Por Arthur Moura

O cinema crítico contemporâneo está em impasses determinantes para sua sobrevivência e manutenção. Este cinema está em permanente crise e modifica-se rapidamente por conta da própria dinâmica a que estão submetidos seus produtores que carecem de apoio e alternativas de distribuição. Neste sentido é importante esboçarmos alguns primeiros ensaios na compreensão da natureza desse vasto campo de produção, ainda que disperso, para que os produtores também se apropriem dessa crítica teórica e possam fazer uso no sentido da busca por superar condições históricas a que está submetida a arte combativa. É bom ressaltar que a dinâmica política e econômica local e global é determinante para este cinema. Para comunicadores independentes, de uma forma geral, as coisas também caminham por aí. O que se conclui quase que automaticamente é que os diversos campos da comunicação devem interagir como forma de desbravar caminhos difíceis, cifrados.

O cinema convencional de cunho comercial depende das TVs, rádios e jornais corporativos já historicamente comprometidos com a indústria cultural. O cinema alheio ao mercado depende das rádios comunitárias, sites, blogs e portais de esquerda ou independentes, canais de TV online, jornais, revistas e demais canais. Uma das primeiras tarefas para a integração dessas mídias é a produção de um mapeamento de estruturas comunicacionais dispostas (a partir do seu caráter político principalmente) a se integrar numa relação de ganhos compartilhados, distanciando-se de qualquer unilateralidade ou instrumentalização das relações. Produzir uma teoria para o desenvolvimento do cinema independente é tarefa árdua, muitíssimo necessária.

E o que é este cinema que chamamos independente? O cinema de uma forma geral depende (para sua existência) de todo um aparato técnico, de pessoal e distribuição capaz de levar a cabo seus objetivos que são comunicar, tocar, sensibilizar o público, que passa a interagir com a sétima arte, criando íntima relação entre aquilo que é visto na tela e a própria realidade concreta material. O cinema subdivide-se em diversas categorias, não tendo uma universalidade nem mesmo em suas formas de fazer, da produção, dos temas e formas de se abordar determinado tema, da estética, dos valores ou sonoridades, das formas de se montar ou distribuir. A condição material e intelectual do produtor é o que determina num primeiro momento a natureza e o caráter do cinema independente. O cinema é estratificado, sendo uma das principais barreiras para o cinema independente justamente a indústria cultural ou as formas de mercado na organização das produções, o que acaba por determinar aquilo que deve ou não ser visto, quando e como.

O cinema independente não necessariamente responde a anseios revolucionários. Ele, num primeiro momento, quer apenas existir e expor ao outro suas expressões sinceras. É no processo de afirmação que ele depara com as contradições do campo social, o que faz com que busque por respostas aos atravancos a que se percebe submetido. Se este cinema despertar algum interesse utilitário do mercado, a conciliação com tais interesses passa a reverberar em suas expressões e posturas, o que acaba por dispensar que se desperte em si a singularidade de um pensamento disruptivo devido ao seu novo lugar, que muitas vezes pode ser ilusório, pois o mercado é uma instância contrarrevolucionária. A gênese, portanto, do cinema independente acaba por agregar um valor de mercado ao invés de ressaltar suas qualidades antagônicas a este meio cifrado. Este nem por isso é parte de qualquer movimento automático, mas de intensas negociações e crises entre as partes, mas principalmente para o artista produtor, pois inexoravelmente leva-o a aderir a todo um conjunto de relações antes inexistente ou que simplesmente negava em sua prática existencial.

São notórios os ganhos para a arte quando o sujeito histórico produtor está munindo-se de antemão dos descaminhos das vias de mercado. É óbvio que essas dificuldades não são novas, exclusivas do nosso tempo. O cinema do passado experimentou isso antes. Mas muito antes de almejar inserção nas redes de mercado, o cinema independente deve resolver os problemas inerentes à sua condição. Na década de 60 a questão para a militância de esquerda, segundo Reinaldo Cardenuto, era:

“Como circular a arte de engajamento nacional popular para um público amplo se o mercado existente estava estruturado para contemplar o produto comercial e estrangeiro?” (A economia do cinema nacional popular – comentários em torno dos anos 1960. Cardenuto, Reinaldo).

