Por João Bernardo
O nosso dicionário, pelo menos o meu, é o epitáfio de uma história de derrotas, e os verbetes sucedem-se como túmulos num cemitério: social-democracia, socialismo, comunismo, socialismo de novo, esquerda ou extrema-esquerda, anticapitalismo.
Social-democracia exprimia bem o que pretendíamos. Democracia — porque se reivindicava uma capacidade eleitoral independente do nível dos rendimentos e do montante do imposto. E socialismo — porque não se acreditava que o capitalismo concedesse o sufrágio universal. Mas o capitalismo, mais ou menos rapidamente consoante os países, foi passando do voto censitário ao universal e do voto exclusivamente masculino à admissão do voto das mulheres, deixando a social-democracia sem metade do seu programa. A outra metade, foi a primeira guerra mundial que lha retirou, quando no Verão de 1914 a maior parte da social-democracia abandonou o internacionalismo, que a caracterizava nas declarações de princípios, e passou a apoiar um ou outro dos lados beligerantes. Data de então a falência definitiva da social-democracia enquanto socialismo. Se não fora necessária para que o capitalismo instaurasse a democracia representativa, também deixara de servir aos trabalhadores para instaurarem o socialismo.
Foi nessas circunstâncias que nasceu o socialismo enquanto alternativa à social-democracia, promovido, ou reinventado, por aqueles que no meio da guerra mundial se mantinham fiéis ao internacionalismo. Mas, depois de terem sequestrado o processo revolucionário russo em Novembro de 1917, os leninistas depressa trituraram esse socialismo. Por um lado, exigiram que os socialistas adoptassem os princípios autoritários e centralizadores aplicados a partir de Moscovo. As vinte e uma condições para a adesão à Internacional Comunista, promulgadas no Verão de 1920, continham já potencialmente as duas linhas de desenvolvimento do stalinismo: o carácter ditatorial e a supremacia exercida pela direcção do Partido Comunista soviético sobre os partidos comunistas dos outros países. E assim os socialistas viram-se colocados perante o dilema: ou se convertiam em comunistas ou em sociais-democratas.
Entretanto, os leninistas esforçaram-se por precipitar na social-democracia todos os socialistas que recusassem a conversão ao leninismo. O destino de Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht simboliza o destino desse socialismo, assassinados com a conivência da social-democracia e deliberadamente esquecidos pelos leninistas, que lhes apagaram a memória da teoria e da prática. O leninismo esforçou-se por liquidar o socialismo de esquerda, que Karl Radek designara pejorativamente como Internacional II ½, porque era vital para a política soviética que não existisse uma alternativa entre o reformismo social-democrata e a ditadura bolchevista.
Contra a social-democracia e contra o socialismo, Lenin deu outro nome à sua especialidade política, que aparentemente retomava o objectivo final — comunismo. Mas à medida que se desdobraram a política leninista e a sua consequência lógica, o stalinismo, o comunismo ficou definitivamente associado ao autoritarismo, ao centralismo económico, à imposição de uma uniformidade de pensamento e ao controle da vida privada. Mais ainda do que sucedera com o termo social-democracia, a palavra comunismo passou a designar o seu exacto contrário, não a liberdade dos trabalhadores, mas a ditadura dos gestores.
Por isso o mal já estava feito quando Zinoviev inventou o conceito de social-fascismo, que até 1935 presidiu à doutrina oficial da Internacional Comunista, aplicado não só na Alemanha como em todos os outros países. Além de ser identificada ao fascismo, a social-democracia era mesmo considerada o seu elemento mais nocivo, o que explica que os comunistas alemães participassem em iniciativas conjuntas com os nacionais-socialistas, em nome da oposição ao tratado de Versailles, para concentrarem os ataques na social-democracia e na república de Weimar. Este absurdo não se limitou a facilitar a ascensão dos fascismos e sobretudo do nacional-socialismo de Hitler. Serviu ao mesmo tempo para consolidar o carácter inteiramente capitalista da social-democracia e para estreitar as relações dos socialistas com os sociais-democratas, já que os comunistas pretendiam que a esquerda do socialismo seria o mais perverso agente do social-fascismo. O plano era claro. Tratava-se de varrer o terreno da esquerda, para que não houvesse alternativa a Moscovo.
