Por Manolo

Há algumas semanas um amigo indicou-me a leitura de interessante artigo publicado na revista The Economist. Como que lamentando criticamente a decadência de Jeremy Corbyn no Partido Trabalhista britânico, a coluna foi certeira num ponto, e derrapou noutro mais importante.

Certeira, porque, com muitíssima razão e estatística de apoio, creditou a derrota do trabalhismo no processo da Brexit — sim, no feminino, pois não existe “o” saída britânica da União Europeia — a um entendimento desatualizado sobre o que a revista chama de “estrutura da classe trabalhadora da Grã-Bretanha”. Para a coluna da Economist, “em 1987 — última vez em que os Tories viram vitória comparável à do sr. Johnson”, primeiro-ministro conservador britânico, adversário dos trabalhistas e responsável pela conclusão da Brexit, “62% do eleitorado britânico pertencia à classe trabalhadora (definida como pessoas cujos chefes de família têm, ou tinham, um trabalho manual). Hoje as cifras são de 43%, de acordo com Peter Kellner, ex-presidente da YouGov, uma empresa de sondagem de opinião. Empresas abraçaram a produção flexível e a terceirização. Sindicatos encolheram e migraram para o setor público. Um aumento na afluência veio de mãos dadas com um aumento no número de pessoas sem-teto, ou usuárias de programas públicos de alimentação e assistência”.

Ainda segundo a Economist, “a membresia do partido [trabalhista] passou por transformação semelhante. Quase 80% dos membros são, agora, de classe média. Ativistas do Crouch End londrino andam tão preocupados com a tomada do partido pela classe média que sugeriram a criação de zonas operárias separadas para garantir que a voz do proletariado não seja sufocada; o secretário desta zona é professor emérito na London Metropolitan University”. Pudera: o Crouch End é, ele próprio, um antigo bairro da classe média vitoriana que, abandonado, foi depois ocupado por trabalhadores e estudantes; com o enobrecimento da zona, voltou a ser bairro de classe média. O território traz os sintomas do problema que os habitantes querem resolver.

“Se Jeremy Corbyn reverteu o blairismo no plano ideológico, intensificou-o no plano sociológico, tornando o partido cada vez mais de classe média e sulista”; com isto, a Economist chama a atenção para o fato de que o sul da Grã-Bretanha concentra as maiores cidades e a maior afluência. “A grande diferença”, prossegue o artigo, “é que os tribunos de classe média do sr. Corbyn vivem na ilusão de serem heróis da classe trabalhadora desafiando o Sistema”.

Aqui começa o núcleo do argumento para o qual meu amigo chamou minha atenção. Diz a Economist: “Nos dias de hoje, a luta de classes define-se menos pela relação com os meios de produção que pelas qualificações educacionais. E a luta de classes é movida por querelas em torno de identidade de valores, em vez da remuneração e das condições de trabalho. Em seu novo livro The New Class War: Saving Democracy from the Managerial Elite, Michael Lind, da New America Foundation, um think tank, argumenta que a luta entre os diplomados e os não-diplomados está moldando a política ao redor do mundo. Isto é particularmente verdadeiro na Grã-Bretanha, que abraçou entusiasticamente as políticas fortemente favorecidas pelas elites diplomadas (globalização, livre-mercado, liberalismo social), apenas para conjurar um forte rebote na forma da Brexit”.

O artigo segue indicando como o trabalhismo, nesta nova luta de classes, “está do lado dos ‘possuidores’, não dos ‘despossuídos’”. Segundo o artigo, a maioria dos membros do partido tem diploma universitário, e orgulha-se de seus valores cosmopolitas. Cita ainda o ex-primeiro ministro Harold Wilson — “ou o Partido Trabalhista é uma cruzada moral, ou não será nada” — para mostrar como a política de admoestações e reprimendas dos diplomados contra certos comportamentos dos não-diplomados mostrou-se, ao fim e ao cabo, como um tiro no pé: “em dezembro [de 2019] os Trabalhistas venciam dos Conservadores entre portadores de diploma universitário por 43% contra 29%, mas perdiam entre pessoas com ensino médio (ou menos) por 25% contra 58%”.

O artigo conclui: “o Partido Trabalhista não terá chance alguma de alcançar o poder até que abandone o lennonismo”, que é como a Economist tacha a política ilusória da classe média que se pretende classe trabalhadora em oposição ao Sistema, “e descubra a que se presta numa sociedade pós-industrial”.

* * *

Ao recomendar-me a leitura, meu amigo quis vincar a confusão atualmente existente entre uma política centrada na afirmação de identidades e uma política centrada no combate à exploração econômica. Dias antes comentara, surpreso “só que não”, como havia certos marxistas que aderiram às novas formas identitárias de fazer política sem qualquer crítica à concepção marxista de leitura da realidade, e com isto introjetavam, por meio de uns tantos malabarismos teóricos e citações escolhidas a dedo, temas e pautas identitárias num sistema ideológico que era seu exato contrário.

