Por Santiago Assunção

Bolsonaro acaba de lançar o manifesto de um novo partido que, em comparação com o partido da Ditadura Militar que lhe serve de inspiração, faz com que este último pareça “quase uma legenda centrista”. Para além da demagogia anticorrupção, contra a “degradação moral” e a favor das “boas práticas” e dos “bons costumes”, o partido buscará articular “todos aqueles que desejam um Brasil realmente grande, forte e soberano”, isto é, “trabalhadores”, “empresários”, “militares” e “religiosos”, “pessoas leais ao Presidente Jair Bolsonaro”, “aliados em ideais e intenções patrióticas”, aqueles que se opõem aos “larápios”, aos “espertos”, aos “demagogos” e aos “traidores que enganam os pobres e os ignorantes”. Algo que espanta é que nem mesmo o manifesto de lançamento da Ação Integralista Brasileira trazia a lealdade a um líder indicado pelo nome próprio como fundamento da nova organização: fica claro que Bolsonaro busca criar um partido que lhe sirva de sustentação e que ele ao mesmo tempo possa controlar com poder absoluto; além disso, fica claro que o novo partido terá desde o início a vocação de difundir o culto à personalidade do presidente, não mais algo restrito aos guetos bolsonaristas nas redes sociais, mas uma verdadeira política de Estado. Quanto ao público-alvo do manifesto, à massa que ele pretende manobrar, estes são aqueles que, articulados, passam a compor os eixos clássicos do fascismo, o eixo conservador e o radical, conforme conceituados por João Bernardo.

E é realmente disso que se trata: ( a ) a consolidação do poder pessoal de Bolsonaro — leia-se: do clã Bolsonaro — sobre o partido ao qual está filiado; ( b ) o reforço do poder pessoal de Bolsonaro sobre o próprio Estado, na medida em que ele tem encontrado muitas resistências aos seus avanços autoritários e à sua recusa a se submeter ao decoro esperado do ocupante da presidência e aos mecanismos tradicionais da política democrática (negociações, compromissos, mediações, pragmatismo), vindas dos demais poderes constituídos e de diversas instituições; e ( c ) o reforço do seu poder pessoal de mobilização e enquadramento da massa popular bolsonarista e sobretudo da massa popular antipetista. Tudo indica que, com essa iniciativa de criar um novo partido em torno de si, Bolsonaro está prestes a criar uma instituição capaz de articular os eixos clássicos do fascismo num movimento centralizado: de um lado, as igrejas evangélicas; de outro, membros das Forças Armadas, das polícias e de outras instituições que compõem à sua maneira o poder punitivo do Estado e estão a serviço da manutenção da ordem, instituições estas que tendem a apoiar o exacerbamento do aspecto repressivo do Estado e a imposição de restrições cada vez mais graves às garantias individuais (por exemplo, o lavajatismo); de outro, uma ampla gama de movimentos conservadores, que ocupariam aí o lugar dos sindicatos; por último, as milícias, que pelo visto têm relações muito próximas com a família Bolsonaro. Se Bolsonaro tiver sucesso nessa empreitada, estará consumada, portanto, a criação de um movimento fascista no sentido clássico no Brasil: até agora é um fascismo difuso, mas será, a partir de então, um movimento fascista centralizado nas mãos do presidente.

