Por Victor Hugo Silva
“Apesar desses campos serem vistos como uma vergonha para sociedade moderna (europeia), essa vergonha não foi suficiente para impedir seu uso em ocasiões futuras. Durante a primeira guerra mundial, os campos se desenvolveram para novas circunstâncias. Durante a primeira guerra (…) o Secretário de Interior Reginald McKena rebateu pedidos iniciais de colocar todos os imigrantes (de países hostis) nos campos com o argumento de que o público em geral não tinha mais a temer de estrangeiros inimigos do que ‘do nativo comum de caráter ruim’”.
Andréa Pitzer, Concentration Camps Existed Long Before Auschwitz, Smithsonian Magazine, 2 de Novembro de 2017.
O bem sempre vence o mal
Marcão do Povo, apresentador do programa Primeiro Impacto, do SBT, voltou ao jornalístico no dia 27 de abril, após ter ficado afastado 19 dias da apresentação do programa por declarações polêmicas. Marcão comemorou o retorno, dizendo que o bem sempre vence o mal. “Eu não gosto de mimimi, se eu gostasse comprava um gato gago”, disse, em tom de deboche. Mas depois o papo fica sério. Estamos falando de um trabalhador que quase perdeu o emprego por uma fala mal compreendida.
Pouco depois, Dudu Camargo, companheiro de Marcão do Povo no jornalístico, se desculpou pela fala polêmica nas redes sociais no último dia 8 de abril: “Eu, humildemente, peço perdão pela forma como eu coloquei a palavra, apesar que é possível entender muito bem o que eu quis dizer”. E arremata: “Sabe por que isso tudo aconteceu gente? É porque o bem costuma vencer. Mas ele vence por algum tempo. Alguns minutos. E por fim. (Pausa dramática) O bem sempre… vence o mal. Esse é o motivo de eu estar aqui — e de você estar aí também lutando pela sua família. Se seguirmos todos os dias acreditando que as coisas vão melhorar. Que as coisas vão mudar. Que a saúde será reestabelecida entre todos. Que iremos sair dessa situação certa. E que nosso país vai andar… que o mundo está vivendo… e nós acreditamos que teremos um mundo muito mais feliz. Eu estou feliz por voltar. Por me encontrar (de novo) com vocês”.
Pois é disso que se trata. Encontramos de novo o velho inimigo dizendo exatamente a que veio, o que pretende fazer, só que, dessa vez, a cavalaria democrática não vai vir para nos salvar. Vamos então ver o que eles parecem pretender fazer, em que terreno nos colocaram, onde nos colocamos em nossos recuos “táticos” e se há possibilidade de sobrevivermos.
Pergunta número 2: Como é possível?
Em meu primeiro texto afirmei que um “plano eugênico de extermínio internacionalmente compartilhado por orientação política comum” era uma explicação muito mais plausível para a resposta do governo Bolsonaro à pandemia da Covid-19 do que um discurso e uma prática de “desastre, loucura, incoerência” compartilhado simultaneamente por coincidência pelo governo de ao menos Reino Unido, Estados Unidos e Brasil (sem contar a Suécia). Teve gente que entendeu isso como uma “teoria da conspiração” por trás da pandemia — isso porque tem um entendimento equivocado do que significa um “plano” e “conspiração”. Um plano é uma tentativa de criar um futuro a partir de tendências e informações do presente. Uma conspiração é um plano compartilhado por vários sujeitos políticos: é uma ação política coletiva planejada. Não existe nenhum plano na história da humanidade que se realizou conforme pensado na cabeça de quem pensou. Todo plano é uma aposta. Depende da ação de outros grupos, de conflitos, resistências. Quem acredita em planos e conspirações onipotentes acredita mais neles do que seus formuladores. Ironicamente, acaba por jogar o jogo deles. Quem quiser ler uma boa discussão a respeito pode conferir o texto de Manolo.
Quanto aos céticos que ainda não acreditam que esse governo está realizando um extermínio deliberado, vou lembrá-los que o maior jornal conservador brasileiro, o Estadão, em editorial titulado A opção pela morte, afirmou que Bolsonaro realiza “um empreendimento que, sem exagero, já pode ser chamado de social-darwinista — em que a morte por covid-19 é vista como uma forma de depuração da sociedade, pois só abate aqueles que não têm ‘histórico de atleta’. (…) Como diz o médico Antônio Carlos do Nascimento em artigo publicado ontem no Estado, ‘sem a opção do genocídio, só nos resta o isolamento e a testagem abrangente para limitar o universo da circulação do vírus’. Aparentemente Bolsonaro já fez sua mórbida opção”. Dou a questão, portanto, por encerrada — a não ser que o leitor queira ser mais cínico a respeito de mortes de pessoas pobres no Brasil do que o Estadão.
