Por Paulo Sampaio

Publicado originalmente aqui em 6 de junho de 2019.

A desregulamentação do trânsito é sinceramente desejada, mesmo que todos saibam que ela aumentará o número de cadáveres espalhados pelo acostamento. O risco de ser trucidado no trânsito é sentido mais fortemente no plano econômico do que no plano corporal. Para quem vive da mão para a boca a catástrofe da multa aterroriza mais do que a visão do seu próprio corpo atravessando o para-brisa. A raiva despertada pela multa não deixa de ser a raiva de quem sabe que a ação repressora do Estado está no centro da insegurança que atormenta sua vida. O medo de ter o corpo despedaçado, que outrora dizia respeito à possibilidade de nos vermos subitamente diante de um animal muito maior e mais forte do que nós, foi deslocado para o medo de ter o orçamento familiar despedaçado por um pedaço de papel ao qual um carimbo confere poderes imensuráveis. Quem desconsidera a questão reafirmando o óbvio, dizendo que os infratores das leis do trânsito são criminosos, apenas lembra involuntariamente as infrações que, apesar de não serem criminosas, são muito mais nocivas do que o ato mais mortífero que alguém pode cometer atrás de um volante. Os atos deliberadamente violentos cometidos por motoristas, de resto, são comparativamente poucos diante do campo amorfo em que práticas comuns podem ou não se tornar crimes. Tanto a capacidade de arcar com as despesas de uma eventual multa como a capacidade de reduzir o risco de ser alvo do arbítrio trazem a marca da desigualdade econômica: pagar uma revisão veicular e comprar uma cadeirinha – ou ainda arranjar tempo para tomar providências como estas – é banal para alguns e infernal para outros. Aquele que simplesmente denuncia o comportamento incivilizado dos motoristas fala com se vivêssemos em uma sociedade correta.

Não por acaso, essa denúncia aparece diversas vezes na obra do representante maior do liberalismo brasileiro, Caetano Veloso: ora é a preta correta, democrata social racial que nunca furou um sinal e comprou seu Gol juntando pouco a pouco o que sobrava do seu salário de professora (Neide Candolina); ora são as motos e fuscas que avançam nos sinais vermelhos e comprovam que a autocracia burguesa experimentada na América Latina não é mais do que o espelho da alma embrutecida de seus habitantes (Podres Poderes); ora é o baiano burro que nunca para no sinal, situação que se repetirá enquanto aqueles que lutam pela reforma agrária não apertarem a mão dos ruralistas (Vamo Comer). Mesmo no auge de seu potencial crítico o liberal é capaz de enquadrar na mesma sequência de imagens o ato de furar um sinal, o ato de urinar na rua e um massacre que tirou a vida de 111 presos (Haiti). A reprimenda moral faz abstração da sociedade de classes e é por isso ela mesma moralmente inaceitável. Dirigida àqueles constantemente pressionados pela perspectiva da morte econômica, ela alimenta sentimentos de perseguição baseados na ideia de que todo o edifício moral em que a sociedade se assenta foi construído para incriminá-los. A massa irada não irá contra o Estado, mas matará seus mensageiros.

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