Respondi-lhe, ao terminar a leitura do artigo, relembrando este nosso diálogo e provocando: esta passagem é a vitória final de Bakúnin sobre Marx! (Sim, Bakúnin, com acento agudo no “u”, para mostrar a pronúncia adequada do nome russo que, por influência do francesismo Bakounine, costuma pronunciar no Brasil como Bakunín, com um “i” tônico inexistente no original.)

Tive de me explicar. Remeti a uma definição — a meu ver deficiente, mas nem por isso menos precisa — apresentada em 1975 na primeira página da introdução de um livro chamado Para uma teoria do modo de produção comunista: “Em linhas muito gerais, parece-me que a oposição fundamental a nível ideológico entre o marxismo (de Marx-Engels) e o anarquismo (de Bakunin) consiste no facto de Marx centrar toda a dialética social no pré-conceito de exploração, enquanto que a dialética social de Bakunin tem por eixo o pré-conceito de opressão”. A definição, que em seu contexto faz todo o sentido, precisamente por enquadrar-se no contexto de uma polêmica, não dá conta das muitas vezes em que o próprio Marx lutou contra opressões sem remeter diretamente ou “em última instância” à exploração; não reconhece, de igual modo, o papel central que Bakúnin teve no surgimento do anarcossindicalismo e do sindicalismo revolucionário, ou sua preocupação em traduzir O Capital para o russo — tarefa inconclusa, como tantas outras em sua atribulada vida. Reconhecidos seus limites, a definição mantém, contudo, seu valor sintético e polêmico.

Valor sintético que me levou a afirmar jocosamente a este amigo, marxista muito crítico, a vitória final de Bakúnin sobre Marx. Aqueles marxistas a quem meu amigo criticou faziam a passagem, sem mediações, de uma leitura da realidade centrada na exploração para outra, centrada nas opressões. Ignorando, talvez, esta distinção, estes marxistas tomaram a última pela primeira, e nesta confusão tanto faz se estão num piquete ou “cancelando” alguém num bloco carnavalesco. A julgar pelo critério polêmico daquela definição sintética, são anarquistas — contra eles mesmos, mas anarquistas.

The Economist parece corroborar a “vitória final de Bakúnin”, pois a definição de “classe social” apresentada no artigo resumido acima é Bakúnin em estado bruto! Vejam o que diz o velho barbudo russo sobre o assunto em Federalismo, socialismo, antiteologismo: “Todas estas diferentes existências políticas e sociais deixam-se hoje reduzir a duas categorias principais, diametralmente opostas uma à outra, e inimigas naturais uma da outra: as classes políticas, compostas por todos os privilegiados tanto da terra quanto do capital, ou mesmo somente da educação burguesa, e as classes operárias deserdadas tanto do capital quanto da terra, e privadas de qualquer educação ou de qualquer instrução”. Diz ainda em nota Bakúnin, na mesma página: “Por falta mesmo de qualquer outro bem, esta educação burguesa, com a ajuda da solidariedade que religa todos os membros do mundo burguês, assegura a quem quer que a receba um privilégio enorme na remuneração de seu trabalho, o trabalho dos burgueses mais medíocres recebendo quase sempre três, quatro vezes mais do que o operário mais inteligente”.

Terá este velho russo banguela a última palavra, afinal?

Em toda a obra escrita de Bakúnin a educação é elemento importante para a distinção entre classes sociais antagônicas. Residindo o grosso do público leitor de Bakúnin em países onde então vigia o regime eleitoral censitário, a existência de uma “classe política” era tudo, menos uma abstração teórica. A situação é, portanto, ilustrativa, mas pouco comparável com o caso do artigo.

Há elementos no artigo para “casar” esta questão da educação como sinal distintivo de classes — presente também em Max Weber, com quem Bakúnin tem muitas coincidências terminológicas e conceituais — com a ascensão do chamado “capitalismo da informação”. Não que eu adote esta perspectiva, mas parece-me que o autor do artigo, premido pela necessidade de criticar a postura do Labour na campanha da Brexit, encontrou um jeito de meter a luta de classes dentro do “capitalismo da informação”, e este jeito foi a disputa identitária e de “costumes”.