A pessoa certa na hora certa
A saída de Teich do Ministério da Saúde — que motivou o editorial — abriu espaço para a entrada do General Eduardo Pazuello, paraquedista, especialista em logística, descrito por “fazer acontecer” e como “excelente coordenador das operações logísticas durante as olimpíadas e paraolimpíadas no Rio de Janeiro em 2016”. Pazuello foi comandante da Operação Acolhida, responsável pelo gerenciamento dos refugiados Venezuelanos, entre março de 2018 e janeiro de 2020. É conhecido por ser um sujeito inovador na tecnologia de empuxo de carroças e por toques humanos no trato da administração como usar a expressão “brother” e “tamo junto”. “A vida é dura, brother”, disse o atual número 1 da Saúde quando foi indicado para ser o número 2 da pasta, com a qual disse “não ter muita afinidade”.
Qual o motivo de ter sido escolhido, então? Floriano Peixoto (não aquele, outro!) dá um motivo que pode ser dito às claras: inteligência privilegiada, capacidade de articulação invulgar, educação e qualidades pessoais como “metódico, integrador, extremamente organizado”. Um general organizado fala o motivo que não pode ser dito às claras e deixa um arrepio a quem sabe ler nas entrelinhas: “Pazuello fez sua carreira como um daqueles que são sempre escalados para o que chamamos de ‘boca podre’. Aquelas missões que ninguém quer receber e poucos conseguem resolver”. Teich, ao receber o general, deu mais uma pista: “É uma pessoa que vem trazendo uma contribuição num momento em que a gente corre contra o tempo. Não contra o tempo em relação à saúde só na [pandemia de] Covid, mas em relação a como o país vai ficar, como sistema de saúde”.
A vida é dura mesmo, “brother”, e não são só eles que estão correndo contra o tempo, não apenas contra a Covid: nós também estamos. Precisamos perceber isso logo, e começar a correr no sentido contrário.
Catástrofes, desastres, crimes
Resolvida a questão do que é isso e isso é um projeto de extermínio genocida e eugênico, vamos ao que interessa agora: como esse projeto está sendo realizado no Brasil? Que eugenia é essa? Que genocídio é esse? Por que é que ele não parece real? Por que o governo parece — e muitas vezes consegue — criar uma impressão de que não há ninguém morrendo? Como é possível que morram 800 a 900 pessoas por dia no país, mortes evitáveis se compararmos com países ao lado, e não haja uma comoção coletiva gigantesca que derrube esse governo?
Para termos uma noção, o rompimento da barragem de Brumadinho causou 259 mortes e uma verdadeira insurreição moral contra a Vale do Rio do Doce. Trata-se de mortes evitáveis de trabalhadores causadas por negligência e por “ganância”. Por que a comoção — e a busca por reparação — diferentes? É questão de escala? Mais mortes “não dá para aguentar”, “não dá para sentir mais”? Só para quem vê as mortes de longe, em tabelas. A chave está em outro lugar, está nesta palavra aqui: evitáveis. Ela comporta um responsável por uma ação: um sujeito que matou porque a morte lhe interessava mais que evitar as mortes. Também comporta sujeitos que lutam por justiça: os mortos, seus familiares, a sociedade. Gente a quem interessava evitar as mortes: passadas e futuras.
O discurso de Bolsonaro anula tudo isso. Ninguém morre de Covid-19, morre-se de outra coisa qualquer. Ninguém é responsável pelas mortes exceto o próprio morto e ao mesmo tempo todos são responsáveis pelas mortes, exceto ele. Trata-se de uma guerra em que todos são soldados, mas o inimigo é invisível ou é oculto e não se sabe quem está do seu lado. Tudo vira confusão, ambiguidade. As pessoas morrem desesperadas, isoladas. Diz ele: “O povo tem que voltar a trabalhar. E quem não quiser trabalhar que fique em casa, porra. Ponto final”. Ponto final do quê?
Tudo é confuso, nebuloso. Mas esse sujeito é militar e, além disso, é moleque. Gosta de falar por códigos. E como a gente decifra um código em meio à confusão deliberada para despistar o inimigo? Por meio de senhas. Vamos usar algumas, então, para decifrar como o seu plano de extermínio vem se realizando. Primeiro: desfazer a confusão, reestabelecer o sentido do tempo e do espaço. Depois: reorganizar o sentido, cada coisa em seu lugar. Depois, precisamos criar nossas próprias senhas para nos defender.
Ele quer nos matar? Nós quem? Está dando certo?
