Por Malvina Pretória Samuelson

Certo dia, uma colega bióloga técnico-administrativa em educação censurou o meu uso de ar-condicionado no trabalho. Afinal, em tempos de “aquecimento global” e cortes orçamentários, a trabalhadora que se vire no calor cerratense. Já o ar-condicionado do diretor à época, nesse não se podia mexer — nem no frigobar que ele tinha à disposição no gabinete.

A mesma trabalhadora, exercendo sua função de X9 patchamamada [*], um dia censurou de forma mais agressiva um colega terceirizado, jardineiro do campus. Este trabalhador, cansado das bicadas da coruja que o atrapalhavam no trabalho de roçagem e irrigação do gramado, decidiu um dia obstruir a entrada da toca do animal. Qual a reação pedagógica da educadora em ciências ambientais? Uma placa referindo-se à Lei de Crimes Ambientais e uma ameaça de prisão. Ele, que é preto, pobre, nordestino e pouco escolarizado, já está acostumado com ameaças policiais — mas ainda espera melhores EPIs e um soprador de folhas que lhe pouparia o esforço que tem com a vassoura. Já a colega, de tanto amor pelos animais, prefere poupar o trabalho árduo de arapongas e gorilas e assume tranquilamente esse desvio de função.

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Há cerca de dois anos, na escola onde trabalho, uma professora resolveu elaborar um projeto de horta orgânica, sem aditivos químicos e com sementes crioulas. O projeto quase não sai por conta do burocratismo que quase impediu o pagamento do tutor do projeto, mas felizmente tudo deu certo! Quase tudo. A produtividade da horta foi menor do que se esperava e muitas plantas morreram antes de se desenvolverem plenamente. A culpa foi de quem? Ora, mas é claro que dos estudantes participantes do projeto! Esses adolescentes irresponsáveis e inconsequentes perderam tanto tempo com estudos, truco, futebol e pegação que acabaram não indo aos sábados à escola somente para regar a horta. Algumas tubulações, algumas peças, um Arduino e um computador poderiam ajudar, mas será que assim os estudantes vivenciariam o bucolismo da saudável vida camponesa?

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O gabinete… ah, o gabinete! O diretor novo assumiu sem eleições, pois pelas regras da instituição um campus tão jovem não poderia eleger um ainda, mas aceitar um interventor vindo diretamente da reitoria. Ele chegou e já demonstrou ser bem discretão. Tão discreto que, sem consulta à comunidade acadêmica, decidiu reformar seu próprio gabinete, com frigobar incluso. Na mesma semana de início da obra, dois trabalhadores técnico-administrativos tiveram de passar de sala em sala informando que para o festival de artes em outra cidade não poderiam mais ir todos os estudantes, mas sim fazer uma seleção de pouquíssimos. Sabem como é, em tempos de congelamentos e cortes, a verba é pouca e não dá para todo mundo. Não satisfeitos com o informe institucional, os dois trabalhadores, freirianos demais para os padrões do instituto, convidaram os estudantes a olhar pela janela e questionar: se está faltando verba de diárias para estudantes irem a um festival de artes em uma cidade vizinha, de onde está saindo a verba para reforma do gabinete do novo diretor, do qual a maioria ainda nem sabia qual nome nem qual cara? A reação não poderia ter sido pior… para os trabalhadores denunciantes! A justificativa da direção e de muitos era de que a reforma era urgentíssima para garantir a privacidade do diretor e de seus atendimentos a servidores no gabinete. Já os docentes que testemunharam o ato de lesa corporação, alguns ficaram em silêncio, mas outros não ficaram calados e também deram seu recado aos estudantes: “Não escutem esses meninos! São incendiários e só querem atrapalhar a gestão!” Camarote pronto e com privacidade garantida. Aos trabalhadores do apoio pedagógico, que até hoje reivindicam uma sala com privacidade para atender aos estudantes, foi-lhes garantido um aumento real (de assédio moral, embargos e difamações).

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— Precisamos de você para elaborar um projeto de conscientização sobre uso de drogas por nossos estudantes adolescentes, porque isso já está sendo um grande problema que estamos enfrentando!

— Não acho que seja tão grande assim, se nos compararmos com outras escolas públicas por aí. Aliás, os maconheiros são poucos, tranquilos e já sabemos quem são, onde e quando fumam; o consumo de álcool e estudantes bêbados no ambiente escolar é bem esporádico, sendo bem mais comum em fins de semestre quando estão loucos para botar a escola abaixo. Eu acho mesmo que o maior problema de consumo de drogas aqui é do energético.

— Como assim?

— Nossa escola é de tempo integral e nossos estudantes ficam das 07:00 às 17:15 na escola, tendo que lidar com 17 a 22 componentes curriculares! Desse jeito, eu compreendo que esses adolescentes por vezes recorram às drogas. Mas para estudar de madrugada, virou uma moda tomarem energético, inclusive já estão reivindicando que a T. (vendedora de guloseimas na escola) venda energético. Em dias de provas específicas, alguns estudantes sempre passam mal. Muitos deles relatam que passaram a noite toda sem dormir e tomando energético para estudar.

— Mas tem de ver também que esses meninos não são responsáveis e são desorganizados, deixando tudo para a última hora!

— Não sei se é bem assim… viver a adolescência com mais de 20 componentes curriculares é algo que não sabemos como é… Inclusive, já percebemos que é sempre em dia de provas do L. e do V. que esses estudantes passam mal.

— OK, entendi. Está certo, tem que falar de energético também. Mas álcool é ilegal para menores e maconha é ilegal para qualquer um!

— Mas, e a questão que acabei de falar, que os estudantes têm sobrecarga de matérias, muito tempo de aula e pouco tempo de estudo, o que acaba levando-os ao consumo inconsequente de substâncias?

— Concordo, morro de dó deles. Mas isso não muda assim. Faz o seguinte: se candidata a representante do campus no próximo congresso institucional e proponha isso ao reitor!

— Hmm… não confio nessas instâncias “democráticas” da instituição, são meramente consultivas. Mas, e o que falei sobre a recorrência de estudantes passando mal de ansiedade e com os efeitos de excesso de taurina e cafeína? A esmagadora maioria é sempre em dias de provas do L. e do V., que são partidários do produtivismo extremo, dos resultados numéricos e são apologistas dos grandes cursinhos particulares. O V. já falou publicamente que, para lançar um estudante no mercado de trabalho, é preciso que a relação professor-estudante seja a mesma que a relação patrão-empregado! Não precisamos também de discutir alguns métodos?

— Não é você que defende a autonomia de trabalhadores e estudantes? Respeita a autonomia do professor então, a aula é dele!

[*] Para os leitores portugueses: X9 é um informador da polícia e patchamamada refere-se à Patcha Mama, a mãe-natureza ligada às divindades dos Andes.

Ilustram este artigo obras de Fernand Léger.

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