Reflexos desta forma de pensar encontram-se no fato de que setores cada vez mais amplos da esquerda engajam-se nas lutas contra o assédio nos ambientes de trabalho — mas passam longe de pautar a expropriação dos meios de produção. Tomam a luta contra o assédio — ou seja, uma luta contra a opressão — como luta contra a exploração. Reflete-se também na proliferação das lutas contra o “neoliberalismo” onde não se vê uma palavra sequer contra o capitalismo, talvez porque os sujeitos nela envolvidos nem saibam do que se trata, realmente, este bicho de sete cabeças. Isso facilita a identificação destes setores da esquerda com setores capitalistas interessados em algum tipo de combate à desigualdade econômica, ou que implementem algum tipo de política de bem-estar social — e assim estes setores da esquerda anticapitalista tornam-se, malgrado sua verborragia, liberais de esquerda, e nada mais.

É aqui onde se vê o artigo da Economist derrapar. Sabemos como este “capitalismo da informação” depende de uma classe trabalhadora cada vez mais numerosa, cuja composição não depende estritamente da educação formal — vide o estereótipo do “engenheiro que virou Uber”, ou as declarações de Elon Musk de que contratará qualquer pessoa que saiba bem programação, sem ligar se chegou sequer a completar a escolarização primária.

Sob a aparência da educação, o que há é oposição entre os setores da classe trabalhadora que ocupam postos mais bem remunerados, de maior complexidade laboral, e aqueles que, independentemente das qualificações educacionais formais, espraiam-se na economia dos bicos. Feitos estes ajustes, parece ter sido isso o que o Labour, segundo a crítica da Economist, não viu, ou não quis ver. Há toda uma complexidade a derivar daí, pois o problema não é apenas britânico. Bem o sabe a esquerda brasileira — ou talvez não saiba, o que é muito mais grave.

5 COMENTÁRIOS

  1. Manolo, suas contribuicoes sao sempre muito interessantes (perdoa a falta de acentuacao correta, o teclado aqui do trabalho vira mexe perde configuracao).

    Voce classificou seu amigo como “marxista muito critico“, como voce classificaria a si mesmo?

    Sobre o artigo. Esse debate me parece ser central. Olhando superficialmente me parece facil identificar esse antagonismo entre os “estudados“ e os “nao-estudados“. Mas como voce mesmo disse bem, o proprio olhar para a realidade mostra que a coisa nao deve ser assim tao simples. Se o engenheiro vira uber ou se tantos profissionais bem formados fazem bicos, viram “coachs“ ou “empreendedores“ justamente por nao terem emprego, etc.. Isso nos motra que ainda que a questao do estudo possa ter relevancia, ela nao define por si mesma a situacao da luta de classes e da divisao na classe trabalhadora.
    Alias esse texto e as citacoes que voce fez me fizeram lembrar (para o bem ou para o mal?) das definicoes de Jesse de Souza, quando ele segmenta a sociedade utilizando ter ou nao ter “capital financeiro`, “cultural“ e etc.

    Essa questao da excelencia da “luta contra opressao“ sobre a “luta contra a exploracao“ me parece ser um dos pontos centrais acerca da organizacao da classe trabalhadora.. Mesmo porque ao colocar as coisas dessa maneira – como a “esquerda“ que se converte em esquerda liberal tem feito – parece negar a ideia de que o sistema capitalista impoe relacoes de opressao. Parece que ocorre uma apropriacao seletiva de tal forma que “opressao“ passa a ser tudo aquilo que tenha um sentido emancipador, desde que nao tenha nada a ver com o capital.
    O que sera que os anticapitalistas (nos?) temos a oferecer nesse contexto de diluicao, de fragmentacao identitaria da sociedade..?

  2. Gabriel, para mim — que me defino como uma negação — opressão e exploração encontram-se aí diante de quem queira ver. (Veja bem: “opressão” e “exploração” são usadas aqui no sentido bem circunstanciado que desenhei no ensaio, e em nenhum outro.) Negar qualquer das duas, e suas complexas interações, é cegueira — inocente ou interessada, mas cegueira mesmo assim. Necessária como seja a análise da realidade tendo estes dois elementos como base, a passagem da análise para a explicação, e da explicação para a ação política, não se faz sem uma reflexão.

    “Anticapitalista”, por definição, é tudo quanto seja contra o capitalismo. “Capitalismo”, por definição, é o modo de produção que se forma a partir da exploração, pelos capitalistas, da mais valia criada pelos trabalhadores, com frações das classes trabalhadoras e das classes capitalistas vivendo — ou sofrendo — este processo a seu modo. Mesmo os manuais básicos de economia — a “ciência social neutra” preferida dos capitalistas — dirão que o objetivo dos empresários, e portanto dos capitalistas, é “maximizar lucro em curto prazo”, definição parecida para a mesma coisa — excluindo o elemento “exploração”, pois nenhum manual diz como capitalistas chegam a este objetivo.

