Por João Bernardo
Não quero exagerar, conheço pessoas que gostam do Passa Palavra e consultam regularmente este site. Mesmo achando que um ou outro artigo falhou o alvo ou considerando-o abaixo do nível que esperavam, mantêm uma boa opinião geral. Mas são poucos. A maior parte acha o Passa Palavra antipático.
Pior do que isso, acham-no desconfortável, um lugar onde se põem em causa certas coisas que parecem evidentes. Muitos leitores debandaram por causa disso, muitos outros hão-de fugir. «Sinceramente», escreveu outro dia um leitor num comentário, «às vezes entro aqui no Passa Palavra e me surpreendo como a extrema-esquerda vive no mundo da lua, inventando suas teorias sem lastro e nexo com a realidade». Mas qual realidade? Quem ler os resultados da física quântica ou das duas teorias da relatividade — e nem sequer menciono modelos teóricos posteriores — também corre o risco de os achar sem nexo com a realidade, com aquela realidade em que se habituou a viver. E creio que é este o principal motivo do desconforto que muitos leitores sentem aqui.
Esse desconforto vem do facto de o Passa Palavra pôr em causa os lugares-comuns que vigoram na esquerda — ou naquilo a que hoje se chama esquerda, porque ela mesma já pouco emprega o nome. Outro dia eu escrevia a um amigo e de passagem, a propósito de romancistas que foram célebres e agora caíram no esquecimento, observei que a sociedade de massas está indissoluvelmente ligada ao fenómeno das modas. Esse meu amigo gostou da observação, não sei porquê, já que ela me parece bastante óbvia.
O certo é que as redes sociais, e a demência obsessiva com que as pessoas nelas participam, tornaram a conjugação entre sociedade de massas e moda ainda mais íntima e dilataram-lhe a amplitude. Entre opinião e moda deixou de haver diferença, e esta afinidade ocupou todo o campo de visão. A realidade em que as pessoas vivem, ou melhor, a realidade em que as pessoas se vêem viver, tornou-se isto, uma realidade produzida e sustentada pelas infra-estruturas técnicas mais rentáveis da actualidade.
Mas por detrás desse biombo com que as pessoas se envolvem nas paisagens que fabricam há outra coisa. Por detrás do palco há os bastidores onde residem os encenadores e os autores da peça, os técnicos que comandam as luzes e manipulam os fios. Ao chamar a atenção para eles e para os efeitos de cena que provocam, o Passa Palavra destrói o encanto do espectáculo. E isto é imperdoável. Afinal de contas, dizem leitores indignados, pagámos o bilhete para nos divertirmos e vêm agora estes estragar a festa!
Mas é pior ainda, e parece que a antipatia do Passa Palavra não tem limites. Porque, se fazemos a crítica do espectáculo e dos seus organizadores, lógico seria que quiséssemos nós ir para os bastidores para mudar a festa ou, se o conseguíssemos, encenar uma festa nova. Mas nem isso. «Uma esquerda que renuncia a ter como horizonte um projeto nacional de poder é uma esquerda condenada à derrota», preveniu-nos há dias outro leitor. Sem dúvida, se chamarmos «derrota» ao facto de ficarmos fora dos bastidores, a criticá-los, ao mesmo tempo que fazemos a crítica da festa também. Ora, nem pretendemos iludir-nos num dos lados nem, no outro lado, manipular a ilusão. Poderá haver algo mais desagradável do que isto?
Sim, pode. Porque o Passa Palavra, depois de assumir uma postura crítica naqueles dois terrenos, nem sequer o seu próprio terreno respeita, ao proceder à crítica dos movimentos sociais e dos colectivos libertários e das novas relações de poder, ou mesmo de exploração económica, que neles se configuram. Este rumo foi aberto em Agosto de 2010, quando se publicou Entre o fogo e a panela: movimentos sociais e burocratização. Desde então sucederam-se neste site os artigos de crítica histórica, política e económica ao MST, à evolução interna do Movimento Passe Livre e à forma assumida por colectivos ditos informais. E isto é, francamente, demais.
Será então o Passa Palavra simplesmente um refúgio para a maldade dos seus colaboradores?
