoalmente pretendo fazer (isto é, voltar à militância). Mas houve uma outra decisão que eu recentemente tomei, e nesse sentido irei citar este artigo (https://passapalavra.info/2020/06/132188/) do João Bernardo: “E os trabalhadores que laboram em espaços virtuais e produzem bens virtuais estão agora na ponta do processo de extorsão da mais-valia relativa, quer dizer, ocupam as fronteiras últimas do capital em expansão. Assim, enquanto o capitalismo recupera e absorve os conflitos sociais e cria campos tecnológicos novos, onde a exploração da força de trabalho assume uma amplitude sem precedentes, porque não lhes conhecemos sequer os limites, muitos na esquerda julgam que a pandemia está a acelerar a morte do capitalismo. Funesta ilusão.” Sendo assim, dei um giro de 180 graus na minha vida profissional e estou no momento dedicando meus estudos exclusivamente à área de programação, isto é, para trabalhar nesses espaços virtuais que o João citou no referido artigo. É esse um dos lugares, até onde me consta, que paga alguns dos melhores salários, visto que a produtividade é altíssima (a consequência disso é que os programadores, cientistas de dados etc são trabalhadores cujo trabalho gera muitos lucros para os capitalistas) e a demanda por novos trabalhadores é igualmente muito alta. É um mercado que já estava muito aquecido antes da pandemia, e que o coronavírus apenas jogou mais lenha em sua fogueira, dada a importância que o mundo virtual adquiriu.

    Assim, não me parece que o capital esteja lá muito interessado, seja na sua área e muito menos na minha. Doutorado? Mestrado? Universidades? Tudo isso não interessa tanto assim para a área de programação que eu mencionei, e tanto não é de grande interesse (o que não significa que ser graduado em ciência da computação não conte no seu currículo) para o capital, que já há alguns anos temos empresas privadas que emitem seus próprios certificados, estes comprovando que seus alunos se qualificaram nos cursos que essas empresas oferecem (um exemplo é a Rocketseat: https://rocketseat.com.br/ ; https://www.youtube.com/c/RocketSeat ). Ou seja, são empresas ligadas à educação na área de tecnologia relacionada aos espaços virtuais, e cujos certificados às vezes valem mais do que um diploma adquirido numa universidade, pois enquanto a cada mês surgem novas funções, bibliotecas e atualizações dessas bibliotecas para as linguagens de programação que já existem, os currículos de uma universidade federal (inclusive para os cursos de ciência da computação e tecnologia da informação) demoram anos para mudar (quando mudam). Sem falar que lá muitas das vezes são ensinadas linguagens de programação já extremamente ultrapassadas, e que estão sendo rapidamente substituídas por outras no nível empresarial. Não que esses cursos universitários não ensinem coisas muito úteis, pelo contrário; mas isso que eu falei é um atestado do quão ultrapassadas e arcaicas são essas universidades. Em suma, e aqui eu novamente cito o João Bernardo: “É que a reforma trabalhista não decorre, ou não decorre exclusivamente, no plano governativo. Se os governos não promovem essa reforma, as empresas realizam-na na prática.” (aqui: https://passapalavra.info/2018/10/123326/ ) Pois bem, na prática as empresas (o Estado Amplo) estão não apenas a passar por cima do Estado Restrito (esse aparelho dotado de legislativo, judiciário e executivo) no que tange os direitos dos trabalhadores, como também, pelo menos na área da tecnologia, estão a ultrapassá-lo (lembre-se: o MEC, que faz parte do Estado Restrito, regula não apenas das universidades federais, mas das particulares também) no que tange a qualificação necessária para os trabalhadores trabalharem naquelas áreas para as quais o capital está dirigindo sua atenção. E note-se também que cursos, como os oferecidos pela Rocketseat, Mentorama, dentre outras empresas, embora não possuam validade alguma para concorrer a uma vaga de mestrado e embora estejam dentro da categoria de “cursos livres”, ensinam o que há de mais atualizado para se poder trabalhar nessa área. Inclusive, você não precisa nem ter qualquer curso desses para trabalhar na área, nem qualquer curso universitário: são vários os exemplos que me vêm à mente de pessoas com ensino médio (ou cujo curso universitário foi algo completamente diferente de algo mesmo remotamente ligado à tecnologia) que aprenderam a programar por si só, ou assistiram diversas aulas do Youtube de canais como o Code Academy e o Free Code Camp (para os que dominam a língua inglesa). Aliás, nesse sentido, note-se que o Youtube está sendo uma poderosíssima plataforma de formação e qualificação dos trabalhadores para o mercado de trabalho. E note-se que, além de tudo que falei, as empresas dessas áreas (por exemplo, alguma empresa que faça websites para outras empresas) estão deixando parte da formação de seus potenciais trabalhadores nas mãos dos próprios trabalhadores, que gastam horas assistindo esses vídeos, pausando-os e apertando o alt+tab para testar as novas funcionalidades de certa biblioteca do Python nos programas que eles usam para escrever códigos. Para o Youtube, por outro lado, essa empresa gasta com a manutenção do código do seu aplicativo e do seu website, pagando salários para seus programadores contratados manterem a plataforma funcionando. Isso para elas é muito interessante, visto que de sua parte há um enorme corte de custos.

    Em suma, Jéssica, penso que o seu medo com relação ao seu futuro profissional (e que é um medo que eu próprio tenho, tendo o tipo de formação que tenho) possui relação direta com a acelerada remodelação pela qual o capitalismo está passando. Tenho completa noção hoje em dia que o capital não tem interesse na minha área, e nesse sentido recomendo o segundo episódio do podcast do Passa Palavra “A Velha Toupeira” (https://passapalavra.info/2021/08/139781/), onde um dos entrevistados, trabalhador de aplicativo, disse ser graduado em Geografia, mas decidiu trabalhar com entregas para alguma dessas empresas cujo nome me esqueço, porque “Geografia não paga as contas”. Não se espante se várias áreas caírem no completo esquecimento e deixem de ser úteis para o capitalismo. Podemos pensar que o capital está fraco das pernas dada a alta taxa de desemprego, mas longe disso: penso que ele está se remodelando, e numa velocidade muito alta devido à pandemia. No momento eu trabalho como professor de língua inglesa, mas já há alguns anos existem apps de celular que buscam ensinar línguas das mais diversas para aqueles que os baixem em seus smartphones; aliás, eles ainda são extremamente inadequados para aprender qualquer língua que seja. Mas e se eventualmente uma equipe de engenheiros de computação, engenheiros de software etc de alguma empresa desenvolver uma inteligência artificial boa o suficiente para tornar esse aprendizado de línguas por apps muito efetivo, sem a necessidade da presença (mesmo virtual) de um professor como eu (e, mais ainda, com custo zero para o cliente, que apenas precisará baixar o aplicativo no celular, e no máximo assistir umas propagandas de 10 segundos do Kwai uma vez ou outra – ou pagar uma taxa pequena por mês)? Percebe o caminho que minha argumentação está seguindo?

    P.S.: Não gosto de futurologias, mas, sendo alguém que gosta do universo cyberpunk, fico pensando se a fórmula, seguida por contos, livros, filmes e jogos de videogame, de substituição completa dos Estados nacionais por governos explicitamente empresariais não é o futuro que nos aguarda.

    Um abraço fraterno do
    Antonio

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