Por R. Delgado

O vírus SARS-CoV-2 e a pandemia de COVID-19 em números

Começo por um resumo da situação, e peço desculpa aos leitores que já sabem tudo o que vou dizer nesta parte inicial.

O vírus identificado pelos cientistas como SARS-CoV-2 corre agora pelo mundo, provocando a doença COVID-19, que já é uma pandemia. No início os sintomas são os de uma gripe normal, mas provoca pneumonias graves num número significativo de pessoas e leva à morte muitos dos infectados, especialmente os que têm outras doenças associadas — sistema imunitário diminuído, doenças respiratórias, hipertensão ou diabetes, sobretudo em idosos com mais de 70 anos.

Apesar de reconhecido pelos cientistas como não demasiado perigoso, neste momento a taxa de letalidade desse vírus a nível mundial é de cerca de 5,5%. Os dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) do dia 6 de Abril apontam para mais de 1,29 milhões de pessoas infectadas, 70.590 mortos e só 270 mil considerados recuperados, num total de 190 países. No entanto, a Itália, país que foi a porta de entrada do vírus para a Europa em Fevereiro deste ano, tem na mesma data 128.948 casos positivos confirmados e 15.887 mortos, ou seja uma taxa de letalidade de 12,3%. A Espanha caminha um pouco atrás, mas com um percurso equivalente se não pior (12.641 mortes e 131.646 casos, uma taxa de letalidade de 9,6%). O Brasil, que teve a primeira contaminação muito mais tarde do que a Europa, já conta com 11.298 infectados e 489 mortos.

O que leva então a este aumento descontrolado de mortos? Por um lado, o SARS-CoV-2 tem um poder de contágio brutal, e sem qualquer confinamento da população a taxa de crescimento dos infectados em cada dia é exponencial. Por outro lado, há um certo número de portadores do vírus que não apresentam qualquer sintoma e, sem se aperceberem, vão infectando os outros.

A juntar-se a isto, a pandemia apanhou desprevenidos os cientistas, porque o vírus é novo nos humanos. Não há vacina nem drogas específicas para o seu tratamento. Várias empresas lançaram-se na corrida, mas nenhuma vacina estará no mercado antes do início do próximo ano, mesmo queimando algumas das etapas usualmente necessárias para aprovação pelas entidades reguladoras em qualquer país. As drogas seguem um percurso idêntico, e não houve sequer tempo para os cientistas chegarem a um medicamento específico para esta doença.

Apesar de todas estas desgraças, a OMS está a coordenar um estudo com utilização de algumas drogas já existentes no mercado e que têm sido usadas para combater outros vírus, como o ébola, a malária, VIH (AIDS) ou outros coronavírus que apareceram em humanos nos últimos tempos, embora sem gerarem pandemias. Este será eventualmente o tratamento mais seguro, que poderá poupar muitas vidas nos próximos meses. Outro tratamento que foi aplicado na China com bons resultados e começou agora a ser testado em Itália é a plasmaterapia, que significa retirar sangue de um indivíduo curado da COVID-19 e aplicá-lo por transfusão num doente em estádio grave, para reforçá-lo no combate à doença.

A tudo isto junta-se a situação mais ou menos precária dos sistemas de saúde em todo o mundo. Se, com raras excepções — se é que as há — em situação normal os sistemas de saúde já respondem mal e nalguns casos pessimamente, e só quem tem dinheiro consegue tratar-se em tempo útil, em caso de pandemia é um descalabro. No entanto, já que nos últimos tempos se tem falado em possíveis pandemias, como a gripe A, o SARS ou o MERS, sendo estes últimos também vírus do tipo corona, os hospitais deveriam ter mais meios em reserva para acautelar e poupar vidas.

A juntar ao caos criado nos países que foram apanhados desprevenidos, nomeadamente a Itália e Espanha, como a COVID-19 ataca os pulmões, os doentes na fase aguda precisam de aparelhos específicos, os ventiladores, para os ajudar a respirar e assim combater a infecção. Em situação normal os hospitais têm poucos ventiladores e, assim, assistimos actualmente a uma luta entre países para se apoderarem desses aparelhos, chegando a haver máfias que tentam desviar para um dado país aviões com carregamentos de ventiladores comprados por outro país. Foi o que aconteceu na semana passada com um avião desviado de França para os Estados Unidos, enquanto a Turquia retém em Ancara um avião com equipamentos comprados por Espanha para os desviar para o serviço de saúde turco, e o serviço secreto israelita, Mossad, “admitiu a existência de uma batalha encoberta para assumir o controlo do fornecimento de ventiladores a qualquer custo”.[1] Para além da falta de ventiladores, nota-se a falta material de protecção para os médicos, enfermeiros e auxiliares hospitalares, como luvas, máscaras e vestuário protector. A falta deste equipamento tem levado a que uma parte, por vezes significativa, dos médicos e demais pessoal hospitalar fique infectada e, obviamente, indisponível para tratar os doentes, tendo morrido já um grande número deles.

Políticas adoptadas pelos vários governos

Com este panorama em fundo, oferecem-se dois cenários para combater a pandemia: ou se poupam vidas humanas ou se poupa a economia.

Para poupar vidas há um único meio — isolar as pessoas em casa e restringir-lhes os movimentos, com os governos a impor estados de emergência ou ainda mais rigorosos, como estados de alarme. Deste modo transforma-se a propagação do vírus de uma curva exponencial para uma curva mais achatada, poupando tanto mais vidas quanto mais rigoroso for o confinamento da população.[2] [3] [4]

Quando insistem em poupar a economia, os governos não procedem a qualquer acção de confinamento, como se se tratasse de uma gripe normal, e esperam que a propagação da infecção crie a imunidade geral da população. Esta foi a preferência de Boris Johnson no Reino Unido e de Trump nos Estados Unidos, e tentada por Bolsonaro, se este não fosse travado e ultrapassado por alguns estados e pelo ministro da Saúde. Nos primeiros dois casos, a propagação rápida da doença e a invasão descontrolada dos hospitais pelos infectados, em sistemas de saúde impreparados para os receber, levou à inversão desta via, recorrendo-se à tentativa de contenção tardia da população. O atraso na contenção imediata do processo levou ao disseminar da doença e a grandes perdas de vidas, mas nos dois casos ainda só assistimos ao início do percurso e estamos longe do balanço final. Os modelos matemáticos indicam que, se for deixada a COVID-19 propagar-se normalmente, sem qualquer confinamento, o resultado somaria um milhão extra de mortos.[5] Além disso, salvar vidas não é bom só para os próprios, para os amigos e para a família, é também um benefício económico.[6] Ao que tudo indica, a contenção da população é compensada pelo salvamento de vidas, essenciais para o futuro funcionamento da economia.[7]

Vivemos num regime capitalista, que obviamente favorece as classes dominantes, embora dependa dos trabalhadores para poder sobreviver. Mas no caso desta pandemia são os velhos que morrem em maior número. Isto não só não prejudica a quantidade de membros da classe trabalhadora, que sairá mais robusta porque imunizada, como faz diminuir o peso das pensões de reforma e evita a sobrecarga dos sistemas de saúde devido ao acréscimo de gastos e ao aumento do número de doentes. Além disso, há sempre maneira de aproveitar as crises para grandes negócios, e a corrida ao fabrico dos ventiladores é só um exemplo.

O cinismo das classes dirigentes é tão grande que, na União Europeia, os ministros das finanças holandês e alemão opuseram-se à emissão de eurobonds, que poderiam apoiar economicamente os países da Europa do sul, mais afectados pela propagação do vírus. O ministro holandês certamente apoiou-se no epidemiologista clínico do Centro Médico da Universidade de Leiden, Frits Rosendaal, que declarou que “em Itália, a capacidade dos Cuidados Intensivos é tratada de maneira muito diferente. Lá eles incluem pessoas que não incluiríamos porque são muito velhas. Os idosos têm uma posição muito diferente na cultura italiana”. Na Holanda, os pacientes mais idosos ficarão a receber tratamentos em casa, considerando-se que, dadas as poucas hipóteses de sobrevivência, será mais “humano” deixá-los nos seus lares.[8]

De uma outra perspectiva, tanto os médicos italianos quanto os espanhóis, e talvez no futuro os de outros países, têm de escolher a quem dar uma oportunidade de vida e a quem deixar morrer, em ocasiões em que os hospitais estão atolados de infectados e há uma sobrecarga de doentes a precisar de ventiladores. Por outro lado, em Guaiaquil, no Equador, a cidade com mais infecções por COVID-19 naquele país, perante as queixas dos familiares das vítimas pela dificuldade em conseguir caixões de madeira, as autoridades, disponibilizaram caixões de cartão canelado, “para que as vítimas mortais desta doença possam ser enterradas com dignidade”.[9]

Os estados de emergência permitem aos governos ensaiar e manobrar o comportamento dos cidadãos para futuras ocasiões, se não mesmo usá-las no momento actual. Assim, tanto a China como a Coreia do Sul desenvolveram sofisticados sistemas de controle e localização dos cidadãos, justificando-os com a necessidade de monitorizar os infectados para avisar quem deveria ficar de quarentena. Isto é sem dúvida útil nesta situação concreta, mas fica testado para outras situações muito diferentes. Os governos podem agora impedir greves em serviços essenciais, como no sector da saúde e de bens de primeira necessidade, mas a porta fica aberta para mais acções consideradas “essenciais”. Está a fazer-se o primeiro grande ensaio de teletrabalho, não só no ensino mas em tudo o que for possível, repensando e ensaiando esta utensilagem e correspondentes aplicações, e isto com a colaboração de toda a comunidade. Para não falar da possibilidade da actuação da polícia extravasar com facilidade os seus limites, numa época em que florescem os movimentos fascistas e populistas.

Tudo isto, e muito mais que desconheço e que estará a desenvolver-se, irá modificar muito o funcionamento da sociedade tal como a conhecemos hoje. Quando a pandemia passar, será que não estaremos num “mundo novo”? Quantos despedimentos vão fazer-se à custa da generalização de teletrabalho, mesmo sem falar da crise económica que se seguirá?

Que fazer agora?

De momento, e no meio da crise sanitária, não vejo qualquer outra opção senão a de salvar o máximo de vidas humanas. Isto implica o mais rigoroso isolamento das pessoas e o respeito pelas recomendações da OMS quanto às normas estritas de higiene.

É necessário que os governos ajudem a minimizar o impacto que o isolamento implica nos rendimentos das famílias, nomeadamente impedindo os despedimentos e arranjando alternativas para a falta de salários ou a sua diminuição temporária. E é necessário exigir formas de compensar os trabalhadores precários e os trabalhadores com empregos não-declarados.

É preciso exigir ajuda para os que não têm condições de sobrevivência nesta situação, como sucede nas favelas e periferias no Brasil. Isto pode passar pela distribuição de refeições, como está a acontecer na Índia, e a distribuição de água e de detergente para as mãos. É preciso pensar em tudo isto e nas formas de as exigir. Em último caso, é necessário desenvolver e apoiar formas organizadas de auxílio a essas populações.

Que fazer depois da pandemia estar controlada?

Quando a pandemia nos deixar, vamos enfrentar uma crise económica sem precedentes desde a 2ª guerra mundial, certamente muito maior do que a crise de 2008. Vamos ter o desemprego, a diminuição de salários e por aí em diante. Sem esquecer que muitos governos vão ser tentados a prolongar os poderes que lhes conferimos para gerir a pandemia, mas então para ultrapassar a crise económica.

Na semana passada, nos Estados Unidos, 6,6 milhões de americanos pediram assistência de desemprego, elevando para 10 milhões o número de pedidos na última quinzena, um aumento sem precedentes na história americana.[10]

São problemas reais, para os quais não temos soluções, mas que devem ser pensados desde já. Que uso devemos fazer do teletrabalho e das aulas à distância? Que outras mudanças acontecerão?

Haverá um aumento da vigilância? Que formas essa vigilância pode adoptar e de que maneira afectará os trabalhadores? Que fazer? Como fazer?

R. Delgado é professora universitária e investigadora na área da química.

Notas

[1] https://www.dn.pt/mundo/mossad-admite-que-servicos-secretos-lutam-por-ventiladores-12023060.htmlm
[2] https://rr.sapo.pt/2020/03/19/pais/como-reduzir-o-numero-de-infetados-com-coronavirus-para-metade-achatar-a-curva/noticia/185902/
[3] https://www.estadao.com.br/infograficos/saude,como-a-matematica-pode-ajudar-a-entender-e-combater-epidemias,1082298
[4] https://br.freepik.com/vetores-premium/diagrama-de-curva-achatando-a-curva-do-coronavirus-covid-19-2019-ncov_7490052.htm
[5] “Covid-19 presents stark choices between life, death and the economy”, The Economist, 04/04/2020.
[6] “The hard choices covid policymakers face”, The Economist, 03/04/2020.
[7] “The battle intensifies”, The Economist, 03/04/2020.
[8] https://zap.aeiou.pt/coronabonds-holanda-critica-italia-316247
[9] Diário de Notícias, 05/04/220
[10] Segundo The Economist Espresso, 03/04/2020.

Ilustram o texto obras do artista plástico Liam Porisse.

3 COMENTÁRIOS

  1. olá R. Delgado,
    muito completo esse panorama geral e os desafios em nosso horizonte.
    Tenho uma pergunta, pois me chegaram comentários de uma trabalhadora da área de saúde a respeito dos protocolos hospitalares da OMS. Entendo que na falta de uma organização de maior prestígio internacional é difícil colocar em questão as diretrizes sanitárias da tal organização. Você tem alguma opinião particular a respeito da OMS, ou de como tomar suas diretrizes sanitárias sem que isso signifique um acatamento acrítico do funcionamento e do financiamento da mesma?
    obrigado!

  2. Paciente,
    Eu não sou da área da saúde, por isso não lhe posso dar uma opinião crítica. No entanto, tenho seguido as acções da OMS no caso da COVID-19 e parece-me que tem tido uma importância fundamental na coordenação e difusão da informação vinda de todo o mundo e para todo o mundo. É claro que há informação mais especializada que é difundida pelas revistas científicas, que disponibilizaram livremente toda a informação no que respeita ao COVID-19 e a troca de informações directamente entre médicos e demais agentes da saúde com investigadores, mas que só entendida por especialistas. Veja esta informação feita para o público em geral de cientistas brasileiros com a Academia Brasileira de Ciências (ABC): http://jcnoticias.jornaldaciencia.org.br/4-sbpc-e-abc-apoiam-serie-de-videos-sobre-coronavirus/

  3. Parece-me interessante a divulgação de um estudo científico, realizado no Brasil por Laura de Carvalho da Universidade de São Paulo (USP), no Brasil, e co-autores, intitulado “COVID-19 e desigualdade: a distribuição dos fatores de risco no Brasil”, que pode ser encontrado aqui: https://www.researchgate.net/profile/Laura_Carvalho/publication/340452851_COVID-19_e_Desigualdade_no_Brasil/links/5e8aabd0299bf130798004f3/COVID-19-e-Desigualdade-no-Brasil.pdf?origin=publication_detail
    Estes autores concluíram, por exemplo, que “Seja pela maior dificuldade de manter o isolamento social, o emprego e a renda, seja pelo menor acesso à saúde e ao saneamento básico, há relativo consenso de que o COVID-19 irá afetar desproporcionalmente os mais pobres.”

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