Vamos partir de uma premissa. Levar a sério o que as pessoas dizem, a não ser que a prática contradiga o discurso. Combinado? Então quando falarmos de intenções e objetivos, vamos falar dos objetivos expressos ou, no máximo, implícitos pelo contexto nas falas dos atores.
Jair Bolsonaro em 2017, ainda pré-candidato, já nos dizia que a especialidade dele e dos seus colegas de profissão era matar. Na época, ele estava defendendo um polêmico projeto que defendia a liberação da “fosfoetanolamina”. “Cura ou não cura, eu não sei. Sou capitão do exército, minha especialidade é matar, não é curar ninguém. Mas apresentei junto com alguns colegas e aprovamos. Dá certou ou não dá? Vamos dar a chance daquele que tem o dia marcado para morrer tomar a pílula”. Na mesma entrevista, no seu característico estilo de falar “caótico”, ele amarrou: “Vocês nos treinam, nos pagam para isso. Eu não quero é falar que a polícia tem que matar inocente, não é por aí”. Não precisa falar: se morrer, é porque é suspeito (mesmo se estiver desarmado). O policial não tem de matar nenhum inocente: o suspeito simplesmente é morto. Tal como um objeto cai no chão, puxado pela gravidade. Uma árvore que cai em uma floresta sem ninguém para ouvir. Um não acontecimento. Um nada que deixa de existir.
Na famosa reunião com Moro que obcecou o noticiário por fofocas relacionadas a intriguinhas familiares das nossas elites, um fato notável passou despercebido pelo comentariado de esquerda e de direita. De acordo Bela Megale:
“Outro momento tenso do encontro, desta vez protagonizado por Bolsonaro e Sérgio Moro, foi quando o presidente reclamou de uma nota de pesar divulgada pela Polícia Rodoviária Federal (PRF), instituição vinculada à pasta da Justiça, na época chefiada por Moro. No comunicado, a PRF lamentou a morte de um funcionário por covid-19. O presidente se queixou e disse, conforme relatos de quem estava no local, que a corporação deveria ter relacionado a causa da morte a ‘comorbidades’ (como problemas cardíacos, imunidade baixa e pressão alta, por exemplo) e não coronavírus”.
Tive curiosidade de ver a nota. Confiram aqui. Como não liberaram a gravação por motivos de estabilidade e ordem nacional, jamais saberemos o motivo exato da reclamação. Mas um deles sabemos de segunda mão: a PRF deveria ter justificado (como a polícia costuma fazer com as vítimas-objetos habituais de suas mortes) com características da própria vítima, suas comorbidades. Especularia, com base em outros indícios de que falarei abaixo, que desagradou o fato de a nota dizer que o Covid “não escolhe sexo, idade, raça ou profissão”.
Onde ele queria chegar com isso? Vamos lembrar de outro episódio emblemático de um universo atrás em que um músico, sua mulher e seus filhos foram metralhados por soldados assassinos por motivo nenhum. Apenas o músico morreu — e um transeunte que se atreveu a não ser cúmplice. Uma semana de silêncio após o incidente e depois de cobranças da esquerda por seu “silêncio ensurdecedor”, Bolsonaro finalmente se manifestou: “o exército não matou ninguém”. Como?
“O Exército é do povo. A gente não pode acusar o povo de assassino. Houve um incidente. Houve uma morte. Lamentamos ser um cidadão trabalhador, honesto”. A natureza do incidente que foi noticiado como “homem morre após carro ser atingido” foi contada assim por uma testemunha que estava indo junto para um chá de bebê:
“Eu não vi onde foi o tiro, mas eu acho que foi nas costas. Só que a gente pensou que ele tinha desmaiado no volante (…) A gente saiu do carro, eu corri com a criança e ela também. A gente saiu do carro, e mesmo assim eles continuaram atirando (…) Tinha um morador passando aqui na hora, que estava aqui no meio, foi tentar ajudar o padrasto e também foi atingido no peito” (…). Absurdo, né? Inacreditável. Não parece real. Onde estão as instituições, os militares razoáveis? Vamos ver o que pensava o militar mais razoável ao alcance da mão.
A “alternativa” Mourão também se manifestou depois de forte pressão da esquerda e da sociedade civil nas redes sociais sobre sua opinião a respeito do incidente em que o homem morreu: “sob forte pressão e sob forte emoção, ocorrem erros dessa natureza”.
Talvez o leitor pense que o erro foram os mortos? Não, o erro foi literal, o tiro errou o alvo: “os disparos foram ‘péssimos’”, já que os 80 tiros só atingiram uma pessoa dentro do carro. “Houve uma série de disparos contra o veículo da família, então você vê que foram disparos péssimos, né? Porque, se fossem disparos controlados e com a devida precisão, não teria sobrado ninguém, o que seria ainda pior a tragédia”.