No que se refere ao lavajatismo, é preciso levar em conta que o seu principal combustível foi, é óbvio, o antipetismo, talvez por causa da notável capacidade do PT de integrar, manipular e aperfeiçoar os mecanismos da dita “velha política”, do “sistema” tão odiado por grande parte da população; talvez porque o antipetismo representasse um precioso instrumento para a afirmação de uma pretensa nova “classe política”; talvez pelo desprezo reacionário nutrido pelos membros da Operação Lava Jato e congêneres contra os governos petistas e as esquerdas em geral; talvez por tudo isso ao mesmo tempo. Seja como for, na medida em que Bolsonaro e o bolsonarismo assumiram o papel de forma de realização dominante do antipetismo, é natural que o lavajatismo, ainda que com certo desconforto, se alinhe em última instância ao atual governo. Além do mais, a presença do principal expoente e condutor do lavajatismo no governo — estamos falando, claro, de Sérgio Moro — favorece ainda mais esse alinhamento. Adicionalmente, temos ainda outra situação: o PT foi obrigado a encampar uma luta em defesa das garantias individuais perante o recrudescimento do autoritarismo e do populismo penais, luta esta que tinha de levar necessariamente à imposição de limites à atuação do Ministério Público, das polícias e do Judiciário. É natural, portanto, que o Ministério Público, as polícias e o Judiciário punitivista — em defesa do poder ampliado de que desfrutam hoje, poder este que não é apenas político e que também possui repercussões econômicas, na medida em que a luta contra a corrupção é um meio para um fim, qual seja, o acesso a vultosos orçamentos — se reúnam no campo oposto ao do petismo.

Já no que se refere aos movimentos de direita enquanto substitutos dos sindicatos na conformação do novo fascismo brasileiro, é preciso levar em conta que, na atual configuração das relações de trabalho no capitalismo, a precarização extrema associa-se à crise generalizada dos tradicionais sindicatos, algo que, por sua vez, está relacionado à diminuição da relevância econômica do Estado nacional — o tradicional mediador na relação capital x trabalho — perante as corporações transnacionais. Nessas condições, os movimentos de rua assumem o protagonismo das lutas sociais. De nada valem, portanto, os sindicatos para o bolsonarismo, que aliás associa até mesmo as tradições históricas de burocratização e aparelhamento das mobilizações autônomas dos trabalhadores ao “comunismo”, um demônio que precisa ser exorcizado. Por essa razão, é entre os movimentos de rua de direita, muitos dos quais surgidos na esteira do Junho de 2013, que o fascismo bolsonarista haverá de recrutar grande parte dos componentes do seu eixo radical.

Enfim, com essa evolução, Bolsonaro terá então finalmente se desvencilhado de uma das tendências dentro do PSL (não demorou, foi logo no primeiro ano de governo), a tendência daqueles que buscavam consolidar o PSL como um partido da ordem integrado ao sistema político tradicional, que fizesse política no sentido tradicional do termo; estes convergiam com aqueles que, assumindo cargos no governo, pretendiam, já superada a fase das eleições, sintonizar o governo com a dinâmica do jogo democrático. Um dos primeiros a cair foi Gustavo Bebianno, que teria caído em desgraça com o presidente depois de trazer o vice-presidente de relações institucionais do Grupo Globo para o Palácio do Planalto. “A intenção”, segundo reportagem do The Intercept, “era abrir um canal de diálogo com a emissora depois do caso Queiroz, mas Jair Bolsonaro gravou um áudio indignado para Bebianno: ‘Como você coloca nossos inimigos dentro de casa?’”. Outro ex-colaborador do presidente, o general Santos Cruz, considerava as “tretas” sem fim do governo “um show de besteiras”: “tem muita coisa importante que acaba não aparecendo porque todo dia tem uma bobagem ou outra para distrair a população, tirando a atenção das coisas importantes”, declarou o ex-ministro, concluindo que “não é porque você tem liberdade e mecanismos de expressão, Twitter, Facebook, que você pode dizer o que bem entende, criando situações que atrapalham o governo ou ofendem a pessoa”. A última a cair foi Joice Hasselmann, que quis fazer de Bolsonaro “um estadista”, e um que respeitasse as instituições. Disputas internas à parte, inclusive ligadas a ambições eleitorais, o fato é que a imagem da deputada como líder do governo no Congresso confundiu-se com uma imagem pouquíssimo apreciada pelo bolsonarismo mais “antissistêmico”: “o que foi visto”, segundo esta reportagem sobre a aprovação de um dos projetos do governo com a mediação da deputada, “foi um governo funcionando como governo: fazendo acordos, cedendo em alguns pontos e cumprindo o combinado, inclusive com a oposição. Ainda há insatisfações, claro, e os problemas não estão todos contornados, mas os relatos andam no sentido de que o Planalto tem agido de maneira mais pragmática em sua relação com o Legislativo”. Para viabilizar a aprovação da reforma da previdência, Joice Hasselmann se dispôs a conversar com todos, inclusive com a oposição. Um governo funcionando apesar de Jair Bolsonaro, e que além disso está disposto ao diálogo e ao compromisso, é um governo que não precisa de Jair Bolsonaro: daí a necessidade de se livrar desses parceiros incômodos. Além disso, com um novo partido criado em torno de si, Bolsonaro terá condições de levar até as últimas consequências a sua política demagógica “antissistêmica”, do “não compromisso”, da “nova política”, só que completamente submetida à sua vontade e à do núcleo familiar do governo, permitindo-lhe mobilizar a massa bolsonarista para uma reestruturação autoritária do Estado. É uma nova fase do governo e do fascismo bolsonarista, uma fase para a qual as esquerdas e as organizações de trabalhadores infelizmente não estão preparadas.

