Por Arnon Manhães Ceolin

Leia aqui a segunda parte deste artigo.

O roubo dos bens da Igreja, a alienação fraudulenta dos domínios estatais, o furto da propriedade comunal, a transformação usurpatória, realizada com inescrupuloso terrorismo, da propriedade feudal e clânica em propriedade privada moderna, foram outros tantos métodos idílicos da acumulação primitiva. Tais métodos conquistaram o campo para a agricultura capitalista, incorporaram o solo ao capital e criaram para a indústria urbana a oferta necessária de um proletariado inteiramente livre — Karl Marx, em O Capital.

Portanto, seu objetivo, é o que você determinar. A sua missão é a que você se atribui. A sua vida será do jeito que você a criar, e ninguém irá julgá-la, nem agora, nem nunca. Você pode preencher o quadro-negro da sua vida com o que desejar. Se o preencheu com o que traz do passado, limpe-o. Apague tudo que não lhe serve do passado, agradecendo por tê-lo trazido agora a este lugar e a um novo começo. Você tem uma lousa limpa e pode recomeçar — aqui mesmo, agora mesmo. Encontre a sua alegria e trate de vivê-la — Neale Donald Walsh, em O Segredo.

Em Caché (2005), de Michael Haneke, um renomado apresentador de TV de meia-idade, chamado George, é atormentado por fitas cassetes e cartões postais que chegam sem rastros às suas mãos. A suposta lacuna quanto à origem das mensagens, todavia, não inibe o furor de seu conteúdo. Tratam-se de imagens que o remetem aos tremores de um passado distante, mas não esquecido. Imagens que o endereçam a uma época crucial de sua infância bucólica, quando compartilhava tudo que lhe era próprio com um outro jovem, um órfão imigrante chamado Majid, cujos pais trabalhavam na propriedade de George antes de serem mortos em um protesto na capital. “Meus pais decidiram adotar o garoto (…) Isso me incomodou. Eu não o queria em nossa casa… ele tinha seu próprio quarto… eu tive de dividir, entende?”. A presença de Majid lhe aparece como ameaça destrutiva, daí a imagem que nos é conduzida pela forma de sonho: Majid surge atacando-o a golpe de enxada, a mesma que usualmente degolava as galinhas do quintal. Com o intuito de preservar todas as formas de propriedade que lhe cabem, o pequeno George formula sua própria fantasia, uma versão farsesca de fatos que convence seus pais de que Majid é portador de uma doença contagiante para a qual a alienação é urgente, o que se efetiva com seu isolamento definitivo em um orfanato. Daí em diante, a história de ambos segue rumos diametralmente opostos, marcados por esquecimento e sucesso, escassez e bonança, violência e harmonia. “O que faríamos para não perder o que é nosso?”, diz o velho Majid ao velho George num encontro frio e cortante, síntese dos rumos diametralmente opostos, da história cindida.

John Keane, “Dinner in the Ruins”, 1993.

Apesar do mistério, o drama está colocado: George e sua família aparecem como vítimas de uma modalidade íntima de terrorismo, que estremece sua fortaleza familiar e profissional; atos cuja responsabilidade nunca é assumida por Majid e seu filho. Ninguém se entrega, afinal. Tudo se esconde e o medo é a única certeza aparente, pois a verdade objetiva dos fatos se encontra em suspensão para o observador desatento. Por isso, a tendência é cairmos no feitiço de George e nos apegarmos ao seu drama particular, colocando-nos ao seu lado como sócios empáticos de sua angústia, como apoiadores das exigências que ele nos coloca como leis naturais e evidentes por si mesmas [1]. “Ele quer destruir nossas vidas. Você está reagindo exatamente como ele quer”, diz George frente ao desespero de sua esposa e “Ele tem um ódio doentio da minha família e tenta me prejudicar com essa besteira” a um de seus colegas de trabalho.

Os cartões e as fitas, em si, não são ameaças, mas meros fragmentos de uma memória em disputa. Estes fragmentos se convertem em ameaças na medida em que George os digere subjetivamente, refundando sua fantasia original ao se mostrar indisposto a lidar com o assombro da memória que carrega; a memória de sua barbárie particular, de toda a violência que não deve ser assumida enquanto tal, pois acarretaria uma crise de legitimidade daquilo que é, do que está posto, de sua identidade consagrada. “Um dia ele já não estava. E eu fiquei contente. E então eu esqueci tudo sobre isso. Natural, não? (…) Do que eu poderia chamar? Uma tragédia? Talvez fosse uma tragédia. Não sei. Eu não me sinto responsável por isso. Porque eu deveria? É tudo tão absurdo”. Se a história se deu em conformidade e em harmonia com o curso natural das coisas, não há culpa, nem remorso, nem negatividade alguma. Por conta disso, George encara as fitas com mal-estar e ofensa, que rapidamente se convertem em ódio projetado sobre sua vítima pregressa, Majid, que passa, este sim, a carregar o estigma do bárbaro, do violento, do negativo.

A fórmula é a mesma de outros tempos: o mecanismo de inversão fetichista se propaga pela história como poder social penetrante nas mais diferentes expressões da barbárie humana, agora por meio da negação de qualquer responsabilização com a violência posta, que, vejamos bem, não apenas inibe a produção da culpa e da responsabilidade moral pelos feitos praticados por parte de seu responsável, mas a inverte, atribuindo àquelas figuras que se subsumiram a ele o fardo pelo que há de nefasto e destrutivo na dinâmica social. O monstro, aqui, não se reproduz em manuais ou laboratórios, muito menos em origens étnicas, linhagens de sangue ou expressões fenotípicas, mas no atravessamento de uma história pelo horror e na sucessão de pás de cal que enterram e cimentam por cima de tudo que dela deriva de profundamente horrendo e violento. “Eu não sou o responsável! Entende? Se você tentar algo contra mim ou minha família você vai se arrepender. Eu garanto”, diz George ao já órfão filho de Majid, depois que Majid chama George à sua casa e se degola de frente para ele, numa tentativa radical e explicitamente perturbadora de expor o horror e enfim produzir um estado de responsabilização ou culpa, que nunca chega.

A “paz de Cartago” do desfecho perturba. A história está sob controle, o consenso está estabelecido, os assombros materiais se foram, o homem se foi, as fitas também e a memória ficou para sempre como espectro da “verdade” que George rege e propaga com a mesma certeza de que bípedes têm duas patas e quadrúpedes têm quatro. Nosso nobre protagonista pode, finalmente, desligar o celular, tomar um par de comprimidos, fechar as cortinas, desnudar-se por completo e deitar em sua cama para um cochilo tranquilizador. Seus olhos estão aquiescidos, sua boca relaxada, seus braços contidos. Seu rosto está dirigido para o futuro. Onde nós vemos uma cadeia de barbáries, horrores, acúmulos incansáveis de ruínas sobre ruínas que se dispersam aos seus pés, ele vê uma coisa única: tudo muito bem, como deveria.

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Francisco de Goya, “Saturno [Cronos] devorando um filho”, 1819-1923. A feição angustiada entrega a urgência daquele que devora toda ameaça de destruição do seu poder de assenhorear o tempo e a história.

“A luta de classes, que um historiador educado por Marx jamais perde de vista, é uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais não existem as refinadas e espirituais. Mas na luta de classes essas coisas espirituais não podem ser representadas como despojos atribuídos ao vencedor”, atenta-nos Benjamin [2]. Como toda forma social da qual o poder alheio do capital enseja se apoderar, a história sempre foi e sempre será objeto de disputa. Isso porque ela é muito mais do que o somatório de fatos curiosos, bons museus e antiquários; a história é fundamentalmente engrenagem social de múltiplas funções, inclusive a de atribuir (ou não) legitimidade ao movimento hodierno, ao imediato agora; logo, é um valioso instrumento de poder. Nos é evidente que “quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente, controla o passado”, como sintetiza a não tão distópica assim máxima orwelliana. Todavia, não se trata aqui de adular uma concepção manipulatória da história, como se a vitória sobre a disputa em questão se desse pelo mero controle dos seus meios de produção e distribuição e, consequentemente, pela difusão de uma versão hegemônica e positiva.

A disputa em questão é por algo indiscutivelmente mais visceral e não menos necessário: o reconhecimento da barbárie que se produz na história e de sua força social presente. Passado, memória e história, urge ater o olhar e a consciência para o conteúdo nefasto do baú empoeirado que corre no sangue da civilização, que se impõe e mira o futuro e o além, por mais vigorosos que sejam os esforços para trancá-lo a sete chaves ou para virar do avesso tudo que ali se encontra guardado.

Primeiramente, é preciso entender a história não como “tempo vazio e homogêneo”, como se se tratasse de um conjunto de fatos indistintos e indeterminados que se amontoaram sobre a marcha da “linha do tempo”, desde as reticências de um passado não contatado até às reticências de um futuro impreciso, mas como processualidade incessante e contínua, como força social que relampeja sobre o agora, fazendo-o vibrar por meio de um assombro que define e informa o sentido daquilo que constitui de forma imprescindível (embora muitas vezes inconsciente) as bases sociais sobre as quais pisamos hoje. Seguimos, com Benjamin, sabendo que a “verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido (…) Pois irrecuperável é cada imagem do passado que se dirige ao presente, sem que esse presente se sinta visado por ela” [3].

Além disso, tratemos, sobretudo, do conteúdo da história não como uma miríade coerente e harmônica de rumos traçados pela humanidade em função de forças determinadas por uma “natureza humana” ou por um “destino manifesto”, mas como um enovelado de processos em que as sociedades humanas se moveram materialmente e espiritualmente face ao contraditório, ao conflito, à diferença. Ademais, este ato de reconhecer a história enquanto processualidade dialética, note-se bem, não nos leva ao mero “olhar sobre”, mas ao “se ver em” ou ao “se reconhecer como produto de”. Com isso, trata-se de exercer o feito que sempre foi legítimo à arte de ficção: as imagens se bagunçam e se justapõem de modo que o passado emerja sobre o agora, revelando a orgânica conexão que vincula cercados a fábricas, caravelas a favelas, fogueiras a polícias. Torcer a noção de história em prol desta orientação conceitual implica num certo exercício sacrificial, pois a vitória não é celebrada com louros e gracejos, mas sim com o mergulho honesto, sincero e atual sobre o horror, a barbárie, a violência, a derrota [4].

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Expor a barbárie histórica é, de certa forma, um exercício de dupla função, pois não apenas desvela as contradições e as negatividades muitas vezes ocultas e mistificadas dos processos sociais constituídos, como também “emancipa” as figuras históricas que se submeteram à barbárie social das amarras da inversão fetichista que as atribui um outro sentido histórico, completamente avesso e deturpado. Falo daquelas figuras que carregam o injusto e arbitrário estigma do bárbaro e do violento quando, de fato, foram elas que se sujeitaram à barbárie e à violência, muitas vezes por se sublevarem contra sua continuidade e permanência.

O capital, em especial, é uma forma social que antagoniza diretamente com este intento, pois almeja reter a história para si, projetando sobre ela uma forma de representação própria que a oculta e a mistifica em vista de sua autolegitimação, assim como faz com suas formas econômicas próprias. Isso porque as contradições que expõem os limites desta forma social e que revelam seu caráter “irracional” não devem de forma alguma ser postas à mostra ou se identificar com ela, como algo advindo de sua responsabilidade, pois acarretaria em sua exposição ao ridículo, em sua crise de legitimidade. A crise, a desmedida e a “irracionalidade” são aspectos internos da lógica do capital, que não devem aparecer enquanto tal, por isso o movimento é sempre de constituição de múltiplos invólucros fetichistas, aquilo que se revela como suas formas de representação próprias, fundadoras de símbolos e consciências que dão movimento a uma “forma que aparece como criadora do próprio sentido de toda essa forma social” [5] que é o capital. Portanto, nunca nos esqueçamos de que o horizonte indispensável à crítica seja o desvelamento do sentido que acoberta o absurdo e a exposição ao constrangimento de todo o fundo de barbárie que é sobreposto pelo véu harmônico, natural, justo, positivo e universal.

Marx, o precursor da crítica da forma capital, já nos indicava um caminho. No livro 1 d’O Capital, após o longo encadeamento lógico das categorias centrais (mercadoria, trabalho concreto e abstrato, dinheiro, mais-valia relativa e absoluta etc.) que dão movimento à forma capital e atribuem a ela seu caráter real e efetivo, como forma “fundadora de um ‘sistema’ autocentrado de relações sociais que têm a si mesmo como finalidade imposta a todas as demais formas possíveis” [6], Marx chega ao final da exposição com uma ressalva. Esse “sujeito” capital, que descreve com suposta naturalidade a forma como se organizam as coisas e as pessoas, determinando não apenas o que é e como se reparte a riqueza social, mas toda uma forma abrangente de sociabilidade; esse “sujeito” que supera limites espaciais e temporais ao se alçar como a expressão por excelência de uma natureza humana irredutível e bem acabada é, pois, produto direto das mais variadas formas de violência, horror e barbárie. Formas que são constitutivas tanto de sua emergência primitiva quanto de sua reprodução hodierna por meio da exploração, da alienação, da usurpação, do roubo, do terrorismo, do genocídio. Numa passagem cortante e metafórica, o autor sintetiza esta sua tese da seguinte forma: “Se o dinheiro, segundo Augier, ‘vem ao mundo com manchas naturais de sangue numa de suas faces’, o capital nasce escorrendo sangue e lama por todos os poros, da cabeça aos pés” [7].

John Keane, “Car (1)”, 1993.

Entretanto, as bases sanguinárias do capital se ofuscam na medida em que a sua força social se generaliza e se universaliza, subsumindo todas as outras formas com as quais se confronta ao imperativo da valorização do valor, “arrastando consigo o seu entorno (…) como uma força estranha que se apodera de algo substancial e lhe imprime forma, para movimentá-lo ‘como se tivesse amor no corpo’” [8]. Somada às armas concretas da lei e da espada banhada de sangue e à “coerção muda” das forças econômicas abstratas, que descrevem e definem toda a forma de organização da sociedade capitalista no que tange às suas condições materiais de reprodução da vida, há uma série de outros mecanismos que aderem ao capital, embasando todo esse processo de constituição elementar da sociedade capitalista — e, continuamente, de seu incessante alargamento — e atribuindo a ela o estatuto enfeitiçado de única forma possível. A introjeção de uma forma de consciência, em especial, permeia todo esse processo ao assentar as bases capitalistas numa forma determinada de sujeito que lhes é imprescindível, conformando um tipo de sujeito subsumível às formas capitalistas. A figura filosófica do “sujeito” é, assim, estremecida sob o capital, pois o sujeito não se desgarra daquilo que lhe é alheio e que alheia a si mesmo, restando apenas a miragem: “sua subjetividade de fato condicionada pelo grande ‘sujeito’, o capital, comandando suas ações de tal modo que elas lhe aparecem como simples resultado do seu livre-arbítrio” [9].

Emergem, desta maneira, como contraparte necessária da legitimação capitalista, os “sujeitos” que concebem o capital com a mesma obviedade de que bípedes têm duas patas e quadrúpedes têm quatro. A forma assim celebra seu êxito ao se representar como força “autônoma”, desgarrando-se da “substância verdadeira da sociabilidade” [10], isto é, de seu caráter eminentemente social. Quanto à história, o capital se consagra junto de uma igual inversão de si mesmo. Impõe-se a forma de representação que inibe a fúria e a indignação, forma que ensurdece o “grito incessante” das catástrofes que não cessam de se empilhar aos seus pés, mas que potencializa a condescendência, como se todos estivéssemos defronte da vitória inconteste [11], da ordem natural das coisas agindo e tomando conta de tudo tal como deveria ser. Tem-se o sujeito que não se vê diante da exploração, da alienação, da usurpação, do roubo, do terrorismo e do genocídio, elementos que constituem as bases sociais sobre as quais ele se sustenta e se reproduz hodiernamente, mas que, por conta da força da representação deslocada, cala-se e consente, que “por educação, tradição e hábito, reconhece as exigências desse modo de produção como leis naturais e evidentes por si mesmas” [12].

O que seria George, nosso protagonista da tragédia hanekeana, senão a encarnação deste processo, desta consciência, desta forma? George é expressão caricata da forma abstrata do capital e da consciência que ela regurgita, ou seja, daquilo que se constitui enquanto tal fundamentalmente por intermédio da violência, mas que delineia sua própria fantasia para se desviar do caráter real e negativo desta assertiva. Sua história é cortada por instantes cruciais em que ele aliena, expropria, exclui, embora não os conceba enquanto tal. É justamente na lacuna do reconhecimento que reside o imperativo e a força da sua forma de representação própria da história. Pois é o necessário descompasso do reconhecimento de si enquanto produtor da barbárie que o leva a predar a história e tomá-la para si como ato de autopreservação, como defesa de sua identidade, isto é, daquilo que ele se tornou sobre o véu: um sujeito de sucesso, aclamado por todos, esmero, harmônico, justo. Não se trata de um descuido, de um acidente, de uma inocência. Tudo é sabido, a questão é que nada de si é reconhecido pela sua feição real e negativa, tudo é “Natural, não? (…) Do que eu poderia chamar? Uma tragédia? Talvez fosse uma tragédia. Não sei”.

O que é real e negativo, pelo contrário, encontra-se, à luz desta forma de representações deslocadas, em seu polo contraditório, isto é, na substância de que se apropria — o trabalho — ou desvairadamente em misticismos de outra ordem qualquer. Isso porque, como temos dito, a desgraça deve ser sempre efeito de força alheia, e nunca identificada com a forma que almeja a perfeição. “A forma não é a afirmação do poder da ‘substância’; não é o predomínio da identidade — da substância consigo mesma — sobre a diferença, mas a oposição à substância, o domínio da diferença — do capital, trabalho alienado — sobre a identidade” [13]. A diferença que se faz valer como regra transborda para todos os lados, não apenas inibindo uma forma de reconhecimento da “substância” perante os frutos de sua atividade social, do trabalho que se realiza em si e para si, como também fundando uma forma forçada e arbitrária de reconhecimento imposta à substância sobre tudo aquilo que não provém de si — mas sim da forma que o domina — e que aparece como disfuncional e problemático dentro da dinâmica social. Logo se explica o movimento da violência que, assim como as muitas outras formas sociais capitalistas, também é forma deslocada e assim se inverte: a contra-violência torna-se violência e a violência torna-se contra-violência. Ora, o que de fato era ofensivo em nossa narrativa, as fitas que rememoram George de sua barbárie ou a barbárie de fato por ele cometida?

John Keane, “Moment”, 2003.

No sentido da representação em questão, nada deve atingir a completude e a integridade da forma, e tudo aquilo que sinaliza para a barbárie social deriva necessariamente de disfunções de outra ordem, nunca das suas contradições internas e de sua potência disruptiva. Das suas formas invertidas emerge uma outra particular, tão cara ao fascismo: o mecanismo de inversão fetichista da responsabilidade, em que a responsabilidade por toda sorte de fenômenos sociais que perturbam a suposta ordem social não é assimilada interiormente, mas projetada exteriormente sobre opositores bem definidos. Mais uma vez o imperativo da representação deslocada se faz presente para aquele que devora toda ameaça de destruição do seu poder de assenhorar o tempo e a história: a história em mãos legitima e deslegitima e, por isso, define e descreve à sua maneira quem são os honrosos heróis e os pérfidos inimigos.

Todavia, o intento de que se fala, da forma que almeja tomar tudo e todos para si e se afirmar como sujeito absoluto da história, não passa de uma prerrogativa “cega” e “automática”. Isso porque, assim como ela não consegue se livrar completamente daquilo que subsume em seu movimento tautológico, a substância verdadeira criadora de valor — isto é, o trabalho —, também escapa à forma capital o domínio totalitário sobre a sua contraparte necessária no domínio da história. A barbárie que acompanha seu movimento passo a passo, e que avoluma o amontoado de ruínas que cresce até o céu, nunca se acoberta por completo. A barbárie sempre aparece e gera contestações, contra a determinação da forma e o convencimento de suas fantasias. Ora pois, aqui não é diferente: a derrocada da forma — em todas as suas dimensões — já está inscrita na própria forma em que a crise é sempre uma potência que se faz presente.

Portanto, o estar à frente nesta luta de classes pelas “coisas espirituais” pode ser obra de um movimento sorrateiro, tal como a câmera escondida que expõe o constrangimento de George ao desvelar o horror ora oculto. O feito heróico — que na narrativa de Caché é executado por aquele que se pressupõe vilão —, nesse caso, faz-se constar por um movimento peculiar, mas incessante, de desvelamento e de reapropriação da história. A vitória, por fim, assim se perfaz pela exposição de toda barbárie, de todo horror, de toda violência e de toda derrota que se acoberta por força alheia, de modo que o assombro seja para sempre latente e internalizado, e jamais esquecido.

Arnon Manhães Ceolin é mestrando em Política Social pela UFES. Graduado em Ciências Sociais pela UFES. E-mail: [email protected].

Referências

[1] MARX, Karl. O Capital: crítica da economia poltica. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 808.
[2] BENJAMIN, W. Sobre o conceito de história. In: Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura (Obras Escolhidas, Vol. I). São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 223.
[3] Ibidem, p. 224.
[4] Em seu brilhante Noite e Neblina (1955), Alain Resnais expõe o horror dos campos de concentração nazistas sem meias palavras e receios de constrangimento. Por incrível que pareça, assistir àquelas imagens pode parecer reconfortante se as tratarmos cinicamente como fragmentos de um passado já superado. Por isso, tão brutal quanto as imagens postas é a mensagem final do diretor, que ressalva no sentido do que temos dito aqui: “Existimos nós, que olhamos sinceramente para essas ruínas, como se o velho monstro concentracionário estivesse morto sob os escombros. Que parecemos nutrir alguma esperança diante dessa imagem que se afasta como se estivéssemos curados da peste concentracionária. Nós, que parecemos acreditar que tudo isso pertence a um só tempo, a um só país, que não pensamos em olhar à nossa volta, e que não escutamos o grito incessante”.
[5] GRESPAN, J. Marx e a crítica do modo de representação capitalista. São Paulo: Boitempo, 2019, p. 122, grifo nosso.
[6] Ibidem, p. 164, grifo nosso.
[7] MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 830.
[8] GRESPAN, J. Marx e a crítica do modo de representação capitalista. São Paulo: Boitempo, 2019, p. 147.
[9] Ibidem, p.14, grifo nosso.
[10] Ibidem, p. 137.
[11] Assim almeja nos convencer desta tautologia Coudet, um porta-voz da representação capitalista que se traveste de “filosofia da história”: “(…) espero ter demonstrado que uma vez que é preciso haver sempre o vencido, e que o vencedor é sempre quem deve sê-lo, é preciso provar que o vencedor não só serve à civilização, mas é melhor, mais moral, e que, por isso, é o vencedor” — LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 72.
[12] MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 808, grifo nosso.
[13] GRESPAN, J. Marx e a crítica do modo de representação capitalista. São Paulo: Boitempo, 2019, p. 177.

Ilustrando o destaque, uma cena do filme “Caché”.

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