https://passapalavra.info/2019/08/127586/

Por Rita Delgado & João Bernardo

Quem, em Portugal, for da Ericeira para Santa Cruz, a meio do percurso atravessa Silveira e logo depois, na freguesia da Boavista, uma estrada, à esquerda, leva à Praia Azul. É aí, a escassas dezenas de metros da bifurcação, que se situa a casa do Sr. Jorge Soares. Modesta, de um só piso, com um pequeno jardim e cercada por um muro, nada a distinguiria de qualquer outra casa habitual nessa região se não fosse o Sr. Jorge Soares.

Pela arte que tinha dentro de si e o fazia ver coisas onde outros não vêem nada, o Sr. Jorge Soares foi modificando, compondo e adornando a casa, o jardim, o muro com materiais que encontrava, restos de obras, pedaços de azulejos, coisas quebradas, bonecos velhos. O primeiro exemplo que nos surge na memória é o de Kurt Schwitters em Hanover, durante a república de Weimar, incansavelmente construindo e acrescentando a sua coluna, a Merzbau, mas ela crescia dentro do apartamento, não no exterior. Depois, com a ascensão dos nacionais-socialistas ao poder, Schwitters fugiu para a Noruega e aí recomeçou a coluna, tendo depois de fugir para Inglaterra, onde incansavelmente a reconstruiu, também dentro de casa, até que a morte pôs fim àquela ânsia de morar no interior da arte. Poderíamos ainda incluir o Sr. Jorge Soares entre os praticantes da junk art, abeirando por vezes a arte povera, se ele fosse um profissional dessas coisas ou, pelo menos, um frequentador de galerias e exposições. Mas não. Ele fazia assim e daquela maneira porque era esse o olhar que possuía e eram esses os materiais de que, sem fortuna, podia dispor. Tecnicamente, a obra do Sr. Jorge Soares incluía-se na arte naïf, a arte ingénua, uma categoria por demais pretensiosa, como se a naïveté não devesse necessariamente mover qualquer artista, mesmo o mais erudito, como se toda a obra de arte — referimo-nos à arte, arte — não inaugurasse de cada vez a candura da visão. Mas, ao contrário da extraordinária construção envolvente do facteur Cheval, o carteiro Ferdinand Cheval, a obra do Sr. Jorge Soares era polícroma, onde a outra era monocromática.

Clique sobre as imagens para aumentá-las.

Uma vez que tinha havido uma guerra civil na Guiné-Bissau — contou-nos o Sr. Jorge Soares — vieram muitos refugiados e alguns instalaram-se aqui na Silveira. Todos os dias eu via passar uma africana muito bonita, e fiz este painel, com ela ao lado de uma sereia.

Nas últimas vezes que por ali passámos as persianas estavam fechadas e sobre a casa e o muro notávamos aquele inconfundível pó do tempo que cobre as coisas desertadas. Em Julho voltámos à Praia Azul. Por uma brecha derrubada do muro vimos um bulldozer que arrasava o jardim e se dispunha a escaqueirar tudo. O Sr. Jorge Soares decerto morreu, e o que irão os herdeiros fazer de uma moradia que não é uma moradia, mas é a imaginação materializada de quem ali viveu? Nesta época de selfies e de Netflix, a arte não interessa a ninguém.

Adeus Sr. Jorge Soares, artista.

As fotografias são de Rita Delgado.

6 COMENTÁRIOS

  1. Em tempos de just-in-time, tudo tem seu tempo definido. O inicio e o cabo são duas faces da mesma moeda. Lamentável destruírem algo tão belo, tão vivo, tão cheio de história – não aquela que a gente lê nos livros ou nos artigos acadêmicos, mas aquela que representa o todo e, ao mesmo tempo, as particularidades.

  2. Há no Rio de Janeiro uma casa assim também, felizmente preservada. Chama-se “Casa da Flôr”. Foi construída por Gabriel Joaquim dos Santos, trabalhador das salinas que, nas horas de descanso, fazia-se arquiteto recolhendo cacos de cerâmica, louça, etc., para embelezar a construção.

  3. Quatro anos depois, regressámos à Praia Azul. Da casa que foi a vida do Sr. Jorge Soares restam o muro do jardim e duas paredes exteriores. O jardim foi completamente arrasado e empilham-se agora materiais de construção. A casa foi reconstruída, pintada de branco como uma casa banal. Os bárbaros moram lá dentro, tranquilizados pela destruição da arte.

  4. Um psicólogo qualquer, se consultasse o sr. Soares, lhe colocaria na testa a pecha de Transtorno de Acumulador e lhe receitaria uma dose de clonazepam antes de dormir.

    Quem sabe assim não se mata a arte.

  5. Deve ter sido por medo de olhar para aquele grande espelho, ou por só ter o vazio para colocar diante do espelho é que o novo proprietário preferiu partir tudo, reconstruir o local e pintá-lo de branco, desancando a possibilidade de inaugurar ali a Casa Jorge Soares enquanto um espaço dedicado à arte e à reflexão coletiva. Por onde quer que andemos, e até onde a vista alcança, derrotas e mais derrotas se acumulam.

    Todos estes conteúdos aqui me levam a pensar, mais uma vez, em como a situação dos espaços de reflexão coletiva como os dos museus está caótica e lamentável. Por um lado temos as tais exposições imersivas, que para mim são feitas justamente para pessoas vazias, tanto para as que não tem capacidade de imaginar quanto para as que perderam esta capacidade. Talvez em breve os museus mesmo venderão bilhetes de entrada que darão direito a uma dose de uma droga qualquer que provocará alteração na consciência dos visitantes mais vazios das exposições imersivas. Por outro lado, me parece que já passou da hora dos museus reservarem pelo menos um dia da semana à entrada de pessoas que realmente visitam os museus para ver as obras de arte. Pois está praticamente impossível disputar espaço com toda essa gente que anda preenchendo o vazio com o narcisismo, a selfie e os vídeos.

  6. Enquanto no interior da Revolução Russa ocorria uma revolução estética e artística que seguia seu franco desenvolvimento, mesmo quando política e economicamente a revolução já resolvia negativamente suas ambiguidades em favor da burocratização e do capitalismo de Estado, levado a cabo pelo bolchevismo, Perry Anderson insistiu na tese de que os tempos dourados do marxismo revolucionário encerravam-se com o leninismo. O chamado “marxismo ocidental” seria então essa versão desconectada do movimento contraditório do real e da luta de classes, voltado agora a temas politicamente secundários, ou mesmo estéreis, como a arte, a filosofia e a epistemologia. A tese de Anderson, desprovida de validade empírica, politicista em sua forma porque desconsidera o impacto dos processos revolucionários em todas as esferas da vida, bem como a recíproca inversa, para além do objetivo jacobino da “tomada de poder”, segue ecoando por aquilo que ainda resta de uma esquerda que se reivindica marxista (para não falar dos anarquistas, onde a relação com a arte sempre foi pior). A arte segue teoricamente ignorada, enquanto na prática o capital, em todas as suas expressões sociais, democráticas ou fascistas, segue mobilizando-a em favor de sua reprodução. Até então eu não conhecia o trabalho do Sr. Soares. Infelizmente, nem eu, nem tantas outras pessoas virão a conhecer…

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here