Pelo contrário. A crítica, não só a crítica do terreno político alheio, mas, acima de tudo, a crítica do próprio terreno político que pisamos é um instrumento imprescindível. A autogestão da sociedade prepara-se na autogestão das lutas, foi assim que intitulei um pequeno texto já antigo e razoavelmente divulgado. Continuo a pensar o mesmo. Só um processo crítico permanente, dirigido para o meio em que nos organizamos e actuamos, pode garantir que as experiências de libertação não se convertam, como até agora tem sucedido, em novas experiências de burocratização e, no fim, de opressão. Das muitas lições que nos deu Jean-Paul Marat, é esta a que mais viva permanece.
Mas não poderá a antipatia ir demasiado longe? Não será que, no afã de dirigir a crítica para tudo e todos, se cometem erros? Sem dúvida que se cometem, mas o erro é uma parte integrante do processo de descoberta científica. Com excepções infelizmente raras, as obras de história das ciências são lacunares, porque relatam os avanços e as descobertas, mas não os becos sem saída e os erros, que ajudaram a abrir o caminho das descobertas. Não existe Prémio Nobel do erro, mas devia existir, porque houve teses erradas que contribuíram tanto quanto as certas para o progresso científico.
Acima de tudo, e acho que é aqui que o Passa Palavra deve ser impiedoso consigo mesmo, é necessário evitar a hipocrisia. É tão fácil — mas, ah! tão fácil… — varrer para debaixo do tapete aquilo que não se consegue explicar e não tomar em conta os factos que ninguém gosta de reconhecer. São eles que representam a indispensável intromissão da realidade nos esquemas teóricos, que fazem com que os modelos interpretativos nunca se fechem e, se os factos permanecerem duros como granito e renitentes às nossas interpretações, são eles que nos obrigam a repensar as teses desde o começo, a renovar sempre os alicerces. É aqui que a antipatia atinge o máximo, quando a única garantia que nos fornece é a do permanente desassossego.
Em tempos que já lá vão, a esta antipatia chamava-se Revolução. Eu continuo a chamar-lhe assim.
Ilustram o texto uma cena de Marat/Sade – A Perseguição e o Assassinato de Jean-Paul Marat desempenhados pelos loucos do Asilo de Charenton sob a direção do Marquês de Sade (Peter Brook, 1967) e outra de Um cão andaluz (Buñuel e Dali, 1929)
Sempre gostei de acompanhar as publicações do Passa Palavra, mesmo quando alguns textos decepcionam por algum motivo, geralmente quando farejo maniqueísmos, teorias da conspiração e certo apreço canônico por algumas leituras, mas as percebo não como essenciais ao texto, e muitas vezes entendo-as como consequências da própria linguagem que se utiliza. No universo de novas ideias e interpretações, nem sempre a linguagem já está a altura dos conceitos em transformação. Contudo, após esse texto de João Bernardo, passo a me identificar ainda mais com o Passa Palavra, pois, no geral, não agrado nem marxistas, nem a esquerda tradicional partidária, militantes de movimentos sociais, quem trabalha no setor público, professores, o pessoal mais prafrentex, progressistas, liberais muito menos, enfim, quase todo mundo sai incomodado de alguma forma quando exponho minhas interpretações e revisões. Principalmente quando o assunto é marxismo. A esquerda deve ser ampla, abrangente, mais inclusiva que excludente, agregadora; e parece que para podermos caminhar neste sentido, sem a paranoia do “pelegou ou não pelegou”, é preciso um ponto sempre mais a esquerda que sacuda incansavelmente tudo, principalmente quando se ameaça sentir o relaxamento da sensação de estar no caminho certo, pois não há caminho certo para além da realidade do caminhar. Se ser antipático é uma consequência da inquietação e do ímpeto de se deslocar os eixos de interpretação sobre o real, considerando o máximo de perspectivas possíveis, obrigado pela antipatia Passa Palavra, “tamo junto”! Contudo o que está em questão, o mais relevante de tudo isso, é a equalização valorativa que todos os debates carreiam, assim como não precisamos da simples crítica pela crítica, que se esvazia, também não podemos nos deixar cair na tentação do julgamento, acertou/errou, política não é campeonato brasileiro, e o capital é nosso horizonte, não corremos em paralelo. É nos debatendo com ele que o superaremos, as classes lutam entre si, mas também contra o capital. Se para alguns leitores as críticas do Passa Palavra são duras ou desconcertantes, retruquem sem cair no julgamento que se alicerça na crença pueril de saber a fórmula mágica para a superação do capital, assim como não caberia a política editorial do site se arrogar detentora da solução esquemática das contradições que aponta. As contradições tem seus tempos, hoje a enxergamos, amanhã todos estão falando sobre ela, mas sua superação pertence a um outro tempo, mais lento que um artigo.