O espaço exíguo que apesar de Lenin, de Radek, de Zinoviev o socialismo conseguira manter foi liquidado pela Guerra Fria, quando nada sobrou entre o stalinismo e a democracia americana. Ou um lado ou o outro, o terceiro campo foi abolido. Ficou então eliminado qualquer traço que pudesse restar daquele socialismo. Não foi fácil para todos, e o drama da escolha marcou a vida dos que sobreviveram. Uma mulher muito inteligente narrou estas cisões de lealdades num dos grandes romances da época, Simone de Beauvoir em Les Mandarins. Alguns tiveram a sorte de morrer antes de serem obrigados a optar explicitamente, ou pelo menos publicamente, George Orwell, por exemplo, ou Victor Serge. Outros remeteram-se ao silêncio ou, como a toupeira, à obscuridade. E com tudo isto desapareceu a palavra socialismo, na acepção de um socialismo socialista.
As lutas estudantis e as lutas operárias autonomistas que nas décadas de 1960 e 1970 se difundiram por todo o mundo, desde a Califórnia até Shanghai, insuflaram no maoísmo um ânimo novo, distanciando-o do stalinismo e permitindo-lhe apresentar-se como um promotor das iniciativas dos trabalhadores comuns. Mas a Revolução Cultural foi rapidamente militarizada e maoísmo passou a significar uma ginástica rítmica colectiva com um pequeno livro vermelho na mão. Que nome nos cabia então a nós, os que prosseguíamos o autonomismo? Usaram-se denominações variadas, algumas meramente negativas, mas nenhuma vingou. Se nalguns países arrogantemente nos reivindicámos do esquerdismo com que a burocracia dos partidos comunistas nos insultava, noutros a designação não tinha curso e eram palavras diferentes que nos chamavam ou que nós empregávamos para nos chamar. Todo esse movimento se dissolveu, se fragmentou e degenerou sem deixar um vocábulo genérico. Liquidado o regime soviético e desaparecido com ele o termo comunismo, e extinta pela Guerra Fria a memória da velha palavra socialismo, ela voltou a ouvir-se num vago eco.
E o que lhe sucedeu? Poder-se-ia pensar que o comunismo tivera o mais trágico destino às mãos dos dirigentes soviéticos, não fosse Nicolás Maduro ter dado ao socialismo um destino ainda mais lúgubre.
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E agora, que termo usar? Há o recurso a esquerda ou extrema-esquerda, mas não pode haver mais sintética confissão de impotência quando, de palavras que exprimiam noções, se passa a termos que designam apenas lugares na geometria dos hemiciclos parlamentares. Chama-se hoje esquerda à ecologia e ao identitarismo, ou extrema-esquerda, quando gritam mais alto. Nem sequer é necessário aqui seguir um percurso secular de degenerescência, porque estas noções nasceram já degeneradas. A ecologia procede à apologia social e técnica dos sistemas económicos pré-capitalistas, como se não tivessem sido eles a desencadear os processos históricos que precisamente levaram ao capitalismo. E os identitarismos constituem, nesta época de globalização e transnacionalização, o sucedâneo dos nacionalismos, com o inconveniente suplementar de os nacionalismos serem circunscritos por fronteiras, enquanto os identitarismos se multiplicam ilimitadamente, à medida que são inventadas novas identidades.
Mas não é só no plano terminológico que as palavras esquerda e extrema-esquerda são uma confissão de impotência. São-no noutro plano ainda, porque nem a ecologia nem o identitarismo se pretendem de esquerda. É apenas a esquerda ou a extrema-esquerda quem hoje se pretende ecologista e identitária. Esta assimetria de vocações — em que os temas originais não se reivindicam da esquerda, mas a esquerda reivindica esses temas — revela em toda a sua dimensão a falência da esquerda actual. Julga que mascarando-se de outra coisa consegue ser alguma coisa. A esquerda não podia desvendar mais claramente a sua demissão.
Restava uma palavra, aquela que até há pouco tempo eu preferia, porque o seu significado me parecia incontroverso — anticapitalismo. Mas começaram a surgir nas ruas e até em parlamentos da Europa, na Catalunha, na França, na Itália e não só, grupos políticos que chamam anticapitalismo a um nacionalismo histérico, insultando ou mesmo agredindo os coitados dos turistas, criando dificuldades aos imigrantes, sub-repticiamente quando não o fazem explicitamente, e defendendo um programa económico populista, idêntico ao apresentando pela extrema-direita e pelos fascistas. Para essa gente, capitalistas são os outros, aquela identidade em que se projectam todos os ressentimentos, e assim o anticapitalismo perdeu o significado e ficou convertido num populismo.
