Por Jan Cenek
Kafka, Bartleby e Borges
Com a lucidez que só os grandes escritores possuem, Borges[1] escreveu que “Kafka projeta sobre Bartleby uma curiosa luz posterior. Bartleby já define um gênero que Franz Kafka reinventaria e aprofundaria a partir de 1919: o das fantasias do comportamento e sentimento ou, como agora lamentavelmente se diz, psicológicas.”
É certo que Kafka “projeta uma curiosa luz posterior” sobre Bartleby. Mas a linha de continuidade não é o “gênero das fantasias do comportamento e sentimento”, é o trabalho. Com Kafka as profissões são mais importantes do que o nome dos personagens. É o caso, por exemplo: do agrimensor K. e do caixeiro-viajante Gregor Samsa. No conto de Melville ocorre o mesmo, os advogados não têm nome; a mulher do sótão idem: dela sabemos apenas que limpava e varria o escritório; Bartleby não tem nem família, nem amigos, porém sabe-se que anteriormente havia sido empregado na Seção de Cartas Extraviadas. Mas há linhas de descontinuidade, também. Os principais personagens de Kafka são Bartlebies invertidos. Gregor Samsa, Joseph K., e o agrimensor K.: reações normais, apesar do absurdo. Gregor Samsa se preocupa com o trabalho, mesmo tendo sido transformado num inseto. Joseph K. convive com um processo em que não consegue descobrir do que é acusado. Sequer lhe ocorre reivindicar o direito ao contraditório e à ampla defesa. O agrimensor K. exige o emprego que lhe havia sido oferecido. Acaba perdido num labirinto tão burocrático quanto infinito, mas não desiste e não hesita. Gregor Samsa, Joseph K. e o agrimensor K.: reações normais em situações absurdas. Bartleby: reação absurda em situação normal. O escrevente se recusa a executar as tarefas que lhe são solicitadas, especialmente revisar documentos. Ser transformado num inseto (Gregor Samsa) é uma situação absurda. Ter parte do trabalho não pago (Bartleby) é uma situação normal na sociedade capitalista.
Se “Kafka projeta sobre Bartleby uma curiosa luz posterior”, como quer Borges, o inverso é verdadeiro, também. Bartleby ainda desperta compaixão, mesmo que hipócrita. O absurdo não estava naturalizado e regulamentado. Era possível denunciá-lo, mesmo que involuntariamente. Para os personagens de Kafka já não se coloca o “preferiria não”. Todos “prefeririam sim”, não por livre e espontânea vontade, mas porque não há absolutamente nenhuma alternativa. Gregor Samsa, Joseph K. e o agrimensor K são herdeiros de Bartleby. Bartleby é o avô de Gregor Samsa, de Joseph K. e do agrimensor K. Há muita esperança no mundo, mas não para eles.[2]
Há um personagem menos famoso de Kafka que, por oposição, dialoga com o escrevente de Melville. É o artista da fome, também ele magro, pálido e justo. Trata-se de um jejuador que passava semanas trancado em jaulas, sem nenhum alimento. Só ele e mais ninguém sabia que jejuar era coisa mais fácil do mundo: “no quadragésimo dia eram abertas as portas da jaula coroada de flores, uma plateia entusiasmada enchia o anfiteatro, uma banda militar tocava, dois médicos entravam na jaula para proceder às medições necessárias no artista da fome, os resultados eram anunciados à sala por um megafone e finalmente duas moças, felizes por terem sido as sorteadas, ajudavam o jejuador a sair da jaula, descendo com ele alguns degraus de escada até uma mesinha onde estava servida uma refeição de doente cuidadosamente selecionada. Mas o artista da fome sempre resistia.”