Fica a lição. Quando os disparos forem controlados, com a devida precisão, não vai sobrar ninguém. Melhor não nos iludirmos quando os executores nos fazem o favor de avisar com tanta antecedência enquanto acobertam seus crimes. Quando um policial ou militar falar que não quer falar de morte ou de matar no Brasil, não precisa hesitar: eles querem nos matar e esconder nossos corpos.
A perspectiva que se apresenta, então, é de uma tragédia ainda pior que a habitual usando os mesmos mecanismos de sempre. Vamos ver como vem funcionando na pandemia da Covid-19?
Essa epidemia simplesmente não existe
“Você não tem um único caso confirmado de morte por coronavírus”, disse em 23 de março Olavo de Carvalho.
“Para confirmar, você precisa fazer o exame de cada órgão do falecido, e onde que fizeram isso? Nunca fizeram nenhum. É a mais vasta manipulação de opinião pública que já aconteceu na história humana. Parece coisa de ficção científica. A experiência de 72 anos de vida me mostra que em geral a verdade é inverossímil. O que as pessoas esperam que aconteça não acontece e o que acontece é o que elas não esperavam, então elas não acreditam que está acontecendo”.
Dois dias após essa manifestação pública — rapidamente retirada do ar pelo youtube, mas registrada em vários meios noticiosos — Bolsonaro fez um pronunciamento televisivo apresentando a sua proposta de isolamento vertical, isto é, de negligência mortífera direcionada contra idosos e grupos vulneráveis, além de sabotagem contra as políticas locais de quarentena. O médico Walter Ricciardi, citado por ele para desautorizar as quarentenas nos estados e prefeituras, tratou logo de desautorizar presidente: “É muito sério, é um novo vírus, todos são suscetíveis, se (a pandemia) ficar descontrolada poderemos ter milhões de casos e milhares de mortes. Isso subestima o impacto da epidemia em vidas humanas”. Em outras palavras, acusou diretamente o presidente do país de tentar provocar milhares de mortes. Qual foi a resposta?
Fora de tom
Já disse o significado dessa proposta de “isolamento vertical” e onde ela surgiu aqui. Quais foram as respostas? Mandetta disse que “ia conversar com ele”. Davi Alcolumbre achou que não era pronunciamento de liderança “séria”. Rodrigo Maia pediu “sensatez, equilíbrio e união”. Gilmar Mendes pediu “solidariedade e corresponsabilidade”. Witzel do Rio de Janeiro falou que o presidente “contraria a OMS”. Rui Costa da Bahia disse que Bolsonaro devia “acordar. Vou continuar trabalhando mais e mais. Olhar nos olhos das pessoas e dizer: estamos numa guerra. Temos que vencê-la. Responsabilidade”. Caiado, de Goiás, rompeu com o presidente. Marcelo Freixo, principal figura da oposição de esquerda, reclamou de ter de ver “um presidente desqualificado mentir, debochar e provocar um país”. Repetindo: o médico citado pelo presidente para fundamentar a proposta o acusou de usar seu estudo para causar milhares de mortes. A resposta foi essa.
Ironicamente, o único a ser mais claro foi Kim Kataguiri do DEM:
“o presidente dobrou a aposta do discurso lunático e colocou em xeque as políticas de isolamento defendidas pelo seu próprio ministro da Saúde (…) Em vez de propor soluções, preferiu atacar a imprensa, os governadores e fazer piada em rede nacional. Tragédia anunciada”.
Tragédia anunciada para quem? E se foi anunciada… por que vão deixar acontecer? Repetindo: o médico citado pelo presidente para fundamentar a proposta o acusou de usar seu estudo para causar milhares de mortes. A resposta foi essa.
A questão das “comorbidades”, “achatar a curva” e das “zero mortes”
Vamos começar com uma definição. Eugenia — pela Wikipédia — significa bem nascido. Na sua definição original ela é: “o estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações seja física ou mentalmente”. Em vários países, o movimento eugênico inspirou a promulgação de leis de esterilização compulsória de portadores de certas doenças ou características — exemplo foram os Estados Unidos em 1907. A Alemanha nazista também fundamentou sua política de extermínio de determinados grupos nesse pensamento. Quando falamos que existe um movimento eugênico estamos falando — grosso modo — que um grupo pretende selecionar determinadas características (ou perfis), achando que é possível “melhorar” a humanidade passando adiante características “melhores”. Exemplo disso na base social da pirâmide:
É por isso que o Estadão chama de ‘empreendimento social darwinista’ o que Bolsonaro está fazendo ao sabotar a quarentena. Porque, assim como o “bandido” que morre é porque carrega o fuzil, e assim livra-se a sociedade de levar para a frente a semente da “bandidagem”, também o “fraco” que morre por Covid-19 por “comorbidade” melhora a sociedade ao desaparecer e dar mais espaço aos “fortes”. É esse o “Brasil melhorado” que Bolsonaro pretende entregar aos brasileiros.
Olavo de Carvalho disse de forma exagerada que “não houve nenhuma morte por covid” na Itália. Bolsonaro disse que foram “apenas” 12% de Covid (e que as mortes deveriam ser registradas assim). O que disse o médico Ricciardi, para voltarmos ao que quer dizer exatamente essa discussão? Ele disse que os casos de óbitos à época foram reavaliados e descobriram que em 88% dos casos havia também outras doenças. Na matéria, ele diz que a intervenção do Estado impactou positivamente no salvamento de vidas. Sem a intervenção do Estado, sobreviveriam menos pessoas. Na interpretação dos “melhoradores”, o Estado introduziu uma “distorção” na espécie humana ao salvar pessoas “não merecedoras” na Itália.
Um exemplo
Para entendermos melhor o que queremos dizer por “distorção introduzida pelo Estado”, vamos ver um exemplo. Na Grécia, o hospital de referência para Covid-19 em Atenas não teve nenhum trabalhador da saúde sequer infectado durante a epidemia até 7 de maio de 2020. Por quê? Porque a Grécia se preparou com planos de contingência e estoque de equipamentos de proteção individual adequados para trabalhadores de todos setores dos hospitais (tal como requerido pelos protocolos médicos para evitar contaminação entre diferentes pacientes). São 200 mil suspeitas de infecção, 32 mil confirmadas, no mínimo 76 enfermeiras que poderiam ter sido salvas.
Não dá para comparar o Brasil com a Grécia? Pois os trabalhadores da saúde daqui tentaram se preparar para a pandemia também. Foram e estão sendo sabotados pelo governo federal. Estes trabalhadores estão acostumados com certa precariedade, mas tinham completa noção da gravidade da crise que viria, tentaram se preparar para evitar mortes, fizeram até vaquinhas para tentar garantir EPIs e condições e foram sabotados por esse governo e por uma esquerda que se omitiu e preferiu deixar dar ruim para esse governo “se queimar”. Foram sabotados, isolados e abandonados. Agora estão largados em camas no chão, expostos à infecção enquanto boa parte da esquerda fica discutindo minúcias de inquéritos da polícia federal. Cenas assim se repetiram e se repetem nos hospitais públicos, nos lares de idosos, nos CRAS, nas agências da Caixa Econômica Federal e do Banco do Brasil, enfim, em todos os lugares onde os trabalhadores estão lutando para sobreviver e ajudar os outros a sobreviver a essa crise que o governo quer transformar em massacre.
Quem vai morrer? Quem vai sobreviver?
A cena de um rico fugindo em uma UTI aérea em Belém enquanto em Pernambuco pessoas morrem ‘roxas por falta de ar’ em frente aos médicos por falta de respirador, mostra que a doença pode até ser democrática, mas o tratamento e as mortes não são. Não queremos dizer com isso que não existem grupos de risco para doenças. Claro que existem. Só queremos dizer que, desde a prevenção até a chegada ao óbito, passando pelo acesso ao tratamento dos sintomas, enquanto não há vacina, tudo isso passa por determinações sociais. Quais são?
Pobreza é “comorbidade”.
Morar em cortiço e favela é “comorbidade”, morar em periferia é “comorbidade”.
Cor de pele negra é “comorbidade”.
Ser um preso em uma cadeia superlotada, ser uma presa, ser familiar de preso é uma comorbidade. Além de o governo retirar o direito à renda emergencial. Não se fala muito disso, mas Brasil já é o quarto país com mais mortes de presos pela Covid-19.
Ser quilombola ou indígena são “comorbidades”. Aliás, no caso dos Tupinambá de Olivença, Rui Costa está literalmente usando infectados pela Covid-19 como arma de guerra.
Laura Carvalho fez um estudo e descobriu uma coisa verdadeiramente chocante: as principais vítimas da pandemia serão pessoas pobres, com nível de instrução baixa, vínculo empregatício precário.
Parece familiar? Sim, leitor. São as vítimas habituais da violência no Brasil, as mais numerosas portadoras do maior número simultâneo de “comorbidades”. São os mesmos de sempre. São essas pessoas que “merecem” morrer no pensamento desse movimento que chegou ao poder. Não é à toa que o raciocínio que está sendo utilizado para legitimar esse extermínio é o do assassinato policial. Mas agora estamos vendo uma mudança de quantidade (de alguns para quase todos) e de qualidade. É por isso, também, que é tão difícil para boa parte da esquerda reagir. A verdade é que boa parte da esquerda e boa parte da sociedade é conivente e compactua com o extermínio de trabalhadores pobres brasileiros, de familiares de presos e presas, de indígenas e quilombolas. Nunca incomodou a maioria de nós. Agora que chegou a nos ameaçar, vários ficam desesperados e não sabem o que fazer. Mas é a realidade que muitos já viviam. É preciso reconhecer isso para limpar o terreno e ser possível lutarmos juntos.
Mas é fato que algo mudou. Ano passado morriam tantos e nós estávamos lutando. Esse ano tem uma pandemia. Morrem 900 (em sua maioria negros e pobres no Brasil) por dia a mais e contando. Isso muda tudo. Muda o que? É disso que vou falar antes de procedermos a próxima parte.
Ele quer guerra? Será esse o nome? O que nós queremos?
Bolsonaro se reúne com empresários por Zoom, claro, porque eles não precisam passar pela depuração e declara: é hora de jogar pesado porque “é guerra” pelo fim do isolamento.
Mas o que é que ele faz na vida concreta do povo, na economia? Amplia o número de atividades essenciais para ampliar a coerção dos trabalhadores que estão tentando ficar em quarentena. Ao mesmo tempo em que o presidente aprova com vetos o cadastro de novos beneficiários do auxílio, a Caixa aprova o pagamento do benefício para 83 milhões pessoas que se mobilizam confusamente em filas periclitantes e nos seus celulares. Aproveitadores aproveitam a confusão para espalhar mensagens falsas e, em alguns casos, o desespero levou as aglomerações a se tornarem protestos. Trabalhadores se veem encurralados entre a fome e ter de se expor à depuração pandêmica. O nome disso não é guerra. Como chamaremos a isso?
Mais de 500 mil registros de óbito para monitorar a Covid-19 simplesmente desapareceram, enquanto equipes que saíram para coletar testes para uma pesquisa nacional sobre o coronavírus em dez estados foram agredidas em pequenos municípios do interior. De acordo com a Folha de S.Paulo, “o material de testes foi destruído e as equipes do estudo tiveram de abandonar a cidade e desistir da pesquisa” por intervenção das prefeituras, agressão de populares ou boatos e ameaças de linchamento. Se por intervenção política de cima ou medo e histeria dos debaixo, é péssimo sinal. Por outro lado, Damares vem tentado generalizar no país um protocolo de “atendimento” que, se não for chamado de tentativa de homicídio, não sei que nome pode ter.
Mas a droga não tem mostrado eficácia, diz o médico Justino Moreira, diretor técnico do hospital e responsável pela aplicação do protocolo de atendimento a pacientes. Apesar disso, ele tem utilizado a droga. “Se [o paciente] não tiver usado [cloroquina] ainda, a gente usa. Se tiver, a gente para”.
Combinados com a progressiva militarização do pessoal nos cargos de baixo, médio e alto escalão do Ministério da Saúde e uma crescente retórica de guerra por parte de Bolsonaro, existem indícios de uma tentativa de transformar a crise social provocada pela pandemia em massacre unilateral, extermínio massivo unilateral. O que podemos fazer diante disso? Exigir postura clara, transparência, testes massivos? Tudo isso vai ser necessário.
Mas é preciso um primeiro passo. É chamar um massacre pelo seu nome. Vítimas pelo seu nome. Crime pelo nome de crime. Assassinato em massa pelo nome que tem. Chamar Bolsonaro e seu grupo de assassinos em massa. E todos que o assessoram, blindam, ganham tempo para ele, do que são: cúmplices e colaboradores. E nós, quem somos? Vítimas. Até começarmos a reagir.
Pois o que hoje se configura como caos e desespero na figura dos generais logo vai se profissionalizar. É do caminho que começa com a meia quarentena, com a meia para nenhuma resistência da “Frente Ampla”, para a infecção direcionada e o massacre generalizado que iremos tratar na próxima parte, que será a final. Até lá, vamos tratar de um sonho e da vida que devemos reivindicar antes de falar dos números.
“- Qual é o sonho? [1]
– Sonho que minhas pernas foram cortadas, que perdi meu olho, que não posso fazer nada… às vezes, sonho que o drone vai atacar e fico com medo. Tenho muito medo.
Terminada a entrevista, Sadaullah Wazir puxa as pernas de sua calça por cima dos cotos de seus joelhos até cobrir completamente as próteses de cor de osso.
– Você não ouviu quando ele chegava?
– Não
– O que aconteceu?
– Eu desmaiei. Estava atordoado
Enquanto Sadaullah, inconsciente, era transferido a um hospital mais equipado em Peshawar, onde suas pernas quebradas seriam amputadas, as mídias anunciavam que, com toda probabilidade, um alto responsável da Al Qaeda, Ilyas Kashmiri, havia sido morto no ataque. A informação se revelaria falsa. Era a primeira das três vezes que Kashmiri seria reputado morto. Sadaullah e seus parentes, por sua vez, eram enterrados sob detritos de palavras: ‘militante’, ‘fora da lei’, ‘luta contra o terrorismo’, ‘compound’ (um termo glacial para designar casa).
Circulem, intimaram as mídias norte-americanas a sua audiência, não há nada para ver.
Cerca de quinze dias mais tarde, muito tempo depois que o mundo havia esquecido, Sadaullah despertou para um pesadelo.
– Você se lembra da primeira vez que percebeu que suas pernas não estavam mais lá?
– Eu estava na cama, e coberto de ataduras. Tentei removê-las, mas não conseguia, então perguntei: Vocês cortaram minhas pernas? Eles disseram que não, mas acho que eu sabia (…)
Quando você pergunta a Sadaullah, ou a Karim, ou a Hussein, e a muitos outros como eles, o que querem, eles não dizem que querem ‘transparência e números verdadeiros’. Dizem que querem que a matança acabe. Querem parar de morrer. Dizem que não querem mais ir a enterros — nem serem mais bombardeados em pleno luto. ‘Transparência e números verdadeiros’, para eles, são problemas abstratos, que não tem nada a ver com o fato concreto, regular, sistemático da morte”.
Notas
[1] Grégoire Chamayou, Teoria do Drone, São Paulo: Cosac Naify, 2015, págs. 166-167.
As obras escolhidas para ilustrar este artigo são da autoria de Arshile Gorky (1904-1948).
Uma semana atrás – na escrita do texto – não havia saído ainda o vídeo da famosa, nem acontecido os assassinatos de João Pedro e João Vitor. Acho importante, então, comentar aqui com uma atualização e espécie de aplicação prática do modelo.
As redes foram tomadas por uma polêmica afirmação de Lula. Qual foi? “Ainda bem que a natureza, contra a vontade da humanidade, criou esse monstro chamado coronavírus. Porque esse monstro está permitindo que os cegos comecem a enxergar”. Enxergar o que? Isso aqui: “Que apenas o Estado é capaz de dar solução a determinadas crises”. É verdade que o neoliberalismo falhou: a austeridade não dá mais conta do recado. Mas a forma de expressão da “lição pelo sofrimento” quer dizer o que? A forma não é pouca coisa ainda que Lula tenha desculpa se (e apenas se) “algum dos 200 milhões de brasileiros ficou ofendido com o que disse”. Eu não fiquei ofendido, então não desculpo. Mas o que é que ele realmente falou?
No dia em que o Brasil chegou ao número de 1179 mortes notificadas pelo COVID-19, Bolsonaro inaugurou o primeiro experimento médico assassino público em larga escala realizado por um governo democrático: a distribuição eficiente e protocolar da cloroquina para todos os que quiserem tomar o remédio no Brasil, independente de terem sintomas ou não da gripe. O protocolo (que pode ser acessado aqui) pode ser chamado sem nenhum exagero de um pacto de suicídio do tipo Jim Jones: consinto em fazer parte de um ritual sinistro, coletivo, nacional, de morte.
Jonestown, a cidade criada para empreender a religião sinistra que misturava socialismo com evangelho milenarista e ressentimento racial, foi o maior suicídio coletivo da história (até então): 918 mortos.
Antes dessa fala repercutir nos meios liberais e nos meios de oposição de esquerda, Lula tinha falado várias coisas bem mais razoáveis. Tinha falado que Bolsonaro não pensa no povo, que o estava deixando morrer por estar agindo de forma “eleitoral”. Falou que “estava induzindo os brasileiros à morte”. Um dia falou que que “precisavam radicalizar mais um pouco para fazer a democracia funcionar”… pois o discurso daquela empresária … aquilo era fascismo. Radicalizar um pouco? Diante de mortes e mais mortes? Só ficar falando sem fazer nada sobre a morte em sua maioria de negros e pobres que Lula (e associados) dizem representar contra Bolsonaro. O que foi essa declaração escrota e lamentável, então? De onde veio esse deslize? Foi isso aqui. É a manifestação violenta da má consciência que fundamenta o pacto democrático brasileiro que hoje estrebucha violentamente. A má consciência de que todos que participam e consentem do “jogo” sabem que é um jogo que se assenta no assassinato do trabalhador pobre.