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De cada vez uma palavra nova, para se sumir também na voragem. Percorrer os verbetes deste dicionário é seguir uma história de derrotas. Não aquelas derrotas em que podemos ainda salvar as bandeiras para novas batalhas, mas as derrotas em que tudo morreu, incluindo as esperanças. É certo que em grupúsculos políticos e em departamentos universitários de ciências sociais — não sei por que lhes chamam ciências — há profissionais encarregados de repetir palavras, para os militantes ou os alunos as recitarem. Mas falta-lhes o eco, porque o significado das palavras é-lhes conferido não por quem as profere, mas por quem as ouve e as entende. Quando as palavras não são entendidas, perdem a sua acepção e adquirem uma diferente, aquela que o público lhes dá. A partir de então é inútil repetir as palavras, porque quem as escuta compreende outra coisa.
O que posso eu dizer hoje que sou, sem provocar naqueles com quem converso a perplexidade ou a náusea? Que palavras sobram? Nenhuma. Terei, ou teremos, de inventar uma palavra nova? Mas as palavras são uma criação social, o significado delas é colectivo, uma palavra que seja compreensível somente para meia-dúzia de pessoas é como se não existisse.
Sucede algumas vezes que termos originariamente depreciativos se tornem depois de uso corrente e sejam empregues por aqueles mesmos que no início pretendiam ridicularizar. Foi o que aconteceu com impressionismo, cubismo, big-bang, esquerdismo. Mas hoje nem isso. Somos tão insignificantes que nem sequer nos usam como objecto de ironia.
Remetido ao grau zero, e já que o desespero não leva a lugar nenhum, vou proceder com método. As palavras só existem quando denominam alguma coisa, e o que é que o anticapitalismo pode denominar hoje?
As fotografias que ilustram este artigo representam uma biblioteca em Londres destruída pelos bombardeamentos da aviação nazi em 1940, durante a Blitz. Não conseguimos averiguar o nome do fotógrafo.
Esta série inclui também os seguintes artigos:
2. O dinheiro não é o poder
3. Dois lugares-comuns do nosso tempo
4. O sistema da vaca leiteira
5. Tudo se esvai em fumo
6. A utopia de uma sociedade transparente
Boa tarde Jõao Bernardo.
De todos os nomes e palavras que cairam em desgraça, ainda não tinha ouvido falar sobre as toupeiras obscurecidas, que cita rapidamente no texto. Quem foram essas toupeiras? Por que se enterraram em silêncio? Foram silenciados ou optaram por isso? Essas toupeiras obscuras seriam os grupusculos, palavra que sempre vejo em alguns textos seus e do Passa Palavra? Se pudesse falar um pouco mais sobre essas palavras. Vc teria algo que escreveu sobre, ou alguém que já se deu ao trabalho de falar a respeito, uma referência sobre o assunto?
Provocado por João Bernardo, escrevi esse thread, acho importante jogá-la também aqui:
A esquerda conseguiu alcançar um tamanho jamais imaginado. Somos milhões de esquerdista somente no Brasil. E daí? Não servimos para nada, pois a esquerda se transformou em mais uma identidade. Por isso é urgente o abandono da ideia de esquerda.
Ser de esquerda não passa por colaborar ativamente com a organização cotidiana dos trabalhadores, mas por frequentar determinado bar, dominar determinada linguagem ou usar determinada roupa. A esquerda, além de uma identidade, também se transformou em um padrão de consumo.
Mas tente convocar uma reunião, passar o chapéu pedindo dinheiro ou construir uma atividade coletiva… Você verá as mais diversas desculpas: estou ocupado, estou cansado, estou em depressão, estou, estou, estou…
Enquanto apenas mais uma identidade, a esquerda já não deveria ter nenhuma importância para o desenvolvimento das lutas… Caso não estivesse pautando os militantes.
O militante (ou ativista) é aquele que dedica tempo e energia para a mudar algo, fazendo um enfrentamento real e colocando em questão, infelizmente, a sua própria existência. Não há como ser militante sem se colocar em risco.
Esses sim, os militantes, são tão poucos quanto antes. Porém ainda existem, apesar de uma brutal diferença: muitos sequer são aceitos na esquerda, onde antes havia uma quase total confluência.
E, claro, com a substituição dos espaços públicos pelas redes sociais, alguns militantes rapidamente se convertem num produto de esquerda: um perfil do Twitter, um youtuber, um podcaster, o próximo a ser linchando e descartado.
As novas subcelebridades da esquerda pensam que estão pautando algo, formando uma nova geração, mas é a esquerda enquanto mercado de consumo e enquanto identidade que está determinado a produção delas.
E, desta forma, os militantes que não são aceitos pela esquerda ficam sem suas vanguardas, ou caem no ressentimento contra esses mesmos que continuam a tocar as suas vidas como se nada estivesse acontecendo, apesar dos likes, textões e encenações de desespero.