Não é que o governo deixará de lado sua agenda mais pragmática, fruto de um pacto mais ou menos estável com os chefes dos demais poderes; essa agenda, principalmente no que se refere às reformas econômicas desejadas pelo empresariado, o governo deverá se esforçar para que seja preservada. Mas, ao mesmo tempo, e deve-se ter em mente a conjuntura de retomada de protestos mais ou menos radicais na América Latina e em outros continentes, sem contar uma nova conjuntura aberta com a soltura de Lula, o governo tentará criar condições mais favoráveis para uma mobilização sem freios de suas bases mais fanáticas — buscando ainda contagiar o antipetismo não propriamente bolsonarista — para o apoio a uma escalada autoritária que deverá ser cirurgicamente direcionada contra as esquerdas, pelo menos num primeiro momento: em relação ao “novo AI-5”, que poderia resultar de um plebiscito, segundo Eduardo Bolsonaro, o general Heleno declarou: “tem que estudar como vai fazer, como vai conduzir”.

A libertação de Lula é um fator importantíssimo no momento. Membros do próprio PT mostraram-se preocupados, e com razão, com a possibilidade de a soltura de Lula fortalecer o apoio a Bolsonaro. A polarização gerada pela soltura de Lula já pode ser sentida no cotidiano. E o fato é que a polarização favorece unicamente ao fascismo, porque a esquerda, além de estar dividida, é hegemonizada por uma fração que precisa de necessariamente trabalhar por uma aliança com o centro, enquanto a direita (os tucanos sob Dória, por exemplo) vai sendo empurrada cada vez mais para a extrema-direita, aproximando-se do campo do fascismo, ainda que em conflito constante com Bolsonaro e seus filhos: de outro modo, tornar-se-ia mais um alvo fácil para a cólera antipetista. E, como o centro está em crise, pressionado entre os dois extremos, a esquerda será contagiada pela mesma crise. Essa necessária aproximação da esquerda com o centro, mas um centro débil, capaz de manobras institucionais mas incapaz de conter as pressões vindas das ruas, é o que explica, por exemplo, o namoro atual de Ciro Gomes com Rodrigo Maia e o DEM: “desde a eleição do Rodrigo [Maia] percebi que precisava acertar o passo com eles, em que deixe nossas diferenças de lado e vamos ao que nos é comum. Defesa dos ritos e limites democráticos. E, dado que eles estão no poder e nós não, a contenção de danos. […] Agora recentemente sentamos e abrimos uma conversa sobre eleições municipais. Muito boa conversa, de profissional”. Entretanto, Lula fará de tudo para impedir uma recomposição do centro não hegemonizada pelo PT, como aliás fez durante as eleições. E, seja como for, numa situação de extrema polarização, o eleitorado tenderá a se pronunciar obrigatoriamente a favor ou contra o PT (ou melhor, a favor ou contra Lula), a favor ou contra Bolsonaro, e a estratégia de Lula consistirá justamente em fazer do PT e de si mesmo as únicas antíteses possíveis de Bolsonaro, estratégia esta que será também utilizada com sinal trocado por Bolsonaro para isolar a direita e a centro-direita.