[3] Preferiria não? As cidades paravam para assistir ao estranho espetáculo, mas o jejuador era triste porque “ninguém conseguia levá-lo a sério”, “se alguma vez uma pessoa bem-intencionada se compadecia dele e queria-lhe explicar que sua tristeza provavelmente vinha da fome, podia acontecer — em especial no estágio avançado do jejum — que respondesse com um acesso de fúria e começasse a sacudir as grades como um animal, para susto de todos.” Com o tempo e a repetição, o espetáculo foi perdendo o brilho. O artista da fome demitiu seu empresário e foi trabalhar num circo “sem se atentar ao contrato” (o “pacto”, ou acordo — no caso de Bartleby). A jaula do artista da fome foi posicionada perto do estábulo. O jejuador percebeu que o público passava por ali para visitar os animais, e não para apreciar sua arte. Então, radicalizou, ampliou os jejuns, até que afundou na palha que usava para dormir e desapareceu. Um dia o inspetor perguntou aos serventes por que aquela jaula ficava sem uso e cheia de palha apodrecida. Foi quando se lembraram do jejuador, vasculharam a palha e o encontraram. Antes de morrer, o artista da fome confessou que jejuava porque nunca encontrou alimento que lhe agradasse. Desconfio que Bartleby confessaria que preferia copiar, atrás do biombo. O artista da fome foi enterrado junto com a palha apodrecida. O narrador-patrão de Bartleby considerou a hipótese de deixar o escrevente viver e morrer no escritório, sepultando, posteriormente, os restos mortais na parede (mas temia que o funcionário pudesse ser longevo e, quem sabe, reivindicar a posse do imóvel). A palha na jaula do artista da fome é o biombo no escritório do escrevente. A diferença é que o jejuador quer aparecer, mas desaparece, enquanto o escrevente quer desaparecer, mas não consegue. A prisão do artista da fome está relacionada com o trabalho. No caso escrevente idem. Em ambos, o trabalho. Bartleby é um artista da fome que preferiu não. O artista da fome é um Bartleby preferiu sim. Os dois morreram por inanição.
As lições
Bartleby resiste, sem dúvida, mas como? Como pode! Simples assim! O biombo atrás do qual se refugiava era sua última linha de defesa. Seu sistema imunológico dependia do acordo firmado com o patrão. Se pudesse ao menos copiar e ser remunerado a quatro centavos por página de cem palavras, conforme havia combinado… Talvez morresse trabalhando, como o artista da fome, mas duraria mais tempo. Já não havia trabalho não pago suficiente num página com cem palavras remunerada a quatro centavos? Quanto valia efetivamente cada página copiada? Quanto o patrão-narrador ganhava por palavra? Era preciso exigir que revisasse documentos sem ser remunerado? Sim. Era. Bartleby é íntegro. O capital e suas personificações não são. O primeiro nunca aceitou nenhum tostão que não fosse fruto do seu trabalho; os outros insistem em não pagar pela mão-de-obra que utilizam, e não obedecem a nenhum acordo se tiverem força para burlá-lo. Esta é uma das lições ensinadas pelo caso Bartleby. Não há acordo com o capital e suas personificações, “é querer ensinar um leão a comer alface” — diria um amigo.
Uma única vez Bartleby empregou o presente do indicativo (prefiro) de primeira, sem passar pelo futuro do pretérito (preferiria). Foi quando o cozinheiro da cadeia (cara-da-boia) lhe ofereceu o jantar preparado após receber a propina paga pelo narrador. Depois morreu como o artista da fome. Mas não importa. A caridade do patrão era inaceitável. Bartleby não recusa absolutamente tudo. Recusa a caridade moralista e seus complementos (como não pagar pelo trabalho que emprega). Queria apenas ganhar pelas cópias que produzisse, conforme havia combinado. Mas o capital e suas personificações não cumprem acordos.