    Opressão e exploração estão aí para quem queira ver, e devem ser combatidas onde quer que se encontrem. Isto dito, é preciso adicionar um porém. Opressão e exploração têm sido identificadas em muitas formas ao longo da história, mas as opressões e a exploração que formam o capitalismo são bem específicas — porque a especificidade histórica do capitalismo está precisamente no fato de que a vida social, as relações sociais, orbitam em torno das relações de exploração do trabalho alheio. No capitalismo, tudo quanto sirva a este propósito é permitido, e eventualmente estimulado. Tudo quanto atrapalhe ou impeça este propósito pode até ser permitido, mas tende a ser fortemente regulamentado, ou a ser proibido, ou a ser erradicado. As opressões devem ser lidas nesta chave, e explicadas em meio ao contexto em que acontecem. Isto porque a “permissão”, o “estimulo”, a “regulamentação”, a “proibição” e a “erradicação” não ocorrem no plano abstrato em que estamos aqui debatendo, mas em relações sociais bem situadas no espaço e no tempo: que envolvem sujeitos igualmente situados, cujos interesses são determinados por fatores bem concretos, cuja ação produz efeitos e reverbera dentro de um contexto mais amplo ou mais restrito a depender de quem sejam os sujeitos envolvidos, que encontra maior ou menor resistência por parte dos oprimidos etc.

    As leituras da realidade que tiram o foco da exploração como fato social e econômico elementar para a dinâmica do capitalismo, que não a levam em conta, que não incorporam-na como elemento significativo, que não integram esta forma de exploração econômica em relação com as opressões, que retiram a análise e crítica da exploração econômica de sua “versão” sobre os fatos do presente e do passado — essas leituras da realidade não são anticapitalistas. Podem apresentar perspectivas muito importantes sobre as opressões, podem ser muito influentes, podem mexer com paixões e racionalidades, podem ser o que for — mas não são anticapitalistas. Podem orientar a ação política de sujeitos muito importantes, podem mover setores relevantes da classe trabalhadora — mas não são anticapitalistas. Podem apresentar convergências importantes com aqueles que pautam a crítica teórica e prática à exploração econômica — mas não são anticapitalistas. Podem dizer o que quiserem de si próprias — mas não são anticapitalistas. Não enquanto o combate à exploração econômica não for incluído em seus horizontes.

    O que nós, anticapitalistas, temos a oferecer? O combate decidido e vigoroso a todas as formas de opressão, orientado pelo combate decidido e vigoroso a todas as formas de exploração econômica pelos capitalistas. Na prática e na teoria. “Só” isso.

  3. Mulherio: Lélia, o que você acha do slogan “mulher vota em mulher“?

    Lélia Gonzalez: Esse papo é tão furado quanto aquele de “negro vota em negro“, e ambos se diferenciam daquele que afirma que “trabalhador vota em trabalhador“. Enquanto esse último tem sua coerência apoiada justamente na denúncia da exploração da classe trabalhadora pela classe dominante, os outros dois escamoteiam essa questão. Afinal, existem mulheres e negros que pertencem e/ou fazem o jogo da classe dominante, buscando perpetuar os privilégios dela e, ao mesmo tempo, participar desses privilégios. Tem muita mulher por aí que, de comum com as lutas das feministas, só tem mesmo uma coisa: o seio feminino. No restante, elas são tanto ou mais masculinas do que muitos homens que a gente conhece.

  4. Manolo, agradeço pela resposta.
    Aproveitando: você tem recomendações de leitura de perspectivas críticas sobre esses conceitos que vêm surgindo como ”capitalismo de dados” ou ”capitalismo de informação”, ”sociedade de dados” e etc?

    Sobre a sua resposta, eu não poderia concordar mais com a sua exposição. É como se cada palavra pudesse ter sido pensada por mim, mas de maneira muito mais tosca.
    Não é a toa que aqui mesmo no PP vivemos discutindo sobre identitarismos e suas versões, suas formas de agir e seus efeitos. Disse que esse seu texto levanta uma questão central justamente porque parece que a capacidade do capital em se articular ao redor das lutas é tamanha que a luta contra a ”exploração” se torna invisível – mesmo porque no campo ideal dominante, toda teoria social, talvez especialmente a econômica, mal concebe a existência de ”trabalhadores” e quanto menos do valor-trabalho – e as lutas contras as ”opressões” se tornam totalmente cooptadas, de tal modo que, na realidade, não se resolve o problema das opressões. E dissso você mesmo, se não me engano, acabou falando em muito na sua série de artigos sobre o fórum social mundial.
    O que me parece importante trazer para o debate é justamente o quanto podemos criar em termos de práticas que nos permitam nos aproximar dessas lutas contra a ”opressão” sem perder o vínculo com a luta anticapitalista. Mas essa angústia que tenho talvez seja apenas um reflexo da minha dúvida de como melhor direcionar a energia criativa e combativa

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