Se temos a sensação de estarmos rodeados de ideias prontas, reproduções meméticas de estratagemas ou de pirraça moral dos que acreditam saber o caminho, a antipatia é com certeza necessária. Afinal não me lembro do nome de nenhum autor importante, que continua a dizer sobre o mundo com sua obra, e dirá ainda mais, que ele(a) era conhecido por simpatia e amabilidade. Que bom que Marx não ficou conhecido na história como “aquele fofo que se penalizava pelos pobres”!
Realmente, agora o Passa Palavra foi longe demais.
“Crítica”, “postura crítica”, “processo crítico permanente”, falam até em ser “impiedosos”. Mas ainda não sabem que agora o mais importante é ter EMPATIA?
E arrogam-se a criticar tudo e todos, ignorando que cada um tem o seu LUGAR DE FALA e está bem estabelecido quem é que pode criticar quem e sobre quais temas – é assim como a hierarquia das bicadas no galinheiro.
Para cúmulo, invocam a “ciência” e o “progresso científico”! Ora, como todos sabemos, a ciência ocidental é apenas uma NARRATIVA, aliás eurocêntrica e patriarcal, que não se deve sobrepor a todas as outras narrativas e saberes milenares dos povos originários, que querem certamente continuar a viver em harmonia com a Mãe-Natureza praticando agro-ecologia e terapias alternativas.
Aliás, essa tal de “revolução” também parece muito eurocêntrica e patriarcal.
Quer mudar o mundo? #SejaVegetariano
Acompanho há muito tempo o Passa Palavra e, apesar de discordar em determinados pontos – a exemplo do debate raça, classe e identidade -, sempre achei que o site cumpre papel importante na crítica à esquerda partidária e aos movimentos sociais aparentemente “libertários”. No meu entender, o papel da crítica é incomodar, tirar as pessoas do conforto de suas ideias e práticas políticas e expor as contradições das lutas anticapitalistas. Somente assim compreenderemos os desafios da classe trabalhadora e construiremos alternativas às perversões do capital.
No entanto, grande parte das pessoas leitoras desse site, ao invés de debater e criticar com argumentos, atacam os autores e os próprios integrantes do PP, como se isso mudasse, em alguma linha, o sentido das críticas apresentadas pelo grupo.
Por fim, certas considerações aqui nos comentários só reforçam grande parte das críticas impiedosas – e devem ser – do PP….
Nos comentários a este meu artigo, que na verdade é mais um desabafo, Artur Lauande Mucci escreveu que «quase todo mundo sai incomodado de alguma forma quando exponho minhas interpretações e revisões» e considerou necessário «deslocar os eixos de interpretação sobre o real, considerando o máximo de perspectivas possíveis». No mesmo sentido, mas empregando a ironia, o Agonista exclamou: «falam até em ser “impiedosos”. Mas ainda não sabem que agora o mais importante é ter EMPATIA?». E, resumindo tudo, João Marques concluiu que «o papel da crítica é incomodar, tirar as pessoas do conforto de suas ideias e práticas políticas». Lembrei-me disto a propósito dos comentários ao artigo Consciência de Classe ou Prática Concreta? ( https://passapalavra.info/2019/07/127468/ ), publicado ontem neste site e ilustrado com obras de Michelangelo Pistoletto.
