As discussões sobre o mapa e a rota e sobre a culpa dos naufrágios. Ulisses tem menos receio do mar do que dos marinheiros. Por Filoctetes

Se os personagens da Ilíada e da Odisseia fossem postos à solta nas cidades de hoje teriam de optar entre seguranças de discoteca ou guarda-costas de traficante, porque o mercado está mau para valentões com músculos. De todos aqueles gregos do poeta ceguinho só um sobreviveria com êxito, Ulisses, que entendeu o lugar político da inteligência e da astúcia. Por isso tem navegado até agora.

Instruído pela vida, que o levou a desconfiar dos tratados, no Passa Palavra Ulisses ocupa-se apenas dos textos curtos, os Flagrantes Delitos, que elucida com comentários mais curtos ainda. E fala-nos do universo, da história colectiva, das mulheres e dos homens, do trabalho e das pequenas coisas, porque tudo isto Ulisses viu e ouviu e nada o seduziu, mesmo que tivesse de se amarrar ao mastro para não ser levado pela sedução.

Fractais de espaço&tempo, os inapreensíveis quanta de cotidianidade estão grávidos de singularidades caósmicas. Olá! Alguma coisa se apresenta no horizonte, é a luta final e amanhã… Se o futuro não se apresenta, o presente não passa. Se o presente não passa, o futuro não se apresenta. Como sair então do ovo e da galinha da história? Grão que não germina apodrece; potência que não (se) atua(liza) fenece. E ficamos onde estamos, que é onde temos de estar porque não conseguimos sair do lugar.

Daí vêm as discussões sobre o mapa e a rota, se o melhor mar é o da cabeça ou o do coração e se o vento que impele as naus vem da força dos sentimentos ou do poder do dinheiro. Concepção “materialista” da história faz sentido, com aspas inclusas. Materialismo histórico não tem aspa que dê jeito… Mas são as coisas o que são ou o que vemos nelas? E serão só o que vemos? E a dialética? Materialista ou idealista é questão das mais complexas. Fiquemos, pois, com a inversão do genitivo: dialética da transfusão ou transfusão da dialética?

Mais acalorada ainda é a discussão sobre a culpa dos naufrágios. Há controvérsias. Segundo um grupúsculo pós-situ bordigokardecista, seriam leninistas desencarnados tentando post-mortem vanguardear as massas. Entretanto, psicogeógrafos e geopsicógrafos de aquém & d´além túmulo polemizam ferozmente. Quem (sobre)viver apresentará a versão final – enfim, a VERDADE… Há também comandantes de mar e guerra e grã-capitães, mas, se todos meteram água, como distinguir, lá no fundo do mar, o pechisbeque do aço inoxidável? Os anos 1970, que uma imprensa asséptica e/ou subserviente designaria como “anos de chumbo”, exuberaram fauna & flora com originais espécimes. Um deles, bipolarizado no dilema guerrilheiro x hippie, foi então contemplado com a alcunha de Comandante Patchuli. Todos se valem e Ulisses, que tudo viu e a tudo sobreviveu, redu-los à ironia, que é o cepticismo de quem não se resigna a não acreditar em nada. YOGA E SOVIETE compartilham a mesma raiz etimológica do sânscrito. Em lusobrasuca, temos união e jugo – tão dialéticas quanto aufhebung. Gargalhemos, pois, enquanto é grátis

Gargalha, Ulisses. “Faço humor, não faço greve.” Mas o trabalho aqui está, como lhe fugir? Vale a ilusão de que ter trabalho é ter dinheiro e ter dinheiro é ter liberdade? É a eufórica adoração do ‘tripalium’: escravos (assalariados ou não) felizes agradecem… Não há uma coisa ou outra nem uma coisa sem a outra, é a tal dialéctica, abolir a segunda é abolir a primeira, e inversamente. Abolir o direito, na justiça. Na práxis, abolir o trabalho e a preguiça. Sem meias-verdades e blefes. É o revir caos-errância da coerência. E quem pode acabar com o proletariado senão ele próprio, já que não serão os capitalistas a fazê-lo? Eis que já passa da hora de enfrentar o pseudoparadoxo entre pensar&agir “classista” e afirmar a tese “aclassista” da necessária autossupressão comunista do proletariado. Nem indecifrável esfinge, nem indigerível merenda: hic Rodhus, hic salta!

Para mais no Brasil, onde Ulisses encalhou, ou espero que esteja só raspando o fundo do barco para procurar depois outras bolinas. Se Ulisses conhece o Brasil como estrangeiro — Estrangeiro sem dinheiro, valha a rima pobre! Aliás, pobre ou moneyless é antes de tudo estrangeiro em Pindorama. E, se além de proleta for negro, indio ou pardo (sic) periga de levar porrada. No mínimo… Se conhece o Brasil como brasileiro — Ditadura ou democracia: numa, rodízio de generais; noutra, vice confiável marimbondo de fogo, play-boy fanfarrão defenestrado, sociólogo marxista arrependido, ex-operário salvador e ex-guerrilheira heroica – todos presidentes da sereníssima república de Pindorama, desde 1964. E o poder continua onde sempre esteve. Reforma agrária é só uma consigna phuturível.

Não há para onde fugir nesta navegação sem fim. A moenda do capital tritura ossos e músculos; canaliza o sangue, o suor e as lágrimas dos escravos assalariados, que, reduzidos a bagaço, são lançados à vala-comum do desemprego. O pior é que, na maioria das vezes, a vítima – especialista num truque que facilita a extorsão de sobretrabalho – colabora prazerosamente com o algoz numa servidão voluntária. Especialistas em nada (ver Debord), revolucionários são os que combatem sem tréguas os bonecos de ventríloquo do kapital e demais recuperadores da luta proletária.