Gogol,
As toupeiras evocam a conhecida frase de Marx. Referia-me a todas aquelas pessoas que se confinaram em lugares discretos, que ficaram a militar nos seus lugares de trabalho, em secções sindicais, sem dar nas vistas, protegendo-se com a obscuridade. Foram muitos. Quantos? Ninguém sabe. Eu falei deles ou, mais exactamente, falei da situação que os gerou, numa série de artigos publicada neste site e intitulada Os náufragos, odiados pelos fascistas por serem comunistas, odiados pelos nazis por serem judeus, odiados pelos soviéticos por serem anti-stalinistas, odiados pelas democracias por serem anticapitalistas. A segunda guerra mundial e o seu prolongamento na Guerra Fria tiraram-lhes o pequeno espaço político de que ainda dispunham e apagaram-lhes a memória, quando não os mataram ou deixaram morrer. A geração autonomista que nas décadas de 1960 e 1970 se espalhou pelo mundo, desde a Califórnia até à China, teve de inventar tudo de novo. E o pior é que julgou mesmo que havia inventado tudo.
Caribé,
Essa esquerda que você tão bem ironizou é simplesmente um subproduto dos campi universitários. E chega aos quarenta anos de idade ou mesmo ultrapassa-os porque qualquer estudante preguiçoso, mas esperto sabe fazer render as bolsas e os subsídios e os sei lá o quê. Para empregar o velho jargão, os campi são a infra-estrutura, só que reforçada hoje pela sua reprodução virtual em redes sociais específicas. Os campi são os aquários onde vivem esses peixinhos — vermelhos, claro. Tire-os de lá, num ápice definham e morrem.
Existe a teoria e o pensamento, e aí se criam todos os termos. E aí tem a prática, onde pessoas que adotam essas denominações, que se identificam como comunistas ou etc fazem alguma coisa. Então você tem um termo que vem com uma teoria, mas aí esse termo acaba adquirindo um outro significado depois que se dá o fenômeno real. Mas cria-se um consenso sobre termos, momentos, e etc. O comunismo (por exemplo), tem esse significado negativo do regime de opressão, mas destacar esse termo ”comunismo” e associá-lo com a característica essencial que é a opressão do Estado e tudo mais também é uma opção. Geralmente quem mais efetivamente ”fabrica” ou tenta moldar os consensos sociais no campo ideal são aqueles que detém os meios de produção e circulação das ideias.. Enfim, se o ”comunismo” hoje tem esse significado negativado, descolado da sua proposta mais ”originária”, não seria somente através de uma nova prática associada a esse termo que se poderia recuperar seu significado, ou ainda criar um novo? Então de certa forma não seria, a princípio, ”não tão importante” a denominação que se dá e sim a prática que a acompanha? Tipo, se queremos recuperar o sentido de alguma dessas palavras será que não seria válido escolher uma delas e tentar atrelar a ela uma prática que passe outros significados..?
Ao mesmo tempo, parece que a própria denominação que se dá afeta a própria ação prática. Tipo, se um grupo de trabalhadores de determinado setor inicia uma prática política seja qual for, e se identifica como ”comunistas”, esse grupo, por mais que sua prática (ou sua proposta) estejam carregadas com o ideal do ”verdadeiro” comunismo, provavelmente sua prática já vai encontrar, logo de cara, problemas de adesão, de ”legitimidade”, de apoio, etc etc, porque são ”comunistas” ora bolas e se são comunistas não deve ser coisa boa.
Além disso, ao se iniciar uma ação coletiva, independente da denominação, as próprias propostas ou práticas serão instantaneamente julgadas e categorizadas e, como vivemos sob a hegemonia do capital, se nelas se identificar tendências originariamente socialistas, marxistas, etc, provavelmente o que se tentará é criar uma ideia de que tais grupos atrelados a tais propostas também teriam conotação negativa, é isso o que sempre acontece com qualquer movimento da classe trabalhadora ao ser notado. As propostas que são mais essencialmente ”contra a ordem do capital” são sempre esmagados.
Já estou divagando.
O que caberia então? Me parece que estamos ”presos” a essas armadilhas das práticas x significados ideais. Cabe uma ”nova” denominação? Bater o pé e tentar recobrar uma denominação já degenerada através de ”novas” práticas? Se qualquer ”nova prática”, ao ser identificada com tendências ”marxistas” vai ser negada/negativada, o que é que importa? O campo prático cria suas reproduções ideais mas aí essas reproduções ideais incorporadas ao corpo da sociedade como um todo passam a afetar as ações práticas.. num mundo dominado pelo individualismo subjetivo, o que é que importa, afinal?