O PT não é de extrema-esquerda. Porém, em 2013, a esquerda moderada hegemonizada pelo PT foi fortemente abalada por mobilizações que buscavam retomar a luta de classes e combater a burocratização nos movimentos sociais e em outras organizações de trabalhadores, mobilizações que, diga-se de passagem, vinham ocorrendo desde muito antes de 2013. Essa esquerda classista e antiburocrática, contudo, logo se esfacelou por conta própria, simultaneamente à emergência de um fascismo de extrema-direita e de outro de extrema-esquerda, o identitarismo. Quase tudo o que restou daquela esquerda classista e antiburocrática — e também o fascismo identitário, que, por exemplo, necessita de um governo comprometido com as ações afirmativas para impulsionar para o alto da pirâmide social suas novas elites — aderiu ao petismo, mais particularmente ao lulismo mais personalista (é uma decorrência lógica da sua dependência em relação à estrutura partidária petista e à sua recondução ao governo para que possa sobreviver), ou então aderiram ao neostalinismo virtual. Além disso, é preciso ter em mente que, quando Bolsonaro emergiu como o homem forte das direitas, as esquerdas precisaram se reunir sob o manto protetor do seu homem forte, o qual só poderia se confundir com a figura de Lula, que segue combatendo qualquer outra personalidade que possa concorrer com ele nesse sentido. O que ocorreu então foi uma recomposição da estrutura de aparelhamento da extrema-esquerda por parte do PT: desde as dissidências petistas — o PSOL, por exemplo — até participantes das mobilizações que desembocaram no profundo abalo sofrido pelo PT em 2013, todos tiveram de sustentar a campanha do Lula Livre. Assim, o PT — a moderação por excelência — passou a se confundir cada vez mais com a extrema-esquerda, enquanto que, desde a era Lula, mas sobretudo na era Dilma, ambos os campos vinham passando por um processo de diferenciação. Então, de fato, temos dois extremos em situação de polarização, e nesse processo o centro se esfacela. O processo eleitoral de 2018 consolidou essa situação, porque, antes do resultado do primeiro turno, boa parte da centro-esquerda vinha se recompondo em torno da figura de Ciro Gomes (a candidatura de Lula estava no limbo e Haddad estava em stand by). A duplo fracasso de Ciro — primeiro em se afirmar como nova personalidade agregadora das esquerdas e depois em chegar ao segundo turno — impediu uma recomposição do centro a partir da esquerda, favorecendo a polarização. O problema é que a recomposição da extrema-esquerda em torno do PT força-o a adotar uma postura que lhe deixa desconfortável. Lula percebeu isso e subiu o tom do discurso, alarmando dirigentes do próprio partido. Bolsonaro seguiu o mesmo caminho. Seja como for, enquanto os ânimos de acirram, Lula esperará o momento mais favorável para voltar à postura conciliadora de sempre. A libertação de Lula, portanto, nos coloca numa rota irreversível rumo à radicalização da polarização Lula x Bolsonaro, PT x bolsonarismo, pelo menos por enquanto. E o centro também não foi capaz de revigorar-se a partir da direita: Maia, Huck, Marina, etc., nenhuma dessas candidaturas vingou.

Enfim, é este o quadro em que a classe trabalhadora e os anticapitalistas haverão de lutar a partir de agora. Por fim, uma última provocação: se nos causa espanto — pelo menos a mim causa — a criação de um partido que servirá para promover o poder pessoal e o culto à personalidade de Bolsonaro, não nos deveria espantar ainda mais a redução do PT e da maior parte das esquerdas a algo muito semelhante?

1 COMENTÁRIO

  1. Esta notícia (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/11/lula-prega-polarizacao-e-diz-que-nao-da-para-ficar-no-meio-do-caminho.shtml) confirma minha análise, na medida em que, em primeiro lugar, demonstra que Lula fará de tudo para polarizar com Bolsonaro, e que, em segundo lugar, o PT, enquanto a fração hegemônica na esquerda, terá de necessariamente buscar uma aproximação com o centro, o mesmo centro que ele mesmo contribui para que fique espremido entre os extremos.

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