Por Marcelo Lopes de Souza

Nenhum ambiente social é mais diversificado que a grande cidade contemporânea — e isso, por si só, já contribui para torná-la simpática aos meus olhos. Desconfio um pouco de certos arroubos ou simplificações, tão comuns hoje em dia, que exaltam a “diversidade” e a “alteridade” de maneira um tanto apriorística e ingênua; afinal de contas, uma identidade skinhead, supremacista branca e/ou fascista (ou qualquer “alteridade” intolerante e reacionária) não é algo a ser saudado, mas sim combatido sem trégua. Apesar disso, a grande cidade, mesmo com toda a massificação e toda a atomização que a caracterizam, não deixa de ser um caldeirão sócio-espacial fervilhante, fonte potencial de criatividade cultural e política.

É nessa grande cidade ou metrópole de nossos dias que, na esteira da ascensão cultural e (socio)política da afirmação de identidades específicas, em luta contra tipos de opressão particulares — racismo, dominação masculina e homofobia são as situações de maior destaque —, foi gestada e vem se tornando popular a noção de lugar de fala. Se nos lembrarmos de que há uma tradição, inclusive nas esquerdas (especialmente naquelas de matiz mais autoritário), de alguém falar em nome de outro alguém (o “povo”, as “massas” etc.) e de, a partir daí, pretender guiar esse outro alguém (o Partido como guia do “proletariado”, por exemplo), me parece difícil não ver como saudável uma tentativa de desafiar qualquer usurpação de protagonismo político e social. Todavia, como já dizia Hipócrates: a diferença entre o remédio e o veneno está na dose.

Até não muitas décadas atrás, predominava nas esquerdas um “classocentrismo” exagerado que, como hoje percebemos bem, inibia o exame aprofundado de diversos tipos de opressão que são irredutíveis à exploração do trabalho assalariado. Por mais que o capitalismo tenha, historicamente, instrumentalizado o racismo e o machismo, ambos não são inteira ou automaticamente resolvíveis por meio de uma hipotética superação do capitalismo. Além do mais, racismo e dominação masculina (e homofobia) obedecem a lógicas até certo ponto próprias, a ponto de jamais ter sido difícil encontrar militantes socialistas que fossem, ao mesmo tempo, racistas e/ou machistas de trabalhadores anônimos a, digamos, Proudhon ou Marx. “É preciso compreender o contexto histórico em que viveram”, dirão seguramente alguns, e o dirão com certa razão; só que isso não elimina nem o fato nem o embaraço político-ideológico que ele nos causa, o qual deve ser enfrentado.

A questão é que, se antes a classe e a luta de classes gozavam de uma excessiva centralidade, às custas da adequada problematização de outros tipos de opressão e da devida valorização de outras agendas emancipatórias, passamos, nas últimas décadas, a testemunhar o inverso: a começar pela própria esquerda (ou pelo que passa por “esquerda”), já quase não se fala mais de classes ou luta de classes. Em visceral imbricação com isso, vemos que, na esteira de uma em si mesma necessária crítica do economicismo, a maior parte do discurso socialmente crítico passou a ser quase inteiramente alheio às questões econômicas, aos processos e às estruturas impessoais e de larga escala (dinâmica do “sistema mundial capitalista”, novas tendências e estratégias do capital etc.) e, ao fim e ao cabo, à problemática da exploração do trabalho. Em meio à fragmentação de identidades fortemente autorreferenciadas, que são as que dão o tom de grande ou mesmo da maior parcela dos protestos e ativismos que ganham o mundo a partir desse palco político privilegiado que são as metrópoles dos nossos dias, uma das dimensões emancipatórias mais cruciais que vão tombando e correm o risco de sucumbir de vez é a do universalismo, e junto com ela também uma outra, a da solidariedade entre diferentes.

“Universalismo” é um termo que causa calafrios naqueles que, influenciados pelo discurso “pós-moderno” de crítica aos chamados “grandes relatos”, se acostumaram a enxergar qualquer pensamento de universalização de direitos (seja o trazido pelo Iluminismo, seja o representado pelo anarquismo clássico, seja, ainda, o prometido pelo marxismo) como inevitavelmente “homogeneizador” e “inimigo do respeito às diferenças”. Essa interpretação, porém, precisa ser questionada, à luz dos estragos que tem causado. Algumas provocações nessa direção:

1) A eliminação da divisão de classes não deve, sem sombra de dúvida, ser um non plus ultra da luta anti-heterônoma, mas ela carrega uma peculiaridade que vai muito além de nos obrigar a tematizar todos os fundamentos econômicos (relações de produção, tecnologias, organização espacial etc.) da exploração do trabalho: superar a divisão de classes é algo ontologicamente muito distinto de superar o racismo, o machismo e a homofobia (ou os preconceitos contra portadores de deficiências mentais, a intolerância em face de idosos ou crianças etc. etc.), pois só podemos eliminar as classes ao ultrapassar o modo de produção que as sustenta e justifica, mas não podemos pretender erradicar o racismo suprimindo os brancos, erradicar o machismo suprimindo os homens, e assim sucessivamente.

2) O capitalismo não pode, por definição, sobreviver à superação da divisão de classes e da exploração do trabalho. Mas ele pode, hipoteticamente ao menos, conviver com uma superação do racismo e do machismo, e mais ainda da homofobia e de outros tipos de opressão de cunho cultural-identitário. (E antes que alguém se apresse em dizer: “Ahá! Eu sabia! Ele está, no fundo, querendo reintroduzir o “classocentrismo”, desejo esclarecer que não se trata de postular uma centralidade absoluta da exploração de classe sobre outros tipos de opressão, mas apenas de chamar a atenção para uma especificidade crucial e valiosíssima da luta de classes, de um ponto de vista emancipatório radical. Se pessoas foram e continuam a ser preteridas, desprezadas, ofendidas, humilhadas e até mortas por sua cor de pele, seu gênero ou sua orientação sexual, muitas vezes independentemente da posição de classe, é evidente que a exploração de classe não poderia assumir uma primazia analítica que esvazie a relevância intrínseca de outras clivagens e iniquidades.)