João, gostaria muito que um dia escrevesse sobre os movimentos igualitaristas que são citados no seu livro Poder e Dinheiro, sobre os Taboritas e outros mais.
Abraço!
Gabriel,
Se entendi bem o seu comentário, a dificuldade com que deparamos é a mesma, só que você a encara por outra perspectiva. Mas parecem-me perspectivas convergentes.
Penélope,
Também eu gostaria, mas para isso ser-me-ia necessária outra vida, o que é difícil. Eram contextos ideológicos e sociais muito diferentes, e foi esses que eu estudei na obra que você refere. Mas para tratar extensamente da resposta ideológica e prática a esses contextos eu teria de aprofundar a relação entre o cristianismo medieval oficial e as heresias, bem como a influência exercida sobre este pensamento herético pelo misticismo islâmico, incluindo o misticismo judaico gerado na área islâmica da península ibérica. Muitos anos de trabalho. Para mais, há a grande questão de saber em que medida os anseios das heresias igualitárias teriam desencadeado os anseios dos primeiros movimentos proletários no capitalismo, todos eles de cariz religioso. Foi nessa perspectiva que Ernst Bloch abordou a questão. Existe um livro muito interessante e bem documentado sobre as ideias radicais na revolução inglesa do século XVII — Christopher Hill, The World Turned Upside Down. Radical Ideas During the English Revolution, cuja primeira edição data de 1972. É uma obra fascinante, porque se vê aí a articulação entre o mundo das heresias do regime senhorial e o mundo da contestação no capitalismo nascente.
Era exatamente sobre isso que eu pensava, as raízes religiosas do anticapitalismo.
Não me refiro a fazer um novo estudo, já que não há tempo, mas divulgar aquilo que está presente em Poder e Dinheiro.
Já quando li Economia dos Conflitos Sociais, o que mais me intrigou foi a referência aos místicos medievais e toda aquela parte filosófica, em especial Jacobi. Quando fui pro Poder e Dinheiro, destaquei o cristianismo herético e todo aquele igualitarismo revolucionário de caráter religioso. A história dos Taboritas é incrível.
Nunca entendi porque não se refere muito ao Poder e Dinheiro e porque não divulga em textos de internet aqueles revolucionários da fé presentes no livro. Seria muito bom se o fizesse!
Penelope,
Como você deve saber, Penélope era a esposa de Ulisses, e Ulisses tem sido um dos comentadores mais constantes do Passa Palavra, a ponto de este site lhe ter dedicado um artigo, que pode — e deve — ser lido aqui. Agora parece que a teia interminável de Penélope me envolveu a mim, e este seu segundo comentário fez-me imaginar um curto artigo que daqui a algum tempo, quando esta série tiver chegado ao fim, eu hei-de propor para publicação no Passa Palavra. Para já, fica a promessa
A história dos taboritas — e também dos albigenses, valdenses, lolardos, irmãos do livre espírito, arnoldistas, picardos, irmãos boêmios, irmãos apóstolos dulcinianos, fraticelli, bogomilos, begardos, humiliatas etc. — é a longa história dos conflitos sociais entre camponeses e senhores nas sociedades onde vigeram as variadíssimas relações senhoriais. Tais conflitos perduraram, ultrapassaram a Idade Média, chegando mesmo ao século XVIII e XIX em alguns lugares — arrastando consigo as utopias cristãs, em prática e teoria: é bem conhecida a linha de influências que vai de Joaquim de Flora, John Wycliffe e Jan Hus até Lutero e Calvino, assim como a alta estima com que os protestantes históricos trataram “heréticos” como valdenses e hussitas.
Guardadas as muitas diferenças de mentalidade, de cosmovisão, de momento histórico etc., o que parece unir certas linhas do cristianismo num só continuum não é o fato de serem propriamente anticapitalistas, mas de serem profundamente pró-comunitárias. Aceitam o que fortaleça os laços comunitários locais, as relações familiares, os arranjos produtivos locais, a autoridade comunitária tradicional etc., e rejeitam o que lhes seja contrário. Seus crentes aliaram-se ou rebelaram-se contra o poder régio, eclesial ou nobiliárquico ao sabor de fatos conjunturais, à medida em que estes poderes respeitavam ou atacavam aqueles laços, relações e autoridade.
