Por Miguel Serras Pereira

Parafraseando um fragmento de Eduardo Lourenço que trago de há muito na memória, teremos de escolher, de facto, entre a redução do tempo à “sombra de Deus” ou o reconhecimento real de deus como “sombra do tempo”. Seguem-se três breves aproximações poéticas que talvez possam introduzir a outras formas de abordagem da questão. Que, no fundo, talvez seja a mesma que, noutro lugar, Eduardo Lourenço também põe, quando nos diz ser necessário pensarmos tudo o que, na história que nos fez e fazemos, se oculta sob o nome de Deus. Ou seja, avançando um passo mais, trata-se de libertarmos a singularidade da criação humana, tanto na história como em cada um de nós, do interdito e da culpa em que a sacralização da omnipotência divina ou de qualquer ordem intemporal de determinações aprisiona e mutila o nunca sabido e nunca sido do que em nós se consuma e permanece como potencial e sem fundo. E, por fim, do mesmo modo que Winnicott dizia que o vazio é a condição de alguma coisa de novo ser criado, creio poder talvez dizer agora que desentaipar e reconhecer o sem-fundo que o nome de deus oculta é condição necessária de descobrirmos esse vazio e ousarmos navegar à sua tona — à tona do vazio como propõe o título da série de poemas da qual fazem parte os dois primeiros dos três que se seguem.

1.Breviário

Porque amada o tempo há e nele só
embora nada sendo em quanto é
tudo começa ou morre e nem deus pode
haver se há tempo ou dar ao tempo ser

2. Profissão de fé

Após tão longo medo e vão desassossego
se não te matei ainda cortando-te a cabeça
para a sangrar no pó da loucura divina
sem a atirar aos cães para os não envenenar

foi porque hoje o mais sábio talvez seja evitar
que me saia a vingança pela culatra à esquina
e no fundo de um beco me deixe a ruminar
que se uvas há mas verdes é assim que me perdes

como querer matar-te é já ressuscitar-te
Antes pois esquecer-te sob os mantos de urtigas
que irrompiam outrora do chão dos cemitérios
no canto excomungado reservado aos suicidas

Assim possa esta velha peste ter remédio
ou o remorso de ter crido em ti passar-me

3. Páscoa

Um cristo ressurrecto em plena quarentena
as entranhas de judas que estrumam as papoulas
a minha pia tia que diz olha que pena
o meu folar queimou-se minha nossa senhora

O sabor das laranjas comidas no quintal
a procissão do enterro de uma noite de insónia
a morte a gume brando do cabrito pascal
que a economia da graça tributou ao demónio

A tua rua ao crepúsculo do domingo passado
a glicínia em flor que te faz tão feliz
e a boneca de louça no chão em estilhaços
que ao passar não pisaste meu deus por um triz

Uma semana da paixão que crepita na sombra
a conversa depois que à noite nos trará
outra história à deriva nesta história tão longa
que deixa toda a eternidade para trás

1 COMENTÁRIO

  1. INSTRUÇÃO PARA LER M.S.P.:
    Ousaríeis bricolar o esotérico bricabraque heideggerfernandopessoanoheteronimado num agenciamento discursivo abracadabrante&auseinander?
    Antes, porém, de o ensaiardes, forçoso é que -gótico intempestivo & fascinado por uma eternidade customizada- reconheçais o apud ezrapoundiano: lentidão é beleza. QED

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