Dinheiro

Por Raquel Azevedo

Enquanto a Europa ocupou o lugar de epicentro da pandemia, o colapso dos sistemas de saúde italiano e espanhol (e mais tarde também do britânico) funcionou como uma espécie de imagem futura do que poderia se passar no Brasil caso medidas de isolamento social não fossem adotadas para desacelerar o contágio. A União Europeia segue emitindo imagens do futuro, mas agora com o impasse a respeito do financiamento da expansão dos gastos dos países-membros. O desafio do bloco não é exatamente o aumento necessário da dívida pública em resposta aos efeitos econômicos das medidas de isolamento, mas o arranjo institucional particular em que essa mobilização se dá: trata-se de “um banco central compartilhado que, por um lado, não possui um Tesouro comum como suporte e, de outro, está proibido de apoiar diretamente os 19 Tesouros [dos 19 países-membros] que devem emprestar em euro para combater a crise”, explica Yanis Varoufakis em um artigo no The Guardian. Ou seja, a oferta de liquidez é compulsoriamente supranacional e o endividamento, nacional. Parecia que todos os limites dessa arquitetura monetária tinham sido testados ao longo da última década, mas a pandemia é uma volta a mais no parafuso. A saída seria que o endividamento fosse compartilhado pela zona do euro através dos chamados coronabonds, ainda que os tratados de criação do bloco excluam a possibilidade de uma dívida comum. Na reunião dos países-membros no dia 9 de abril, a demanda de Itália e Espanha pelo endividamento conjunto foi negada por Alemanha e Holanda. A chanceler alemã Angela Merkel argumenta que a emissão de dívida através dos coronabonds exigiria uma reformulação dos tratados do bloco e que a crise requer respostas mais rápidas. A novidade pode ser a posição da França nessa disputa. Embora o país tenha sido um aliado da Alemanha nas crises da última década, o presidente francês Emmanuel Macron tem indicado, timidamente, que o arranjo econômico do bloco pode ter graves consequências políticas, como a emergência do populismo nos países mais atingidos pela pandemia.

A verdade é que aquilo que vemos na União Europeia não são bem imagens do futuro, mas do passado. O arranjo institucional específico do bloco produz uma repetição nietzschiana daquilo que se passou depois da crise de 2008 — aumento da austeridade e do populismo.

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O Departamento do Trabalho dos EUA contabiliza um total de 26 milhões de pedidos de seguro-desemprego no país no último mês. Não há uma estimativa oficial do impacto das medidas de isolamento no nível de emprego no Brasil. Até o dia 23 de abril, a Caixa Econômica Federal pagou a renda básica emergencial para 31 milhões de pessoas e estima que o total de beneficiários chegue a 70 milhões, mas esses números misturam o efeito econômico da pandemia à precarização do trabalho resultante do longo período de baixo crescimento dos últimos anos. Na China, o PIB do primeiro trimestre sofreu uma redução de 6,8%. Consultorias estimam que a taxa de desemprego tenha subido de 5,2% para 6,2% nos dois primeiros meses do ano, o que significaria que cerca de cinco milhões de chineses perderam o emprego. Branko Milanovic avalia que o movimento de queda da desigualdade de renda entre os países asiáticos e os países ocidentais pode continuar não exatamente pela retomada do crescimentos chinês, mas pelo empobrecimento de EUA e Europa nessa crise. A redução da renda de americanos e europeus viria exatamente quando o período de austeridade e baixo crescimento parecia ter ficado para trás, lembra Branko. O mal-estar com a globalização, que até então mascarava os efeitos do crescimento chinês, deve se intensificar.

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Considerando a falta de conhecimento a respeito da imunidade ao vírus e o tempo necessário para que os especialistas produzam a vacina e os medicamentos adequados para o tratamento da doença, é possível que as quarentenas intermitentes nos acompanhem por algum tempo. Isso significa, em termos econômicos, que a recuperação não deve ser linear, mas deve acompanhar as idas e vindas das medidas de isolamento. Como escreveu Monica de Bolle em sua coluna no Estadão, será um sistema que soluça e engasga. Neste cenário, a renda básica terá de perder a qualificação de emergencial e precisará ser incorporada ao sistema de proteção social. Além disso, a reconversão industrial para produção de equipamentos hospitalares, desde proteção individual até respiradores, pode ajudar a diminuir a volatilidade da recuperação econômica. Embora haja meios de mitigar os efeitos dessa recuperação tão peculiar, a ausência de linearidade é um dos aspectos mais importantes dessa crise.

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