A produção de Cinco Vezes Favela foi bem-sucedida, apesar dos poucos recursos advindos da União Nacional dos Estudantes (UNE) e do Centro Popular de Cultura (CPC), mas fracassada na distribuição, ficando em cartaz somente uma semana. Com relação a outros campos da arte de esquerda o dramaturgo Vianna Filho, segundo Cardenuto, questionou a capacidade do Teatro de Arena contribuir para a conscientização das massas pelo fato de estar restrito a um público reduzido de pagantes.

“Um movimento de massas só pode ser feito com eficácia se tem como perspectiva inicial a sua massificação, sua industrialização. É preciso produzir conscientização em massa, em escala industrial” (Vianna Filho, 1983, p. 93).

O CPC pensava que para resolver esta equação era preciso levar a arte crítica às pessoas que precisavam de ter contato com essas expressões. Segundo Cardenuto, “Na tentativa de concretizar esse processo, o CPC foi às ruas cariocas encenar peças-pílula (textos de mobilização política com curta duração) e chegou a realizar diversas intervenções em espaços comunitários até seu encerramento compulsório com o golpe militar de 1964.” Por outro lado, era preciso não dificultar este contato com o típico experimentalismo do Cinema Novo.

“Na opinião de Carlos Estevam Martins, primeiro presidente do CPC, o artista de esquerda, para estabelecer uma comunicação efetiva com o povo, deveria se apropriar das experiências estéticas convencionais, já testadas pelo mercado cultural e, portanto, bem recebidas por um amplo público.”

Em contraposição, coloca Cardenuto:

“Considerando ingênua a premissa de Carlos Estevam, de acreditar na linguagem comercial como forma de conscientização política, Glauber defendeu o choque de olhar, a adesão a uma nova visualidade que proporcionasse ao espectador um distanciamento crítico: não reconhecendo a estética convencional, sem identificar-se com o filme na chave da experiência clássica, o público participaria de uma reflexão autêntica sobre o país, de incorporação ideológica da miséria e do popular, que operasse o rompimento com o cinema estrangeiro de reafirmação do colonialismo, além da negação de uma filmografia nacional modelada pelos valores do ocupante (as chanchadas em especial)”.

A polêmica sobre distribuição foi levada a cabo pelo Cinema Novo, colocando como necessidade a industrialização do cinema nacional, fundamentalmente creditando no Estado a intermediar este processo, também por vezes participando a burguesia nacional. Estes naturalmente passaram a ficar de fora com o golpe de 1964. O imperialismo e sua indústria hollywoodiana foram vistos como o principal empecilho.

O cinema nacional, de uma forma geral, superou o problema central de distribuição da produção nacional, existindo hoje uma indústria notável que movimenta largos recursos. Não só a produção nacional foi incorporada, como a diversidade desse produto nacional. No entanto, assegura a poucos as condições materiais e a distribuição das várias estratificações desse cinema nacional. O contexto político atual, todavia, passa a desassistir este cinema nacional, taxando-o de esquerdista e contemplando um cinema conservador revisionista, que emerge das sombras como propaganda da política ultraliberal.

A crítica de Cardenuto à crença do Cinema Novo no Estado e na burguesia nacional como força indispensável neste amplo processo de produção e distribuição é válida, pois estas estruturas são muito pouco confiáveis, pela instabilidade dos regimes e interesse geral da burguesia como classe dominante. O cinema crítico não pode ser refém dessa dinâmica. Obviamente que o cinema independente não criará uma bolha em torno de si, capaz de se blindar contra forças estranhas. Este cinema está completamente imerso nas contradições sociais e, mesmo que atravessado por essas forças (e muitas vezes ter de se curvar perante elas), mantém como determinação alguns elementos fundamentais:

• a conscientização dos trabalhadores e oprimidos;
• avanço e transformação da arte;
• a denúncia contra todo um conjunto de opressões;
• a sobrevivência e emancipação dos produtores, artistas e trabalhadores da arte.

Para garantir estes objetivos com firmeza é precisa a associação dos produtores numa articulação capaz de garantir o sucesso das determinações. Este processo envolve:

• recursos e condições materiais;
• conhecimento teórico revolucionário;
• organização.

Já podemos ter com clareza a leitura de que o desafio colocado ao cinema independente, de esquerda, combativo é maior do que se imaginava na década de 60, já que o apoio que parecia determinante é sazonal e não raro se voltará contra as expressões artísticas de esquerda, fragilizando ainda mais tais expressões. A alternativa que resta é a auto-organização dos produtores.

Ilustram o artigo cenas do filme Um homem com uma câmera, de Dziga Vertov

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