Previno desde já que não tive nenhuma interferência na escolha dessas ilustrações, por isso posso falar à vontade. Ora, todos os comentadores — três, até este momento — exprimem perplexidade e incómodo perante as ilustrações, como se não fosse esse um dos objectivos possíveis de uma ilustração. Existem três tipos de ilustração. Se eu amanhã for ilustrar, por exemplo, um artigo sobre o sistema taylorista de organização do trabalho, posso escolher obras de Léger ou aquela obra ultraconhecida de Tarsila do Amaral. Neste caso as ilustrações têm uma função apenas estética. Se a obra for boa, o resultado é belo. Mas, quanto ao conteúdo do texto, elas são redundantes, não acrescentam nada. Outro tipo de ilustração tem funções, em sentido técnico, ilustrativas. É o que sucederia se eu escolhesse diagramas do próprio Taylor exemplificando vários gestos de trabalho. Mas existe um terceiro tipo de ilustração, que é o mais interessante porque acrescenta alguma coisa ao texto. É o que sucederia se eu ilustrasse o tal artigo sobre o taylorismo com, por exemplo, fotografias de nuvens. Aí o leitor pararia para pensar — porquê nuvens? As respostas poderiam ser muitas, mas com todas elas o leitor acrescentaria ao texto alguma perspectiva nova e, nas palavras de Artur Lauande Mucci, iria «deslocar os eixos de interpretação sobre o real». Os surrealistas inventaram esta técnica há um século, mas não envelheceu e continua a produzir efeitos. Raciocinar é incómodo. E se, como afirmou João Marques, «o papel da crítica é incomodar», o papel das ilustrações pode ser esse também.
É por causa de coisas destas que o Passa Palavra é antipático.
Como dito, o site tem publicados alguns textos com qualidade ou rigor um pouco abaixo do ”nível médio esperado” (um texto meu incluso), mas sem dúvida alguma continua sendo excelente nas discussões que estabelece. Aqui não só há pessoas comprometidas com as análises que se propõe, como é um raro lugar em que, nos comentários, realmente vemos debates enriquecedores acontecendo.
Agora, quanto às críticas e ao ”antipatismo”. Não só pelo Passa Palavra, mas pelos próprios leitores e comentadores, aquilo que na maioria das vezes se propõe a fazer aqui é uma discussão embasada e com olhar crítico sobre a realidade, entendê-la se livrando das aparências e ilusões. E isso se faz seguindo um método (ou tentando, pelo menos?), uma visão que se tem como basal, etc. Aqui não há rejeição de ideias contrárias, noções como a de ”lugar de fala”, pré conceitos ou nada do tipo, o que há é o debate à partir de perspectivas diferentes.
Eu entendo que essa postura pode passar por antipática ou ”rude”, ”bruta”, etc e inclusive já disse aqui em algumas oportunidades que a cabe observar a forma como se expõe a crítica. Não é uma questão de ”apaziguar” ou ”pegar leve” quando da crítica dos próprios movimentos sociais e da própria ”esquerda”, mas sim uma questão de fazer dessa crítica uma ferramenta estratégica que contribua com a unidade da classe trabalhadora e não com sua fragmentação.
Mas não deixa de ser engraçado quando vemos pessoas de esquerda defendendo amizades íntimas com, digamos, liberais radicais ou ”pessoas de direita em geral”, apesar da divergência mas que não suportam manter contato amigável com outra pessoa de esquerda que seja crítica às suas ideias..
Acredito que essas opiniões quanto a ”antipatia” do site têm a ver com a ideia de que, lendo o que se coloca aqui, ”os marxistas criticam tudo”, ”nada nunca está bom”, ”nada nunca é revolucionário”, etc. De forma que se tantas coisas concretas como movimentos e organizações são criticadas, o que esses marxistas apoiam então? Acho que essas visões têm muito a ver com isso, pois pode parecer que já que se faz tanta crítica, se está criticando ”tudo que está por aí acontecendo no mundo”, então não se apoia nada disso, então não se apoia nada que a ”esquerda tem feito” e daí se conclui que esses críticos estão divagando coisas que não têm a ver com a realidade porque são contra os movimentos reais mas não criam um ”novo” ou não ”declaram apoio” a algo, etc.
Nesse sentido, mesmo eu partilho de certa parcela de angústia, visto que me pergunto que função tem os anticapitalistas… pode-se não ter um projeto nacional de poder mas sem dúvida há uma guerra sendo travada e devemos nos perguntar se estamos ou não servindo como ponto de contribuição à unidade dos movimentos democráticos contra a ordem vigente das coisas
João…Você não conhece nada do Brasil profundo. Toda a sua produção é pelo viés da bolha em que sempre viveu. Olha o tipo de preocupação que você tem. Que texto mais sem razão de ser. Fora o auto elogio, qual a sua utilidade?