É o que tenho chamado de “comunitarismo dos Atos dos Apóstolos“: estas linhas do cristianismo encontram inspiração em passagens como “E perseveravam na doutrina dos apóstolos, e na comunhão, e no partir do pão, e nas orações” (Atos 2:42); “E todos os que criam estavam juntos, e tinham tudo em comum” (Atos 2:44), “E vendiam suas propriedades e bens, e repartiam com todos, segundo cada um havia de mister” (Atos 2:45); “E, perseverando unânimes todos os dias no templo, e partindo o pão em casa, comiam juntos com alegria e singeleza de coração” (Atos 2:46); “E era um o coração e a alma da multidão dos que criam, e ninguém dizia que coisa alguma do que possuía era sua própria, mas todas as coisas lhes eram comuns” (Atos 4:32); “Não havia, pois, entre eles necessitado algum; porque todos os que possuíam herdades ou casas, vendendo-as, traziam o preço do que fora vendido, e o depositavam aos pés dos apóstolos. E repartia-se a cada um, segundo a necessidade que cada um tinha” (Atos 4:34-35) etc. É a apologia da vida comunitária. Ao mesmo tempo, é esta a principal fonte bíblica a inspirar a separação entre o “mundo” e a “igreja” — “Salvai-vos desta geração perversa” (Atos 2:40), “Mais importa obedecer a Deus do que aos homens” (Atos 5:29) etc. — atitude separatista e isolacionista responsável por tantas e tamanhas ilusões conservadoras, que demonstra as ambiguidades engastadas na principal orientação prática para a vida dos cristãos.
Tudo isto se pode encontrar num livro controverso, pouco recordado porque não é de historiador profissional; ainda hoje, mesmo com ressalvas em algumas passagens, ele pode servir como introdução a muitos temas na História: é a História do socialismo e das lutas sociais, do tipógrafo, jornalista e economista Max Beer.
voltando um pouco ao tema das palavras,
aqui na Argentina, “la izquierda” é sinônimo da frente de esquerda, essencialmente trotskista;
“trosko” significa qualquer coisa que faça crítica ao kirchnerismo por esquerda, qualquer pessoa que em lugares de trabalho, moradia ou estudo esteja “buscando problema” e não aceitando construir “em unidade” ou por meio de negociações com as autoridades.
É óbvio que em ambientes militantes a noite é menos escura e se vê bem o colorido de cada gato. Mas sem dúvidas em cada lugar, e mesmo no âmbito mundial, se nos interessa tal esforço de observação, existem tradições e sentidos históricos de cada palavra, em constante negociação.
Em dados ambientes, a palavra “partido” é profundamente rejeitada, mas estas mesmas pessoas que a rejeitam não encontrarão uma definição em comum para esta palavra. Como diferenciá-la de “organização”? A questão das palavras é ao mesmo tempo pouco importante e muito importante. Coisa estranha.
Manolo, João Bernardo e quem queira responder:
A substituição do cristianismo pelo marxismo como quadro ideológico dos trabalhadores não foi algo prejudicial? Teria existido Estado totalitário se o quadro ideológico fosse o cristianismo?
Penelope, é absolutamente impossível relativizarmos o já problemático conceito de “Estado totalitário”, e igualmente impossível empregarmos anacronicamente o conceito ao sabor de nossos desejos. Por outro lado, se por “totalitário” você quiser dizer algo como “tirânico”, “autoritário” etc., há que se colocar muitas ressalvas no que vai a seguir, mas decerto te interessará a história dos Estados Papais, verdadeiro reinado de mil anos existente desde quando o antigo ducado de Roma foi doado ao papa Estêvão II pelo rei carolíngio Pepino, o Breve, em 754, até quando as tropas do rei italiano Vitor Emanuel II completaram a unificação italiana sitiando e invadindo Roma, em 1870. Mesmo assim, mesmo sob os papados ultramontanos de Pio VII, Leão XII, Pio VIII, Gregório XVI e Pio IX, por mais autoritários, tirânicos e despóticos, não se poderá nunca dizer que tais Estados tenham sido “totalitários”. Quanto a esta substituição, impossível saber o que terá sido “prejudicial”, mesmo porque os dois quadros ideológicos citados coexistiram, coexistem e — malgrado o desejo dos ortodoxos de ambas as partes — influenciam-se reciprocamente.