3) A problemática da exploração do trabalho conseguiu dar amplo espaço para valorizar a solidariedade entre diferentes de uma maneira que se arrisca a ser perdida na presente quadra da história. Marx, Bakunin, Engels, Kropotkin, Reclus, Malatesta, nenhum desses pensadores antissistêmicos possuía origem operária. Aqueles de berço humilde, como Proudhon, foram antes a exceção do que a regra. “Um punhado de homens brancos”, já escuto alguém vociferar… E é justamente essa desqualificação sumária, tão em voga nesta nossa época de análises de fôlego curto, que pretendo criticar: a despeito de diversas controvérsias teóricas e algumas polêmicas de fundo ético-político (que o digam aquelas em torno de Proudhon, com sua misoginia e seu antissemitismo, ou mesmo de Marx, com suas tiradas de sabor racista e seu eurocentrismo), não seria pura e simplesmente insensato e obtuso negar o quanto esses e outros pensadores ajudaram a entender mecanismos de opressão, assim alimentando insurgências e resistências?

4) Por fim, o que dizer daqueles numerosos casos em que a denúncia do racismo e do machismo parece ter como horizonte, consciente ou não, a ascensão social no interior da sociedade capitalista? Isso decerto que não lança o descrédito sobre as lutas antirracista e antimachista em geral, mas tampouco e muito menos serve para ungi-las como autossuficientes, de um ponto de vista emancipatório. (Quando a anarquista Emma Goldman criticou as suffragettes pequeno-burguesas que, no início do século XX, superestimavam o potencial libertador supostamente contido no direito ao voto feminino, sua desconfiança era exatamente desse tipo.) O que queremos, afinal: que não existam mais elites (vale dizer, assimetrias sociais estruturais), ou, meramente, que mais negros e mulheres passem a integrar as elites? Não abundam os indícios de que a primeira opção desfrute de uma ampla maioria. A propósito, se a maioria dos negros e das mulheres não é apenas discriminada negativamente nos terrenos cultural e sociopolítico, mas acima de tudo explorada, não se está a lançar um olhar de classe média sobre os negros e as mulheres quando são banalizadas ou secundarizadas a exploração econômica e a divisão de classes?

Muito se fala, atualmente, em “interseccionalidade” como uma solução contra o privilegiamento de um único eixo de opressão. Tudo indica, entretanto, que essa solução tem se mostrado fraca, por ser o problema bem maior do que alguns supõem ou gostariam de admitir. É sintomático que os textos que expõem o conceito de “interseccionalidade” costumeiramente privilegiem a intersecção de duas opressões, o racismo e a dominação masculina (a essas acrescentando-se, umas tantas vezes, a heteronormatividade sexual), ao passo “classe” e “capitalismo” tendem a comparecer como “notas de rodapé”. Pior ainda, o abuso das generalizações a propósito dos “brancos” e dos “homens”, por mais que a indignação e os ressentimentos derivados de séculos de espezinhamento racista e machista sejam compreensíveis, constitui uma biologização que cria cegueira para com o fato de que muitos homens brancos também foram e são explorados, e que os seus “privilégios” decorrentes da cor da pele ou do sexo muitíssimas vezes se mostraram extremamente relativos ou até mesmo inexistentes. (No Centro-Sul do Brasil, aliás, muitos homens e mulheres nordestinos, vistos frequentemente como brancos, são, não obstante isso, objeto de um racismo bastante peculiar, ao serem insultados, como aparente alusão às raízes indígenas, de “cabeças chatas”, “sem pescoço” e outras pérolas equivalentes.)

Tudo isso me leva a formular uma pergunta fundamental: existiria, sempre, apenas um lugar de fala privilegiado (negro, favelado, mulher, LGBT etc.), que garantiria, à maneira de um “discurso competente” (para recordar a expressão de Marilena Chauí), uma legitimidade total e a priori? Sem sombra de dúvida, se uma dimensão universalista der margem à pasteurização político-filosófica, essa deturpação precisará ser denunciada. Mas o que a presença de uma dimensão universalista e, a seu reboque, a solidariedade entre diferentes permite é, justamente, compreender que as opressões particulares associadas ao ser negro, mulher, gay, idoso etc. não podem e não devem ser superadas sem a solidariedade dos não-negros, homens, heterossexuais, não-idosos, e por aí vai, pelo fato de que, de alguma forma, dizem respeito a todos e envolvem todo mundo. Ninguém pode falar pelos negros enquanto negros, pelas mulheres enquanto mulheres etc., mas não é necessário ser negro, mulher etc. para ter algo a dizer sobre as opressões correspondentes e se solidarizar e colaborar com os oprimidos que as sofrem. Alguém que se solidarize com outros indivíduos que padecem diretamente tipos específicos de opressão pode ter uma contribuição relevante a dar para as lutas a partir dos seus diversos lugares de fala, em várias escalas de ação: a universidade, o sindicato ou a associação de moradores; a cidade ou região em que se vive; a América Latina; o mundo. Sim, o mundo: no limite, ele também é um lugar de fala, aquele que nos remete a uma solidariedade essencial com todos os humanos (e até com os não-humanos!) submetidos à exploração, à dominação, a injustiças e a crueldades. Negar por completo a legitimidade de uma dimensão universalista, em vez de apenas compreender os seus limites, implica eliminar essa escala fundamental, com toda a sua carga epistêmico-política emancipatória.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here