Quem busca, na compreensão do todo, a explicação da parte, já sabe que todo elemento de uma totalidade é também uma totalidade de elementos. E, polindo sua lente, busca o saber de algo pelo de sua causa imanente.
A bolha do JB é cosmo-histórica e, como tal, incomensurável a régua e compasso de plantonistas brasilprofundólogos e quejandos lacaios.
Longa Vida, Saúde & Alegria para João Bernardo.
Caro e relevante Marreteiro.
O que é o Brasil profundo? Quem conhece o Brasil profundo? Qual é a bolha em que vive o JB? Marreteiro, sobre o que trata a produção do JB? Marreteiro, quais são as preocupações do JB? Por ultimo, qual a sua utilidade Marreteiro?
Esses dias, um funcionário ateou fogo na concessionária em que trabalhava em Araçatuba. Uma notícia que não deveria passar batido.
No Brasil Bolsonarista, sem PT, sem sindicatos e com patrões milicianos, essa será a luta de classes.
Acabou congresso, reuniaozinha, discussão em prédio chic. Acabou o espaço para o militante universitário. É índio contra madeireiro, é botar fogo na concessionária. É a luta de classes nua e crua.
A esquerda acabou. Os trabalhadores são eternos.
Querido João Bernardo!
Através deste comentário, queria pedir um favor.
É possível você tecer ou indicar informações sobre as atuais “Guerras Hibridas” ou “Revoluções Coloridas”…. Inclusive sobre o que está ocorrendo em Hong Kong/China.
O que tenho lido e acompanhado é de uma lógica binária extremamente pobre. E depois, de um comentário seu aqui no passa palavra, hoje busco ir atrás do que você chamou a atenção: uma terceira via dos trabalhadores (https://passapalavra.info/2019/02/125380/)
Desde já agradeço
Desculpa o abuso
Abraços fraternos…
Caro Pedro Irio,
Não sou capaz de lhe dizer nada que responda ao seu problema. Por experiência, e até pela experiência da revolução portuguesa de 1974-1975, sei que os grandes órgãos de informação não se preocupam com as formas de organização dos trabalhadores em luta. Para isso é indispensável ou ter acesso aos órgãos publicados directamente no âmbito dessas lutas ou proceder a entrevistas com grupos de trabalhadores. Ora, em todos esses casos eu tenho-me limitado a The Economist e aos despachos das agências. Mas talvez o Passa Palavra publique em breve alguma coisa sobre os acontecimentos em Hong Kong, quem sabe?
Já agora, aproveito para chamar a atenção para o que se tem passado no Sudão. Apesar das restrições de informação que indiquei acima, parece-me uma luta em que a classe trabalhadora manifesta um elevado grau de autonomia. Além disso, vemos que mesmo num país islâmico uma luta pode processar-se em termos laicos e não num quadro religioso. Penso que, das movimentações actuais, a do Sudão é a mais importante.
Coaching : se voce se esforça par agradar todo mundo , voce não gosta de voce !
Querido João Bernardo!
Obrigado pela resposta, indicações e informações!
Desde já agradeço
Abraços fraternos…
gostaria de compartilhar uma observação sobre a temática dos últimos comentários. Vemos que são poucas as lutas de massas com perfil um pouco mais consolidado à esquerda, ou em defesa clara do interesse dos e das trabalhadoras, ou que sejam levadas adiante por setores organizados pertencentes à classe.
Pela informações a qual pude aceder, tanto nas lutas recentes no Sudão como nas lutas recentes em Honduras, fenômenos que mobilizaram o país – ainda que em Honduras não tenha ocorrido troca de regime (ao menos não ainda)-, em ambos casos certa direção das manifestações tem sido realizada por organizações das antigas “profissões liberais”, ainda que no caso de Honduras isso inclua professores. No caso do país centroamericano isso tem um sentido mais claro, pois as manifestações começaram contra reformas que afetariam os serviços públicos realizados justamente por estes profissionais (Saúde e Educação).
Seria talvez apressado tirar grandes conclusões desta característica em comum. Jogo essa coincidência isso para ver se outras pessoas conectam alguma reflexão ou mais informações.
Lucas,
Você escreveu, referindo-se ao Sudão e às Honduras, que «certa direção das manifestações tem sido realizada por organizações das antigas “profissões liberais”». Aliás, note que não só nas Honduras, mas igualmente no Sudão, os professores participam activamente no movimento. Mas restrinjo-me aqui ao caso do Sudão.