Outra lição do caso Bartleby. A resistência individual é inútil, não importa o quanto possa ser justa, radical e até poética. Fechado em si mesmo, atrás do biombo, o escrevente afastou a única possibilidade efetiva de resistência: a coletiva. “Eu preferiria não (I would prefer not to)” não se transformou em Nós preferiríamos não (We would prefer not to). São engraçados os exageros sobre Bartleby. Atestam que os filósofos têm dificuldade para enxergar — e imaginar — algo além da recusa individual. A “fórmula” do escrevente “desarticula os atos de fala” […], “destituindo o pai da sua palavra exemplar” (Deleuze). A “fórmula” do escrevente “abre uma zona de indiscernibilidade entre o sim e o não” (Agamben). Bartleby “solapa as coordenadas do sistema do qual se subtrai”, como se fosse a carta que, retirada, derruba o castelo de cartas (Žižek).[4] Mas que prejuízo o escrevente causou ao patrão? O trabalho parou? Não. Houve greves ou paralisações? Não. Os trabalhadores reivindicaram aumento salarial ou melhores condições de trabalho? Não. O texto é literal demais para deixar dúvidas. Bartleby não incomodou porque a produção diminuiu (nenhum trabalhador seguiu seu exemplo; é mais provável que tenham se ocupado com as tarefas que ele se recusava a executar). Bartleby incomodou porque ficava parado de frente para a janela sem fazer absolutamente nada que não fosse dizer “Eu preferiria não”. Foram os bochichos e as fofocas que assustaram o patrão. Ao menor risco, o advogado mudou o endereço do escritório e deixou o escrevente para trás, como o capital muda de país quando suas exigências não são atendidas. A sentença de Bartleby (I would prefer not to) é mais eficiente para seduzir os filósofos do que para derrubar o capital. Os filósofos esqueceram o final do conto? Não lembram do que aconteceu com o escrevente? No romance A imortalidade, Milan Kundera[5] parafraseia Rimbaud para criticar o tempo presente: “ser absolutamente moderno é ser aliado dos seus próprios coveiros.” Fazer louvação da recusa individual de Bartleby é se aliar aos coveiros do escrevente. Seria mais produtivo — e sincero — confessar que a história acabou e que qualquer tentativa de resistência coletiva é impossível.[6]
Quando ocorrem acidentes ou adoecimentos relacionados ao trabalho, o capital atua para transformar vítimas em culpados, como se estes tivessem deixado de cumprir regras ou orientações. É o que se chama de “teoria do ato inseguro”, que atua para absolver o processo de produção capitalista. Transformar a vítima (Bartleby) em herói, não resolve absolutamente nada. Antes serve para, de outra forma, absolver o processo de produção capitalista, que não é questionado. Repetindo as perguntas. Por que Nippers tinha sua capacidade laboral comprometida pela manhã? Por que Turkey tinha sua capacidade laboral comprometida à tarde? Por que Bartleby teve sua capacidade laboral comprometida totalmente? Tais fenômenos estariam relacionados ao trabalho? Teriam relação uns com os outros?
Bartleby certamente diria que “Eu preferiria não”: nem culpado, nem herói. Num tempo em que o desemprego é oceânico e que as condições de sociabilidade são precárias, passa batido que o processo de produção capitalista causa adoecimentos e mortes, e não apenas exclusão e concentração de renda. É a principal lição do caso Bartleby. Por fim, lembremos o mote do movimento operário italiano dos anos 1960: “saúde não é mercadoria, não se negocia!”
Epílogo
Prefiro ver Bartleby como um poeta de um único verso. “Eu preferiria não” é forte como “Tinha uma pedra no meio do caminho”. O que restou do escrevente? Um verso. Prefiro ver Bartleby como um poeta que não cabia num escritório, como tantos que se refugiam atrás das pilastras e dos biombos, ou dentro dos escaninhos e das gavetas. Prefiro ver Bartleby como um poeta liquidado por um modo de produção que exclui e elimina a poesia. Prefiro ver Bartleby como mais um trabalhador vitimado pelo trabalho. Desconfio que um funcionário de repartição tenha mais chances de entender Bartleby do que um filósofo consagrado. Dirão que minha leitura não é razoável, que vai de encontro à fortuna crítica do conto. Direi, com Bartleby, que, neste ponto, prefiro não ser minimamente razoável!
Notas
[1] BORGES, J. L. Bartleby, o escrivão, de Herman Melville. Acesso em: 21 abr. 2019.
[2] A frase teria sido dita por Kafka a Max Brod: “Há muita esperança, só não para nós.” KAFKA, F. Nas galerias. Tradução: Flávio Kothe. São Paulo: Estação Liberdade, [s.d.].
[3] KAFKA, F. Um artista da fome & A construção. Tradução: Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
[4] ŽIŽEK, S. Em defesa das causas perdidas. Boitempo: São Paulo, 2011.
[5] KUNDERA, M. A imortalidade. Tradução: Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca e Anna Lucia Moojen de Andrada. Nova Fonteira: Rio de Janeiro, 1990.
[6] Hardt e Negri tratam o caso Bartleby de forma mais razoável. Enxergam a recusa do escrevente como início de uma política libertadora, mas vazia se limitada a si mesma: “a recusa em si (do trabalho, da autoridade e da servidão voluntária) leva apenas a uma espécie de suicídio social.” HARDT, M.; NEGRI, A. Império. Record: Rio de Janeiro, 2001.