Conheço próximo à nada do assunto, mas me parece ser impossível tentar colocar a questão de forma assim tão simples, apesar das tendências ”comunitaristas” (para emprestar o termo) acredito que tendo à concordar com o Manolo. Não só pelo exemplo que ele já deu, mas também porque acredito que seja difícil tentar ”enquadrar” as implicações de uma linha teórica e prática assim. Por mais que uma teoria implique uma prática com tendência anticapitalista, comunitária, etc, no decorrer do movimento histórico é impossível dizer que transformações ocorreriam e a alterariam. Talvez o que possa ser estudado seja em que medida as formulações práticas/teóricas desses movimentos são coerentes com a perspectiva marxista em questão de método, etc..?
Quanto ao tema. Parece que existe um paradoxo quanto às possibilidades de ação política visto que as relações materiais são afetadas pelas formas ideias socialmente difundidas e aceitas como norma.
Acho que esse tema tem a ver com as disputas que se dão no campo ideal, na propagação ideológica, na forma como o capital modifica termos para reformular seu conteúdo em seus aspectos mais anticapitalistas. Além da dificuldade evidente em criar uma prática partindo de ”nomenclaturas” ou ”conceitos” que já têm uma conotação corrompida, para atuar nessa disputa discursiva a ”esquerda” não detém os meios massivos de circulação e criação de informação e etc..
Aproveito essa onda para pedir recomendações de leitura ao autor e aos colegas. Onde, além de Marx e Engels, posso ler sobre a forma como o capital se interessa em capturar o trabalhador também pela sua subjetividade, sua forma de pensar? Especialmente nessa época de ascensão do neoliberalismo, da subjetividade total, do identitarismo.. isso me desperta bastante interesse.
Há um tempo atrás me peguei no dilema da nomeação das práticas e escrevi algo sobre um termo que penso ser importante firmarmos no campo anti-capitalista: o termo autogestão. Na época escrevi sobre as questões que me inquietavam… ” As vezes fico a matutar sobre um movimento típico no capitalismo: o da constante busca de apropriação, ou melhor, expropriação e cooptação do universo prático e conceitual que pode aferir-lhe negação. Inquieta como isso acontece não apenas com as práticas mas, também, com os conceitos existentes para pensar essas práticas. Por isso, a meu ver, reivindicar o nome autogestão [o projeto autogestionário e construir iniciativas autogeridas] é evidentemente uma questão política, uma luta política contra a expropriação.
Os conceitos são como ferramentas: o termo “autogestão” vem sendo utilizado historicamente para referir-se a uma construção social oposta às formas de opressões (formalizadas ou dissipadas no tecido social), às hierarquizações, ao individualismo (tipicamente fomentado pela concorrência mercantil), às formas de exploração e, enfim, à relações sociais que podemos caracterizar como capitalistas; em favor de um desenvolvimento real de uma outra prática: a “autonomia”.
De maneira geral, vivenciar práticas autogeridas, é vivenciar intensamente um sentimento de poder fazer as coisas de maneira autonoma, em ruptura com um controle exterior à ação que a submete. Trata-se de estar imerso numa realidade mas, estar, também, indo além dela, além da mesquinhez comum, da subjugação, rompendo com ela de forma prática.
No plano das palavras isso se repete… estamos imersos em uma realidade que é também linguagem. Para expressar essa prática nova que se constrói processualmente nas lutas, gostaríamos de dizer do que se trata de maneira também nova, mas nossas palavras nos obrigam a repetir muito mais do que “dizer”: temos a necessidade de definir essa realidade de ruptura, nova e transformadora, para comunicá-la, anunciá-la e partilhá-la e, para essa definição, não estamos interessados em criar neologismos, mas na partilha, na comunicação. Para o nosso desespero não mudamos de palavras a cada vez que mudamos de costumes. A palavra é compartilhamento.
No fundo, em alusão ao que dizia Tragtenberg, no que se refere à organização, padecemos de um “pecado original”, o de sempre saírmos do estabelecido, do real. É assim com a realidade prática e também com os conceitos, com ordenamento que fazemos das palavras que nomeiam as coisas e as ações.
O acontecimento do nome marca a tomada de consciência. Podemos renomear de modo novo essas praticas de autonomia e liberdade, mas corremos o risco de dissociá-las de um repertório existente, de uma perspectiva sobre a realidade material. Se vivemos em uma realidade social em que o exercício da autonomia está condicionado – limitado e expropriado – pela existência de classes; então; faz sentido pensar no desenvolvimento e na pertinência de uma forma de consciência específica sobre a realidade: a consciência de classe.
O termo “Autogestão” é uma classificação que refere-se a uma realidade de possibilidades de criação, de transformação e de exercício de autonomia que, sobretudo, está inserido em formas discursivas historicamente construídas. É, assim, um discurso político advindo de uma forma de consciência sobre ações que se delineiam num terreno prático: o da luta de classes. Por isso um termo político, uma leitura da realidade específica e não uma essência do termo.