Nesse país a agricultura é responsável por praticamente 40% do PIB, ocupando 45% da força de trabalho. A indústria, que ocupa 40% da força de trabalho, é responsável por apenas 2,6% do PIB, e basta esta baixa produtividade para vermos que é composta principalmente por ramos de produção arcaicos e que requerem sobretudo uma força de trabalho pouco qualificada. Já a situação é muito diferente naquela manta de retalhos denominada serviços, que, com 15% da força de trabalho, é responsável pelos restantes 58% do PIB. Com efeito, os serviços médicos e farmacêuticos constituem a área mais moderna e dinâmica da economia sudanesa, sendo exportados para vários outros países do Leste de África. Nestas condições, os elementos mais activos do processo revolucionário encontrar-se-iam necessariamente nos serviços.
Assim, não espanta que a Associação dos Profissionais do Sudão (em inglês Sudanese Professionals Association, em que a palavra Professionals tem o sentido de profissional qualificado), a quem se deve a radicalização dos protestos, fosse inicialmente constituída por médicos, além de jornalistas e advogados. Posteriormente passou a incluir dezassete organizações profissionais, especificadas no site da Associação, e se algumas delas correspondem às chamadas profissões liberais, outras parece-me estarem mais próximas de trabalhadores qualificados, com especial incidência na área da saúde.
Mas para entender tudo isto seria necessário saber 1) qual é a forma social da relação entre a Associação e a massa dos manifestantes, especialmente durante as prolongadas ocupações, e 2) qual é a repercussão do movimento no interior dos locais de trabalho, especialmente nos campos (e note-se que aqui a Associação menciona unicamente a Associação de Especialistas da Produção Animal e, em inglês, a Association of Agricultural Engineers, cuja tradução é ambígua, porque engineers tanto pode significar engenheiro como técnico, mecânico).
Caro João Bernardo,
A antipatia do PassaPalavra é bem-vinda.
Poderia indicar alguma obra fundamental sobre o pensamento religioso que tivesse como perspectiva a ideologia religiosa como expressão das práticas sociais? Que fosse mais específica no tocante ao pensamento religioso.
Gratidão.
Abraço.
Marcos.
Caro Marcos,
Praticamente todos os historiadores competentes que abordem o pensamento religioso referem igualmente os problemas económicos e sociais, a não ser que a obra pretenda analisar apenas as questões teológicas. Estou a lembrar-me nomeadamente da última obra que li sobre o assunto, muito extensa — Diarmaid MacCulloch, Reformation. Europe’s House Divided, 1490-1700, que li na edição de The Folio Society, Londres, 2013 — com a vantagem de o autor ter uma formação teológica, o que lhe evita erros que outros cometem. Mas ele não deixa de levar em conta o contexto social.
No entanto, se você pretende autores que estabeleçam uma relação de determinação de infra-estrutura para superestrutura entre o económico-social e o religioso, então os dois nomes mais evidentes são Marx e Engels, sobretudo quando rompem com a esquerda hegeliana e nomeadamente com Feuerbach. Um marxista muito pouco ortodoxo que se interessou por estes problemas foi Ernst Bloch no seu Thomas Münzer. Théologien de la révolution (conheço o livro somente na versão francesa — Paris: Julliard 10/18, 1975).
Na obra que dediquei ao regime senhorial (Poder e Dinheiro. Do Poder Pessoal ao Estado Impessoal no Regime Senhorial, Séculos V-XV, Porto: Afrontamento, 3 vols., 1995, 1997, 2002) abordei em alguns capítulos o cristianismo e as heresias na sua relação com as contradições sociais, nomeadamente nos Vol. I, págs. 249-259, Vol. II, págs. 43-50, 159-174, 605-672 e Vol. III, págs. 595-623. Tudo isto está provido de notas com numerosas referências bibliográficas, de diversos quadrantes ideológicos, incluindo a historiografia soviética.
Espero que lhe tenha indicado material suficiente para você se entreter por muitos anos.
Caro João Bernardo, espero ter muitos anos de vida para o entretenimento que você dispôs. O neopentecostalismo atual me é um desafio. Muito obrigado. Abraço fraternal.