Por Mariana Lacerda
Originalmente publicado aqui em 03 de junho de 2019.
Em 1967, o Banco do Estado realizou o primeiro concurso público que permitia a participação de mulheres. Entre as aprovadas no concurso, estava a jovem Lúcia Skromov, com 21 anos de idade.
As mulheres tiveram pela primeira vez permissão para ingressar em um concurso público para trabalhar no banco, mas isso não queria dizer que seus direitos estavam equiparados aos dos homens. Lúcia relata que recebia um salário menor que o de seus colegas do sexo masculino, ainda que tivessem o mesmo cargo. Isso gerou revolta entre as trabalhadoras, que passaram a ser cada vez mais presentes dentro do Sindicato dos Bancários. Nesse período, a ditadura militar estava instalada no país e qualquer tipo de reivindicação era vigiada.
Agora com mais idade, Lúcia contava a sua história sentada na poltrona da sala de sua casa que era silenciosa e tranquila, com janelas bonitas e arejada. Enquanto expunha a realidade dura que viveu, a senhora de 73 anos não estremeceu nem por um segundo, descascou uma manga e comeu tranquilamente enquanto conversávamos sobre como ela conheceu Coronel Ustra, líder torturador do regime militar.
Um ano após começar a trabalhar no Banco do Estado, Lúcia foi presa pela primeira vez em uma passeata e levada ao DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), um dos principais órgãos repressores do governo, responsável por vigiar e espionar qualquer tipo de organização popular. Lá teve sua primeira experiência com a violência e a repressão do governo dos anos de chumbo, que estava apenas começando.
Em 1969, Emílio Garrastazu Médici assume a presidência. Lúcia relata que esse foi um período de transição de uma ditadura tímida pra uma ditadura policial. Mesmo com o endurecimento da repressão, a bancária não deixou suas atividades com o sindicato.
Alguns anos depois, em 1973, Lúcia teve o desprazer de conhecer as instalações do DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação — Centro de Operações de Defesa Interna), mais um órgão repressor gerido pelo exército, este em especial era visto com mais prestígio, talvez por ter sua atuação pautada em táticas de guerra com a finalidade de aniquilar ‘’inimigos’’. Esses inimigos poderiam ser qualquer cidadão que se articulasse ou participasse de organizações de caráter social.
Ao chegar no DOI-CODI, Lúcia foi recebida por Aparecido Laertes Calandra, conhecido como Capitão Ubirajara, outro nome que ficou bastante conhecido por sua atuação de torturador durante a ditadura militar.
Um homem se aproximou e acariciou sua face suavemente. Logo em seguida, o mesmo desferiu um golpe contra o seu rosto. Este era Carlos Alberto Brilhante Ustra, militar homenageado pelo atual presidente da república, Jair Messias Bolsonaro. “Dele eu recebi um tapa, mas não foi um tapa qualquer, foi um tapa com soco inglês”, relata. Fazia cerca de três dias que Lúcia estava confinada, sem poder vestir nenhuma roupa e sem se alimentar: “Eu tive o desprazer de conhece-lo de uma forma completamente vulnerável. E eu tava completamente nua, né? Porque eles tiram as roupas das pessoas, que é pra você já se sentir vulnerável’’.
Para Lúcia, pior que os choques, o pau de arara e outros tipos de torturas praticadas ali, era ser obrigada a ficar nua, em pé com as costas em uma parede. Ficava 24 horas completamente estática, sem poder dar um passo ou mudar de posição. Não podia comer e nem beber. Quando os militares passavam bebendo café, água ou até álcool, jogavam bebida em seu rosto.
As celas no DOI-CODI eram coletivas e as mulheres ficavam separadas dos homens. As moças que não eram casadas podiam ser utilizadas como “carne de canhão’’ — como disse Lúcia — o que significa que eram constantemente estupradas por soldados.
Lúcia sobreviveu as torturas, mas ficou com sequelas: uma de suas vistas foi prejudicada e teve que fazer uma cirurgia corretora para as pernas. Mas nem os danos físicos que teve foram capazes de frear seus ideais e sua luta. Em 2004, a ONU decidiu realizar uma missão de “paz’’ no Haiti que contou com a participação do exército de 40 países, entre eles o Brasil, que chefiou a ação. Lúcia se deslocou até lá diversas vezes para prestar solidariedade ao povo haitiano, que sofria com os conflitos causados pela ação da ONU, e se tornou membro do Comitê Pró-Haiti.
Em 2016 participou da Marcha Antifascista. “Eu tenho orgulho, na altura dos meus 70 anos de idade, em dizer que hoje estou numa praça falando com jovens e dizendo pra eles: Não permitam! Porque vocês serão as vítimas amanhã”, discursou Lúcia, sobre o avanço do autoritarismo no Brasil. No ano seguinte foi até São Petersburgo, na Rússia, comemorar os 100 anos da Revolução Socialista.
Foram horas de conversa sobre um assunto que nem todos estão a vontade para falar a respeito, uma conversa tão delicada pode reacender traumas e abrir feridas. Não deve ser fácil descrever como foi o encontro com seu torturador, mas durante o tempo que conversamos ouvi uma única lamentação: “Acho que eu seria uma pessoa melhor se não tivesse passado por isso”.
A imagem de capa se chama “Interrogation III”, de Leon Golub