Temos por urgência pensar o movimento de sufocamento que existe, não somente das práticas, mas também das palavras. Esse sufocamento, hoje, não se exerce tanto pela censura, mas, eminentemente pela cooptação. Talvez não nos faltem palavras, mas, ao contrário, talvez até nos sobrem: com significados diversos na amplitude da existência das diversas cabeças individuais. Cada prática tem as suas ideologias. E mais do que uma essência, é necessário pensar uma pertinência.
Temos que ter clareza disso, pois nomeando mal as coisas na análise e descrição de situações sociais e históricas que vivemos podemos contribuir é com a desgraça do mundo.
As palavras são arenas, são campos de batalha. Cabe escolhar as ferramentas que nos cabem à luta contra a subjugação, contra esse mutismo que nos aprisiona à amargura. Por uma autogestão consciente, classista e revolucionária.
De outra forma, recentemente ainda estive a pensar a questão da classificação e dos nomes, algo que dialoga com as reflexões anteriores e na ocasião me veio estas reflexões, ancoradas na de um conhecido autonomista …
A ação humana implica processo, fluxo coletivo, está em movimento constante e por isso revela-se como experiência. Gerúndio. O poder sobre o fazer humano intenta excluir a possibilidade do sujeito ativo, autônomo, sua potência. Sua linguagem é o indicativo, busca estancar, fragmentar, reificar, excluir o movimento, a contradição, as ambiguidades. Sua tendência é apontar a realidade como um sistema de signos matemáticos, ação-reação, causa-efeito, determinação. Nega o devir, apresenta a realidade como algo morto. Nega o subjuntivo. Como a Coruja de Minerva sob a terra arrasada, a Cassandra amaldiçoada, como quem observa o mundo desde a lua, desde longe, como se estivesse fora dele.
Temos que lutar por meio da critica para recuperar a ação dessas amarras, fazer da critica sub-versão criativa, dentro e mais além. Intervenção para a transformação.
Como disse, essas reflexões foram feitas à um tempo; o texto, me soa “provocativo” em relação à essas questões, sobretudo na parte final, pois parece apontar num sentido político diferente das reflexões que expus. Fico pensando em algumas questões… à tempos lia do autor que a autogestão da sociedade tem seu gérmen na autogestão das lutas. Essas experiências não desapareceram, muito embora rarefeitas no atual contexto. Ademais, me chama a atenção a crítica à ortodoxia, que reivindica as lutas como uma construção coletiva, várias cabeças e perspectivas construindo práticas coletivas, negativas. Quando se pauta a questão dos termos, dos nomes, e da ideia de que a luta de classes se desenvolve como processo (gerúndio), o processo de construção de resistências ao capital não seria polissêmico em algum sentido, tendo algo de heteroglossia no sentido Bakthiniano? Não faz sentido reivindicar os termos pela nausea que geram? É impossível ressignificá-los? Enxergá-los como arenas? Disputá-los? Não estão eles relacionados a questão da consciência da ação? Como articular essa “amargura” com os termos, conceitos e palavras que podem expressar nossas ações de resistência pensando o comportamento humano nos níveis da determinação da prática, da ação e da consciência da ação? Falo do texto ir num sentido diferente das reflexões que vinha fazendo porque penso que temos que ir a luta no plano conceitual… não podemos admitir que o capital assimile e ressignifique nosso vocabulário de luta, nosso repertório de ações. Ingenuidade? Ceder a amargura e ao pessimismo nesse sentido?
Molina,
A linguagem é uma construção social e eu limitei-me a constatar o que qualquer pessoa pode verificar quando não fica prisioneira das suas ilusões. Qual o sentido que as palavras adquirirão no futuro e que palavras novas surgirão, isso as lutas sociais o dirão. É certo que cada um de nós tem uma parte nessas lutas, mas uma parte muito pequena.
Além disso, é necessário não esquecer que este artigo é o primeiro de uma série de seis, e nos cinco artigos seguintes — dois deles já publicados — pretendo analisar os processos reais que levaram à desvirtuação das palavras. Aliás, no quinto artigo (previsto para o dia 18 de Setembro) a linguística ocupará um lugar importante na argumentação, mas num sentido decerto inesperado para si e para os demais leitores.
Note-se que existe uma sequência discursiva entre os artigos desta série, terminando cada um com uma pergunta que abre o espaço para o artigo seguinte.
Tenho acompanhado, anciosa.
Uma sugestão de leitura para o Gabriel é o clássico artigo do Althusser Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado.