Por Raquel Azevedo
As crises financeiras não têm sido parâmetros muito adequados para medir e comparar os efeitos econômicos da pandemia da Covid-19 (ainda que exista a possibilidade de a crise atual evoluir para uma crise financeira caso os bancos centrais não garantam, em última instância, a liquidez dos mercados). Muito mais familiares nos parecem os efeitos econômicos da adoção das chamadas intervenções não-farmacêuticas para reduzir a alta taxa de mortalidade da pandemia de gripe de 1918, também conhecida como gripe espanhola. Um estudo de dois economistas do Federal Reserve, Sergio Correa e Stephan Luck, e de um terceiro do Massachusetts Institute of Technology, Emil Verner, aponta que cidades americanas que demoraram menos para aplicar medidas de distanciamento social e as estenderam por um período mais longo para reduzir o ritmo de transmissão da gripe tiveram um desempenho econômico melhor nos anos que se seguiram ao auge da crise no outono de 1918. Os dados da produção industrial, da atividade bancária e do nível de emprego nas décadas de 1910 e 1920 indicam que as cidades que adotaram intervenções não-farmacêuticas ágeis e rígidas obtiveram uma combinação de baixa mortalidade e rápida recuperação da atividade econômica. Embora as medidas de isolamento social induzam uma redução drástica da oferta e da demanda, a diminuição do ritmo de transmissão da doença evita uma ruptura econômica ainda maior.
Entre janeiro de 1918 e dezembro de 1920, 500 milhões de pessoas foram infectadas com a gripe espanhola no mundo. O número estimado de mortos é de 50 milhões. Nos EUA, calcula-se que o total de vítimas tenha sido entre 550 e 675 mil, o que significa que a doença matou cerca de 0,66% da população americana. A pandemia teve três grandes ondas: a primeira foi na primavera de 1918; a segunda, no outono de 1918; e a terceira, no inverno de 1918 e na primavera de 1919. A primeira ocorrência do vírus foi identificada entre militares americanos. O movimento das tropas no final da Primeira Guerra Mundial contribuiu para espalhá-lo pelos EUA e pelo mundo. A segunda onda da doença, coincidente com os momentos finais da guerra, foi a mais letal para os EUA.
Estados americanos que apresentavam características semelhantes, segundo os dados pré-pandemia, em termos de população, renda per capita, nível de emprego e de produção registraram taxas de mortalidade distintas em razão dos diferentes graus de agilidade e rigidez das intervenções não-farmacêuticas adotadas. Além disso, os estados com maior mortalidade tinham uma parcela maior de trabalhadores empregados na indústria e também uma população urbana mais significativa. O estudo dos economistas norte-americanos revela o impacto que a variação da mortalidade possui na atividade econômica. Para cada aumento de um desvio-padrão da taxa de mortalidade norte-americana, estimada em 147,7 por 100 mil habitantes, observa-se a redução de 8% do emprego na indústria, a diminuição de 0,5% da razão entre emprego e população e a queda de 6% do produto. Em 1918, a taxa de mortalidade chegou a 416 por 100 mil habitantes (quase três vezes maior que a taxa anterior à pandemia) e a esse grau de letalidade corresponde uma redução de 23% do emprego na indústria, uma diminuição de 1,5% da razão entre emprego e população e uma queda de 18% do produto. O estudo também identifica a relação entre a variação da mortalidade e os ativos bancários. Para cada aumento de um desvio-padrão da taxa de mortalidade, há uma redução associada de 4% nos ativos bancários. Essa diminuição se deve a uma queda na demanda e na oferta de crédito em razão da redução na atividade econômica.
As diferentes taxas de mortalidade nos estados americanos estão associadas, como dissemos, às variações de velocidade e extensão das intervenções não-farmacêuticas adotadas. As medidas de distanciamento social aplicadas durante a segunda (e mais letal) onda da gripe espanhola incluíam o fechamento de escolas, teatros e igrejas, a proibição de aglomerações e a exigência de uso de máscaras e do isolamento em caso de infecção. O estudo dos economistas norte-americanos cita a diferença na condução das medidas sanitárias nas cidades de Saint Louis, no estado do Missouri, e de Filadélfia, no estado da Pensilvânia. A prefeitura da Filadélfia demorou a intervir e teve de lidar com um aumento considerável da taxa de mortalidade no outono de 1918. O que se observou em Saint Louis foi o oposto: uma atuação rápida dos governantes que resultou numa taxa de mortalidade substancialmente baixa. O estudo define a velocidade das intervenções não-farmacêuticas pelo número de dias transcorridos entre o momento em que a taxa de mortalidade da cidade dobra em relação ao patamar anterior à pandemia e o primeiro dia em que as autoridades aplicam as medidas de distanciamento social. Já a rigidez das medidas é dada pelo número de dias em que estiveram em vigor no outono de 1918.
A resposta das autoridades locais variou conforme o grau de exposição das cidades à pandemia e também em razão de fatores sociais, demográficos e geográficos particulares. Mas, em geral, o grau de intervenção dependeu da qualidade das instituições e do sistema de saúde locais. Além disso, a segunda onda da gripe de 1918 varreu os EUA na direção de leste a oeste, de modo que estados e cidades da costa leste foram afetados de forma mais severa. As localidades mais a oeste tenderam a implementar as intervenções não-farmacêuticas mais rapidamente em função do aprendizado que obtiveram com aquelas que foram atingidas antes. As cidades que agiram rapidamente adotaram as medidas de distanciamento social dois dias depois de observarem uma duplicação na taxa de mortalidade. As que demoraram a atuar levaram 13 dias. Onde houve mais rigor com as intervenções não-farmacêuticas, as medidas foram mantidas por 121 dias. Já as localidades que conduziram a crise com mais frouxidão mantiveram as medidas por 57 dias. As cidades que agiram mais rapidamente estão, em geral, localizadas no oeste dos EUA e o peso da agricultura na atividade econômica dessas localidades é, em média, maior que o da indústria. Para cada aumento de um desvio-padrão na velocidade de adoção das medidas de distanciamento social, que foi, em média, de oito dias, corresponde um aumento de 4% do emprego e de 5% do produto depois do fim da pandemia. Para cada aumento de um desvio-padrão na duração das medidas, que foi, em média, de 46 dias, houve uma elevação de 6% do emprego e de 7% do produto ao fim da crise. Finalmente, há também uma correlação positiva entre as intervenções não-farmacêuticas e os ativos bancários. Para cada aumento de um desvio-padrão na duração das medidas, há um aumento de 7,5% da atividade bancária depois de 1918.
É possível que a velocidade da adoção de medidas de isolamento (e de transferência direta de renda, que é a condição material para que os trabalhadores informais permaneçam em casa) tenha assumido uma importância ainda maior na pandemia da Covid-19. O objetivo já não é exatamente conter uma alta taxa de mortalidade (a da Covid-19 é muito menor que a da gripe espanhola), mas o colapso do sistema de saúde. Além disso, uma característica específica do isolamento social da pandemia atual é a pressão por aumento de produtividade. Há uma tendência de desenvolvimento ainda mais acelerado do e-commerce, de digitalização de serviços e processos, de avanço da educação à distância e do trabalho remoto. Talvez em pouco tempo vejamos estudos que correlacionem as medidas de isolamento ao aumento de produtividade.
Uma questão: qual a explicação que os autores do estudo dão para essa correlação, se é que dão alguma? Ou seja, por que o índice de mortalidade menor (consequencia do isolamento social cedo e prolongado) gerou esses melhores índices de emprego nos anos seguintes?
Já sobre a produtividade na pandemia atual, duvido muito que a produtividade geral aumente, pelo menos no Brasil. Lembrando que pra medir produtividade tem que ter como referência um mesmo produto, o que significa um produto com qualidade idêntica.
O nível de desorganização de diversas atividades foi abrupta, e como tal tende a reduzir a produtividade. Ademais, embora tenhamos uma pandemia de teletrabalho, não sei se servirá mesmo de laboratório para empresas, uma vez que eles estão se dando em condições adversas como, por exemplo, as aulas suspensas. Pais com filhos em casa produzem menos.
Leo V, o estudo estabelece apenas correlação entre taxa de mortalidade (e, portanto, as medidas de isolamento social) e o nível de emprego, não se ocupa da causalidade. Até chega a mencionar que a alta mortalidade atingia especialmente a população com idade entre 18 e 44 anos, o que impactaria diretamente a oferta no mercado de trabalho (pra usar a linguagem do estudo). Mas acho que o efeito da mortalidade no emprego é mais complexo (e indireto).
Sobre a produtividade: considerando a possibilidade de que o isolamento se prolongue bastante e até mesmo de que haja diferentes ondas da pandemia da Covid, deve haver uma crescente digitalização dos processos nesse período. Nesse sentido, talvez exista uma correlação entre a extensão do isolamento e a produtividade. O índice produto/trabalhador variaria num sentido desfavorável ao trabalhador, mesmo que durante o isolamento estejamos vendo uma redução sem precedentes de ambos. Era só uma hipótese mesmo. Talvez esteja equivocada, como você disse. Seria preciso medir pra ter certeza.
Ótimo texto