Por Rodrigo Oliveira Fonseca

A violência ou super-ação fascista: assegurar que o trabalho de restaurar e reerguer o país não seja atrapalhado

Uma “contribuição genuína” dos EUA para a cultura política fascista deu-se com a mobilização e infiltração de gangues por Henry Ford e seu braço direito Harry Bennett nos círculos sindicais da indústria automobilística — e não somente. Ford também alimentou o nazifascismo europeu com as suas posições antissemitas [1], mas, nos atendo aqui a esse que pode ser apresentado como o quarto fundamento, a violência, cabe destacar essa utilização de grupos milicianos no interior do sindicalismo, considerada uma das bases dos movimentos fascistas por João Bernardo.

Essa integração do sindicalismo nos quadros institucionais dos movimentos fascistas, no entanto, não deve passar a ideia de que possa ter ocorrido algo mais do que uma recuperação — no interesse da ordem — das formas do sindicalismo. Isso porque os regimes fascistas representaram perdas significativas no poder de compra dos salários, consequência também da fragilização das lutas sindicais.

Outro elemento condizente com o fundamento da violência é o caráter autocrático assumido pelos patrões em regimes fascistas. A Lei Reguladora do Trabalho Nacional, promulgada na Alemanha em 1934, definia a empresa como uma “comunidade de trabalho”, na qual patrões e trabalhadores deveriam colaborar “não só para a consecução do fim particular prosseguido pelas empresas, mas também para a utilidade pública do Povo e do Estado” [2], com os patrões ocupando o lugar de Führer dessa “comunidade” e os trabalhadores figurando uma corte de vassalos em torno do senhor.

Ao patrão cabia tomar as decisões, responsabilizando-se pelo bem-estar dos assalariados, que por seu lado lhe deviam fidelidade e obediência […]. Enquanto Führer, o patrão podia decretar uma constituição interna, “a carta orgânica da vida interna da empresa, promulgada pelo seu próprio dirigente”, nas palavras do propagandista [W. Fritzsche], que devia ser previamente aprovada pelos representantes do Estado, os Curadores do Trabalho. A recuperação capitalista do sistema de conselhos atingiu aqui o auge, porque o reforço da hierarquia correspondeu a um agravamento da exploração. “Sem ilusões nem esperanças utópicas de vir a realizar novo paraíso económico”, explicou aquele propagandista, competia “ao conselho confidencial, formado por representantes do pessoal, sob a presidência do gerente da empresa”, “obter de cada um o máximo de rendimento e, quando preciso fôr, o sacrifício imposto pelas circunstâncias”. “Sem ilusões nem esperanças utópicas”, com efeito, porque numa força de trabalho de mais de vinte milhões de pessoas, de 1934 até 1936 apenas foram postos em tribunal 516 casos de violação das normas laborais, dos quais só pouco mais de 300 levaram à condenação dos patrões [3].

Ou seja, tratava-se de buscar a obstrução, por vários caminhos, das possibilidades de resistência e lutas autônomas dos trabalhadores. No Brasil atual, o fim do Ministério do Trabalho, a intenção de reduzir as normas de segurança no trabalho, a paralisação das fiscalizações e do combate ao trabalho escravo, a proliferação da contratação de trabalhadores como “pequenos empresários de si” (MEI), sem direitos trabalhistas, a aprovação da chamada carteira de trabalho verde e amarela, que dá aos empresários a oportunidade de terem um quarto de seus empregados com direitos reduzidos, as dificuldades postas para a contribuição sindical dos trabalhadores, mais a reforma da previdência social e o fim da política de reajuste anual do salário mínimo acima da inflação, são medidas drásticas e complementares de uma agenda notadamente antitrabalhista que não enfrenta grandes resistências. Deve ser registrado, ainda, a recorrência com que têm sido relatados casos graves de assédio moral a trabalhadores em empresas de diversos ramos, sem desdobramentos jurídicos favoráveis aos empregados.

A repressão política, ao lado do aumento da violência policial, também merece destaque, evidentemente.

No final de quase um ano de regime nacional-socialista, Göring explicou que para regenerar e reintegrar na comunidade racial germânica os oito milhões de pessoas que haviam dado o seu voto aos marxistas nas últimas eleições, realizadas já com Hitler na Chancelaria, fora necessário prender em campos de concentração os chefes partidários e os agitadores, sem contar com aqueles que logo nos primeiros dias se haviam expatriado, 65.000 se acreditarmos na contabilidade do Führer [4].

Apoiados em uma massa descontente e ressentida [5], os fascistas foram eliminando as chefias operárias tradicionais, isolando as vanguardas combativas e reorganizando o Estado em um novo modelo ditatorial [6]. Esse modelo, que tem inspiração na hierarquia militar, se coaduna com o elitismo, assumido por Hitler em suas críticas ao “mal da democracia” e ao que entendia ser a supremacia corruptora das massas sobre as elites, da quantidade sobre a qualidade. Como afirmou o jurista italiano Guido Bortolotto [7]: “O fascismo é uma revolução conservadora na medida em que exaltou o princípio da autoridade e reforçou-a contra uma liberdade democrática exagerada e sem medida”. E se no horizonte de expectativas dos fascismos trata-se de renovar e substituir elites, metas socialistas como as da universalização do ensino superior não fazem nenhum sentido.

E chegamos, assim, ao último ponto deste que entendemos ser o quarto fundamento do fascismo, sua violência ou super-ação: reformar/expurgar o ensino para libertar as futuras gerações da corrupção do caráter promovida pelos “demagogos”. Na Itália de antes de 1914, os sorelianos (como Mussolini) eram dados a fazer chacota do suposto espírito libertário apregoado na educação escolar. Para eles, que à época ainda eram considerados (e se consideravam) de esquerda, o que havia de fato era o veneno da ciência burguesa sendo ensinado às crianças nas escolas. No seu livro As Ilusões do Progresso, de 1908, Georges Sorel defendeu que “todos os nossos esforços devem procurar impedir que as ideias burguesas venham envenenar a classe em ascensão” [8]. Assim, Sorel defendia que os filhos dos trabalhadores fossem educados em instituições próprias, para não terem de participar de formas de raciocínio contrárias aos seus interesses. Com a guinada dos sindicalistas revolucionários para a extrema-direita, esse discurso passaria por uma adaptação, ma non troppo grande.

São reveladores os debates sobre a natureza e os limites do ensino/instrução, sendo possivelmente o seu tópico mais sensível — tanto para o avanço de tendências fascistizantes quanto para o ódio mais geral à democracia — as discussões em torno do fracasso escolar. No cenário francês, esse foi um duro debate que se estruturou com a tese sociológica de Bourdieu e Passeron de um lado, defendendo o fim da “fortaleza” que protegia a escola da sociedade, e a adaptação dos conteúdos ofertados aos alunos mais carentes de herança cultural; e com a chamada tese republicana de Jules Ferry [9] de outro lado, defendendo a manutenção dos muros para oportunizar uma distribuição igualitária do universal dos saberes [10]. Não por acaso o ensino militar, com o mote da uniformização/expurgo da diferença, parece mais próximo da proposta republicana de Jules Ferry, oportunizando ainda maiores facilidades para colocar “na linha” os professores — tomados por inimigos internos no quadro ideológico fascistizante brasileiro, acusados de “abusos da liberdade de ensinar”, de serem corruptores e doutrinadores de crianças e jovens indefesos de acordo com o projeto “Escola Sem Partido”.

No entanto, é justamente aí, na concepção que têm dos estudantes, que incide um dos maiores problemas para essa agenda. Os estudantes são hoje representantes por excelência do “homem democrático” de que fala Jacques Rancière, ou seja, eles são, em grande parte, jovens consumidores embriagados de igualdade, avessos a autoridades, e, quando mobilizados em torno de uma causa que compreendem e levam adiante, destacam-se pela sua inventividade e disposição para lutas prolongadas, como as ocupações de escolas em várias cidades do país nos anos de 2015 e 2016. Em São Paulo o movimento se desenvolveu como resposta a uma política do governo do estado de São Paulo que levaria ao fechamento de escolas; no Rio de Janeiro, em Goiás e em outros tantos estados as ocupações se deram também em torno de pautas locais e nacionais em defesa de melhorias na educação, e, posteriormente, contra o projeto de emenda constitucional que estabeleceu um teto/congelamento orçamentário para as políticas públicas — o que acabou fazendo com que se espraiasse o movimento de ocupação para várias universidades no país.

O propósito de “defender” a escola do seu encontro com a realidade extramuros, de expurgar o debate democrático do seu seio, de esvaziá-la de conteúdos que — no interesse das elites — deveriam ficar restritos a espaços mais controlados [11], tudo isso está na contramão dos valores e atitudes democráticos experimentados por grande parte da juventude, de modo que essa agenda fascistizante encontra, em uma de suas arenas mais disputadas, uma de suas mais fortes barreiras, não no corpo docente das escolas, cada vez mais precarizado e submetido a maiores extorsões [12], mas justamente nos estudantes. Não por acaso, na Hungria de Orbán, um dos governos de extrema-direita atuais mais salientes do planeta, o campo da Educação está, como no Brasil, no centro de fortes disputas políticas. A extrema-direita brasileira já ensaiou um confronto direto com a juventude das ocupações de escolas, quando o Movimento Brasil Livre (MBL) tentou realizar ações violentas de desocupação, e no ano passado descobriu-se que o Ministério da Educação tentou obter dados sigilosos de estudantes [13]. Ideologicamente o confronto é pública e ritualmente feito contra os professores, que supostamente estariam invadindo um espaço formativo que diria respeito apenas às famílias [14]. Tal ofensiva começa a se desdobrar em perseguições, como nas denúncias de “professores esquerdistas” estimuladas pelo governo no ano passado, sendo que a política mais substancial para a educação atualmente é a que atinge, em primeiro plano, os estudantes, através do aumento significativo de escolas militarizadas no país, e que em segundo plano já começa a atingir os docentes, como na interdição à participação em atividades sindicais, como ocorrido em fevereiro no estado de Rondônia [15].

Em 2015, o estado de Goiás contava com 26 escolas geridas pela Polícia Militar, Minas Gerais tinha 22, a Bahia tinha 13, o Rio Grande do Sul tinha 7, e todos os outros 23 estados contabilizavam 25 instituições militares de ensino [16]. Em 2018, Goiás já contava com 50 escolas estaduais geridas pela Polícia Militar, e agora em 2020 são 60 escolas. O governo petista da Bahia — com uma velocidade maior que a dos governos tucanos e do DEM (Democratas) de Goiás, e maior que a do MEC bolsonarista (que pretende militarizar 54 escolas em todo o país ainda esse ano, e chegar a 216 escolas em 2023) — ampliou de 15 para 83 o número de escolas “cívico-militares” entre 2018 e 2020 [17] [18]. Todos os governos alegam que estas escolas não sofrem interferência dos militares na “parte pedagógica”, mas somente na “parte disciplinar”. Basta ver as normas disciplinares dos colégios militares de Goiás para compreender as dificuldades postas para as lutas estudantis nestes espaços. Para além das normas “mais comuns”, que dizem respeito ao vestuário e aos cabelos — que têm recebido reações, como uma determinação contrária do Ministério Público Federal da Bahia —, existem orientações precisas em relação à circulação de livros, jornais e panfletos que possam ser considerados subversivos. Ler na sala de aula “qualquer publicação estranha à sua atividade escolar” é considerado transgressão leve; enquanto que “Ter em seu poder, introduzir, ler ou distribuir, dentro do Colégio, publicações, estampas ou jornais que atentem contra a disciplina, a moral e a ordem pública”, já configura transgressão média; e “Promover ou tomar parte de qualquer manifestação coletiva que venha a macular o nome do CPMG [Colégio da Polícia Militar de Goiás] ou que prejudique o bom andamento das aulas e/ou avaliações” é considerado transgressão grave [19].

Se os militares terão sucesso na imposição destas normas, não sabemos, mas é claro que, pela dimensão que está tomando a militarização do ensino, uma das instituições mais caras ao eixo exógeno do desenvolvimento de regimes fascistas, as Forças Armadas, ganha destaque no corpo social e presença no cotidiano das classes trabalhadoras em formação. Como Manolo sublinhou na sétima parte de sua série inconclusa Fascismo à brasileira?,

As forças armadas retomam, deste modo, seu papel clássico de formar novas gerações de trabalhadores, adaptando-o às exigências do momento. Se a disciplina férrea foi instrumento para punição e “ressocialização” de “indesejáveis”, ela é, hoje, meio para formação de gerações de trabalhadores cada vez “mais organizados”, “mais disciplinados”, “mais empreendedores” — em suma, mais produtivos. Para formar, em suma, bons trabalhadores, que permitam sua própria exploração e facilitem-na, eles próprios, ao máximo. Para formar novas gerações em moldes nacionalistas e “republicanos”, com base num igualitarismo formal (de clara origem positivista) entre os “cidadãos” de classes distintas em meio à tropa e à sociedade [20].

Tudo isso expressa, com grande intensidade, a militarização da vida e da política enquanto gestão social, que, de acordo Edson Teles, tem se desenvolvido desde a promulgação da Constituição de 1988, veio à tona com a repressão às Jornadas de Junho de 2013, e teria atingido o seu momento máximo na intervenção federal do Rio de Janeiro de fevereiro a dezembro de 2018 [21]. Pelo grau de violência e letalidade dessa opção das classes dominantes para a gestão social, tanto nos seus governos de direita quanto nos de esquerda, é lícito falarmos de Estado de exceção dirigido [22] e de necropolítica [23], o que deve representar, seguramente, a maior das preocupações associadas ao avanço da agenda fascista brasileira. Se a democracia liberal brasileira é recordista em violações aos direitos e assassinato de jovens negros e periféricos e de militantes políticos, um regime fascista no Brasil atual tem tudo para ser o mais violento dentre todos os regimes fascistas já existentes ao longo da história, incluindo o Estado Novo.

Modos de dizer do fascismo

Os modos de sonhar, de odiar, de agir e de reagir dos fascismos precisam ser bem conhecidos antes que seja tarde. E os modos de dizer? Ainda que tenhamos nos debruçado para trazer elementos históricos e conceituais acerca dos fascismos, e que tenhamos pontuado quatro fundamentos que se alimentam e complementam, reconhecemos que está para ser feito um estudo que articule os idealismos, o ódio, o pragmatismo e as violências fascistas em suas bases discursivas [24], o que, no entanto — e felizmente —, tem aparecido de forma fragmentada mas constante em mesas redondas, conferências, comunicações e artigos que tematizam e analisam a onda direitista que atinge vários países [25].

Adolf Hitler, que em princípio é o autor da máxima “a palavra lança pontes para horizontes desconhecidos” [26], não se notabilizou pelo lançamento de nenhuma palavra, de nenhuma ponte, e sim pela barbárie e pelos muros que (com apoio de milhões) plantou, em um horizonte que a maioria das pessoas atualmente repele, mas poucos parecem entender como foi se esboçando em um cotidiano de crise, desesperança e ressentimento. Em verdade, o ditador alemão relançou um dizer que ecoou com força por toda a Alemanha: Deutschland über alles (Alemanha acima de tudo). E aí temos algo que, sim, deve ser considerado um modo de dizer empregado pelo fascismo, reunindo o campo semântico-ideológico do nacionalismo e o campo morfossintático-linguístico de tudo, todo, total. Como o filólogo Victor Klemperer observou:

Na LTI [Língua do Terceiro Reich, no latim Língua Tertii Imperii], o “total” está em toda parte, mesmo fora do domínio da guerra: um artigo do Reich elogiava a “situação de educação total” em uma escola de meninas estritamente nazista; em uma vitrine, vi um tabuleiro de jogo de damas que se chamava “O Jogo Total” [27].

Trata-se, sem dúvida, de uma armadilha. Tudo, todo e total operam simultaneamente a indeterminação e a inscrição de uma completude, um esvaziamento necessário de referências discretas, identificáveis à primeira vista/audição, e um preenchimento ideológico contingente. Há diferenças entre os três termos, pois o sentido de total — nos exemplos de Klemperer, mas muito mais na fórmula Estado totalitário tal como apresentada por Faye (com sua gênese em vontade totalitária e mobilização total) — tende a trabalhar a perspectiva de extravasamento, de movimento, de ação de uma força inaudita que se expande ou quer se expandir. Quanto ao tudo, a equivocidade é maior, daí talvez o seu emprego mais difundido em slogans políticos, como o do ditador português António de Oliveira Salazar, Tudo pela nação, nada contra a nação, e o do presidente Jair Bolsonaro, Brasil acima de tudo, Deus acima de todos.

Outro “primo”, o todo/todos, aparece em slogans no campo das esquerdas, de modo que vale a pena também fazermos uma entrada para fins comparativos. Enquanto Michel Pêcheux[28] lembra de A URSS é o Estado de todo o povo para discutir o caráter populista do regime soviético [29], Eni Orlandi mobiliza esse mesmo dizer para pensar a interdiscursividade de outro, Brasil, um país de todos, do governo Lula, com sua força populista e neoliberal [30]. Em resumo, a contraposição que Orlandi faz entre o caráter assertivo do slogan stalinista (que traz ainda de forma determinada o Estado e o povo), e a qualidade de aposto do slogan petista (que fala apenas de um país), assim como as diferenças entre dizer de todo o povo e apenas de todos, ajudam-na a compreender certos processos de deslocamento e silenciamento na memória de esquerda, “ao jeito do discurso neoliberal, mundializado, homogêneo, em que noções como democracia, cidadania, não se calçam de determinações concretas” [31]. Seguramente, pela conjuntura discursiva e pela agenda daquele governo, o signo todos evocava os sentidos de democracia, cidadania e igualdade nas diferenças (e na desigualdade do quadro capitalista mais geral): um país de homens e mulheres, de indígenas e ruralistas, de pretos e brancos, de ricos e pobres, de trabalhadores e patrões.

Vamos então ao slogan de Bolsonaro. O que dizer quanto à indeterminação na estrutura X acima de tudo? Brasil acima de tudo o quê? De homens e mulheres? De trabalhadores e patrões? Das “interferências” da OMS e da ONU? De todas as críticas e demandas endereçadas ao governo? De todos os direitos vigentes? Entendemos que o efeito principal dessa estrutura sintática e discursiva, sua leitura predominante nos dias atuais, passa por uma sustentação tanto em enunciados religiosos como Deus acima de tudo [32], de maior circulação, como também por associações feitas a partir da estrutura X primeiro ou Primeiro X (como o America first, tradicional slogan nacionalista dos EUA). A despeito da identidade formal com o slogan nazista, Alemanha acima de tudo, circula uma versão de que o slogan do presidente Bolsonaro recupera um brado da Brigada de Infantaria Paraquedista do Exército, que teria começado a ser utilizado nas Forças Armadas por um grupo de militares de extrema-direita chamado Centelha Nativista, formado logo depois do Ato Institucional nº 5 como grupo de pressão a favor do endurecimento do regime na “guerra contra os comunistas”. Esse grupo chegou a invadir a Rádio Nacional para ler um manifesto contra as negociações empreendidas pelo governo em prol da libertação do embaixador estadunidense sequestrado Charles Elbrick. As últimas palavras do tal manifesto teriam sido “em nome de Deus, Brasil acima de tudo” [33].

Mas a estrutura do slogan de Bolsonaro não é somente X acima de tudo. Sua estrutura é X cima de tudo. Y acima de todos. Importa notar que esses acréscimos têm consequências discursivas, pela incorporação de Deus, que produz identificação com a base social cristã e, sobretudo, evangélica, e pela incorporação de todos — discursivamente muito menos indeterminado que tudo, até por um efeito interdiscursivo com Brasil, um país de todos. Os tropeços (nos EUA) e adaptações (em Davos) do presidente com a sua própria frase-slogan acabaram nos ajudando a tornar visível uma chave de leitura verossímil e coerente com sua performance discursiva ao longo da campanha, a inversão Deus acima de tudo, Brasil acima de todos. Por esta via, na leitura de um enunciado pelo outro, Deus recupera sua “jurisdição específica”, mais ampla e abstrata, sobre todas as coisas, sobre tudo, que tem efeito mais indeterminado, enquanto que Brasil funciona como metonímia para o Estado brasileiro, com sua bandeira “que jamais será vermelha” [34], com seus interesses supostamente gerais e unitários, sendo que todos evoca, seguramente, o conjunto muito menos indeterminado (e, por isso mesmo, tangível) da população, incluindo, é claro, os inimigos internos do imaginário fascistizante, que agora têm de experimentar a condição de serem governados por alguém que, quando candidato, enunciou que os levaria à “ponta da praia”, metáfora do regime “cívico-militar” para a execução e desova de presos políticos.

E tem-se, assim, por um caminho que não é simplesmente o do “empréstimo” de uma forma/estrutura experimentada na Alemanha nazista, um funcionamento discursivamente propenso ao campo semântico e ideológico do fascismo e do Estado totalitário em condições genuinamente locais e contemporâneas, agenciando discursivamente as instituições do eixo conservador exógeno ao fascismo, a Igreja (no caso, o neopentecostalismo) e o Exército (exemplaridade ideológica máxima no discurso bolsonarista do amor às cores da bandeira e da entrega aos desafios da Pátria).

Como resistir a isso?

Não é, infelizmente, um dos temas do artigo, pois a verdade é que não saberíamos avançar muito nele. Mas se — acompanhando uma vez mais João Bernardo — os fascistas só têm sucesso apostando em um caráter conflitivo que demanda o cultivo de ódios e ressentimentos, e se Dostoievsky estava correto ao acusar os socialistas de só serem capazes de amar uma humanidade abstrata e distante, acreditamos ser o caso de acompanhar também Jacques Rancière [35] em sua aposta cética numa democracia que, promovendo um encontro “entre os que sabem partilhar com qualquer um o poder igual da inteligência, pode suscitar, ao contrário [do medo e do ódio], coragem e, portanto, felicidade”. Coragem e felicidade serão realmente vias de resistência aos fascismos? Todo encontro verdadeiramente democrático, horizontal, respeitoso, afetivo e direto entre professores e estudantes, encontro que é sempre trabalho e vida, formação para o trabalho e para a vida, pode funcionar como barreira às pontes autoritárias lançadas do passado e proteção vital aos ataques de cima, que se querem “acima de tudo e todos”, e pode representar, sim, um amor concreto e contingente com muito mais potência, com muito mais sentido e efeitos que a miséria dos ódios e ressentimentos.

Compreender o fascismo: 1) o conceito
Compreender o fascismo: 2) sonho e ódio
Compreender o fascismo: 3) o pragmatismo
Compreender o fascismo: 4) violência e modos de dizer

Notas

[1] BERNARDO, João. Labirintos do Fascismo: na encruzilhada da ordem e da revolta. 3ª edição, ampliada e revisada, 2018, p. 867. Disponível aqui.
[2] BERNARDO, 2018, p. 41.
[3] BERNARDO, 2018, p. 42.
[4] BERNARDO, 2018, p. 589.
[5] Sobre o ressentimento no quadro social e político brasileiro, ver o artigo Que horas Lula volta?, de Leo Vinicius, Passa Palavra, 30/09/2015. Disponível aqui; e O ressentimento chegou ao poder?, de Maria Rita Kehl, Serrote, n. 33, 2020. Disponível aqui.
[6] BERNARDO, 2018, p. 26.
[7] Apud FAYE, Jean-Pierre. Introdução às linguagens totalitárias: teoria e transformação do relato. Tradução de Fábio Landa e Eva Landa. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 69.
[8] BERNARDO, 2018, p. 556.
[9] Jules Ferry foi um positivista do final do século XIX, ministro da Instrução Pública e das Belas Artes entre 1879 e 1883, promotor da política de unificação linguística da França, em torno de um francês padrão — o que se relacionava também com o seu forte papel nas políticas de expansão colonial do Estado francês.
[10] RANCIÈRE, Jacques, O ódio à democracia. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2014.
[11] Substrato da política de formação dos quadros nazistas para o Estado, através das Escolas Adolf Hitler e dos Institutos de Formação Política Nacional, desvinculadas das instituições educacionais comuns. Ver BERNARDO, 2018, p. 913.
[12] O que significa dizer que os “valores e atitudes democráticas” da juventude não chegaram aos fundamentos da produção social, das relações sociais de produção, sendo esse um fenômeno fundamentalmente cultural, de acessibilidade aos bens que o aumento da produtividade do trabalho proporciona.
[13] Igor Carvalho. MEC tenta obter dados sigilosos de estudantes; para especialista, medida é ilegal. Brasil de Fato, 25/05/2019. Disponível aqui.
[14] PENNA, Fernando. O discurso reacionário de defesa de uma “escola sem partido”. In: GALLEGO, Esther Solano (Org.), O ódio como política: a reinvenção da direita no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 111.
[15] Cf. Escola cívico-militar em Rondônia afasta professores por interesse em sindicato. Carta Capital, 22/02/2020. Disponível aqui.
[16] Bruna Aidar. Goiás é o estado com mais escolas militares do Brasil. Jornal Opção, 10/08/2015. Disponível aqui.
[17] Isabela Palhares. MEC exige cabelo preso em escola cívico-militar. Correio 24 horas, 04/02/2020. Disponível aqui.
[18] João Pedro Pitombo. Com aval de governo do PT, Bahia chega a 83 escolas militarizadas. Folha de S.Paulo, 19/12/2019. Disponível aqui.
[19] Normas Disciplinares do Colégio da Polícia Militar de Goiás. Disponível aqui.
[20] MANOLO, Fascismo à brasileira? (7). Passa Palavra, 04/08/2018. Disponível aqui.
[21] TELES, Edson. A produção do inimigo e a insistência do Brasil violento e de exceção. In: GALLEGO (org.). O ódio como política: a reinvenção da direita no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 65-72.
[22] PASSA PALAVRA. Estado de exceção dirigido – quando as regras mudam no meio do jogo. Passa Palavra, 18/02/2014. Disponível aqui.
[23] MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018 [2003].
[24] No sentido pecheuxtiano, de Michel Pêcheux, o que significa dizer — ao mesmo tempo — base material linguística/significante e base material histórica.
[25] Um exercício de análise para entender as bases discursivas do governo Bolsonaro pode ser lido em FONSECA, Rodrigo Oliveira. A democracia e o nosso sangue: paráfrase discursiva e compreensão das referências. Cadernos de Letras da UFF, v. 30, n. 59, p. 263-277, 2019. Disponível aqui.
[26] FAYE, 2009, p. 46.
[27] KLEMPERER, 1947 apud KRIEG-PLANQUE, Alice. A noção de “fórmula” em análise do discurso: quadro teórico e metodológico. Tradução de Luciana Salazar Salgado e Sírio Possenti. São Paulo: Parábola, 2010, p. 41.
[28] PÊCHEUX, Michel. Ideologia, aprisionamento ou campo paradoxal? Tradução de Carmen Zink. In: PÊCHEUX, Análise de Discurso. 2ª edição. Campinas, SP: Pontes, 2011 [1982], p. 107-119.
[29] Slogan que também, como destaca Ana Zandwais, interpela a diversidade de povos da URSS como “um só povo”. ZANDWAIS, Ana. Práticas políticas nacionalistas e funcionamento discursivo: totalitarismo, fascismo e nazismo. In: ZANDWAIS; ROMÃO (Orgs.), Leituras do político. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2011.
[30] ORLANDI, Eni. Propaganda política e língua de Estado: Brasil, um país de todos. In: ORLANDI, Discurso em análise: sujeito, sentido, ideologia. 2ª edição. Campinas, SP: Pontes, 2012, p. 123-128.
[31] ORLANDI, 2012, p. 126.
[32] Que talvez evoque ou seja mesmo um desdobramento do primeiro mandamento, “Amar a Deus sobre todas as coisas”. Curiosa e infelizmente, nessa evocação ou desdobramento que – hipoteticamente – termina em “Deus acima de tudo”, apaga-se o amor a Deus: este é que deveria ser posto sobre todas as coisas, acima de tudo, e não Deus.
[33] Cf. Folhapress. ‘Brasil acima de tudo’: conheça a origem do slogan de Bolsonaro. Gazeta do Povo, 24/10/2018. Disponível aqui.
[34] O que analisamos em artigo já referido, FONSECA, 2019.
[35] RANCIÈRE, 2014, p. 122.

As ilustrações reproduzem obras de Jörg Immendorff (1945-2007) que, exceptuando a imagem de destaque, pertencem à série Café Deutschland.

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