É que Ulisses tem menos receio do mar do que dos marinheiros, e se é necessário abolir tanto o trabalho como a preguiça, como fazê-lo sem abolir também os declamadores? Alguém, talvez p(r)o(f)eta disse: “Vanguarda? Não existe guarda mais vã!”. O dever de todo revolucionário é, pois, [agir no sentido de] tornar-se desnecessário. A alternativa é tornar-se nocivo: um membro da nova (?) classe dominante.

Ah! Não esqueçamos. Será que existe ainda a hipótese de um matriarcado que dê cabo da sociedade paternalista? Um pouco mais tarde, o feminismo politicamente correto já escreveria el@s & el*s. Tornou-se o(m)nipangenericamente correto também – somos tod@s & tod*s mulhomens e homulheres… Estamos então no mesmo saco, atrelados pela mesma trela, e as vanguardas não são mais esperançosas do que os vanguardos.

Neste ponto da viagem vimos o que vimos e só não sabemos quando não queremos olhar. A hiperespetaculosidade levada às últimas consequências: o delírio autorreferido. É o recomeço do que não acabou porque nem sequer começou. Virtual absoluto, sem começo nem fim: o (re)começo do nada.

Apesar disso Ulisses não desiste. Não desisto: ataraxia & Chet Baker. Ex-fumante, espero. Pássara neo-reichiana sugeriu exercícios e massagens bioenergéticos. Crer para ver. Ulisses não desiste de indagar, até encontrar a derradeira pergunta, a da impossível resposta. TATU OR NOT TATU. Vicedicção: híbrido de Ornitorrinco e Celacanto = ornitocanto em ritornelo proliferante. That´s the koan… Ou será esta? KOAN PATAFÍSICO: Quantos a) between fazem um among? & b) among cabem num between? Quem rizomatiza corpos sem órgãos (ver Artaud) indaga e responde.

13 COMENTÁRIOS

  1. Um dos melhores textos publicados no site. É de estranhar o pequeno número de comentários. Aproveitando a referência oswaldiana, infelizmente , tavez, as massas ainda não estejam preparadas.

  2. Chico,
    difícil estas estarem preparadas, se a iconoclastia só faz sentido retomando os próprios icones que se propõe a destruir, icones desconhecidos e distantes das massas. Isso, ao menos, é o que me parece.

  3. Chico, certamente “as massas ainda não estão preparadas” para entender a arte de um texto difícil ou obscuro. Assim como a elite não está preparada para entender e dialogar com as massas.

  4. Oi Leo,
    De qual elite você está falando e por que, aparentemente, lhe preocupa o fato dela “não está preparada para endender e dialogar com as massas”?
    Abraço!

  5. Olá Fernando,

    O que escrevi não tem sentido em si, para mim, senão relacionado ao comentário do Chico.

    Sendo assim a elite que aludo é aquilo que não é ‘as massas’ do comentário do Chico, e que escrevem coisas que as “massas despreparadas” não entendem.

    Não sei se estou preocupado com o fato da “elite não estar preparada” para qualquer coisa que seja. Novamente, a frase tem seu sentido na crítica ao comentário do Chico. Ou seja, por que se levanta que as massas não estariam preparadas? o problema é das massas ou de quem não sabe dialogar com ela? Essa é uma típica visão elitista. Se não entendem o que eu falo é por que quem ouve não está preparado (não se coloca se o problema não está com quem fala).

    abraço

  6. Mensagens do passa palavra chegam aos naufrágos ilhados. Agumas são decifradas, outras não. As derrotas podem levar a melancolia e inação. A negação ao fazer por fazer, maníaco. O sábio rompe as teias da loucura. Solitário/ solidário, tenta ajudar os outros.

  7. Bela mulhomenAgem àquele que desti(n)(l)a sua po(h)e(re)sia nesse eSPAsso-palavra, rompendo paz-a-gens e québr(io)ando cio-lenços de cat-arro e laesgrimas derr-amadness in-vão. Isca fã ex adristas poder-hão de consaturar: aqui ulisses prantosenvocou (sem-querer-querendo) e palmasmodelou (esca-poliu), mOSTRAndo que siquiz-S poder-ria (in)ter(dito) aos bicudos-sisos mal-humolhados: eu paLavro tu paLarva.

  8. Pablo (“como um trator é vermelho”) suprassumiu o Finnegans Wake, para gáudio de James Freud.
    Tácito, Filoctetes persevera. Com cinismo e inocência, diria Nietzsche…

  9. capa(citado) nos artigos e substantivos. Ganha-se pela primeira vez em comentários proverbiais que metem bronca e estão para além de uma Aufhebung hegelo-marxiana. Mistério impassível engendrado por Dadá e patafísica (Dadafísica) como condição de fusão entre Ulisses e Pablo! Uliblo ou Pablisse? Sapiência amada do cinismo adorado que graçou nessas terras quando se percebeu que nada é sério! E ulisses ainda rema independente do vento!

  10. beAMONGtween quarta pessoa do singular
    teouglas estoutra fusão de criador e criatura ou mesmo doutônio soltando rojão e quiçá de má catadura oxalá engravidem com passapalavralises carrolljoyceanas outro (mais um!) exuberante folhetim panarômico & pindorâmico: breadandbutterflies 4[n]ever
    EREWHON terceira margem do rio

  11. Uma ilusão se vende: se Ulisses ouvir esse canto, ainda que vá ao fim do mundo, voltará pra se matar nessas águas. É sábio não, é o contrário disso…

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