João Pedro Mattos, 14 anos. Assassinado por um policial empunhando um fuzil enquanto estava brincando, um helicóptero policial sumiu com seu corpo por horas. Lula se condoeu publicamente com a morte — não condenou a polícia, vejam bem, condenou a morte que parece não ter autoria — e foi atacado por várias figuras do movimento negro. Logo depois publicou a frase sobre a função “pedagógica” do COVID que repercutiu nas redes. Vocês precisam aprender a respeitar o Estado, nos ensina Lula. Para que não hajam mais mortes, para que não mais “necropolítica” (esse nome que só serve para ser um nome). Precisam votar certo. Não adianta fazer quarentena pra sobreviver ao covid e votar na direita, como Kleber Mendonça explicou bem no print acima.
João Vitor Gomes Rocha, 18 anos. Um jovem da Cidade de Deus, assassinadoentregando cesta básica no complexo do Alemão. Repercutiu por ter sido um dia depois, por ter sido ação coletiva de entrega de cestas, por ter sido filmado, por ter envolvido Lula. Mas não foi o primeiro a morrer assim: Leandro Rodrigues de Matta, 40 anos, pai de dois filhos, ASSASSINADO pela polícia (e não “morto” por um sabe-se lá quem como diz a imprensa) em Cordovil depois de entregar uma cesta básica para um amigo. Atitude suspeita, porém individual. Foi notícia, mas passou batido.
Sobre essas mortes, Bolsonaro não falou nada. Nem por elas foi cobrado.
Por que eles foram mortos? Qual será nossa resposta?
No Brasil dois números assustam, chocam, paralisam, imobilizam, causam ódio, insegurança e eles envolvem a morte
*1778 mortos e crescendo de covid/dia
*1345 homicídios e crescendo (em 2017!)/dia
São dados oficiais do mapa da violência do IBGE e do Ministério da Saúde. O que há de comum entre eles? As vítimas em sua maioria são pobres, negras, em situação de vulnerabilidade. A nossa ordem democrática se fundamenta num mar de sangue de trabalhadores pobres, em sua maioria de pele escura. Qualquer projeto político que se fundamente numa continuidade dessa institucionalidade precisa esconder e apagar esse fato. Agora, com a pandemia, essa má consciência aumenta em intensidade a cada dia.
O massacre da pandemia põe em evidência o anterior — qual o sentido de salvar as vidas que estavam sendo exterminadas um dia antes? É isto que as balas de fuzil dos policiais contra os jovens e velhos solidários, brincantes, organizados para salvar suas vidas coloca em questão para nossa sociedade com esses dois assassinatos brutais. Essa é a pergunta que Lula, Pablo Ortellado, Kleber Mendonça, Marcelo Freixo e Bolsonaro não vão fazer. Porque todos eles assentam seu projeto político em uma estrutura que está banhada em sangue.
O que esses policiais tentaram interromper violentamente é uma tentativa de resposta proletária, um ensaio de uma nova república possível, humana, uma institucionalidade baseada NAS NOSSAS VIDAS, EM QUE A PERDA DE QUALQUER VIDA É INACEITÁVEL. Esse projeto político é INACEITÁVEL, é uma ameaça MORTAL para qualquer um desses acima e vai ser apagado, se necessário, na bala, com discurso, com ameaça, com cinismo, com youtuber, com Felipe Neto, com projeto de lei, com tudo.
É esse projeto que tentam matar quando matam uma criança em uma comunidade que conseguiu se organizar em quarentena contra a polícia e mesmo prejudicando os lucros do tráfico. É o projeto política de uma república social, humana, uma república da vida, que tentaram matar com João Pedro, com João Vitor, com Leandro. Esse projeto começa com esse gesto básico, simples e persistente da solidariedade entre nós apesar de toda essa violência e bárbarie. Precisamos persistir com ele. É aqui que estamos do lado de cá, todos nós pretos, trabalhadores. Do lado de lá estão todos eles. Vamos ficar calmos. Vamos seguir em frente. Temo que ficar calmo, vivo. Nóis é preto. Não vão conseguir matar todo mundo não. A vida vai vencer. Ouçam o vídeo de novo, de novo, de novo. Vamos chorar junto com quem vive com a gente, chorar separado, se proteger. Podem ouvir o vídeo aqui: https://twitter.com/i/status/1263230954287529986
Saiam da frente do carro, do fuzil. Eles que se matem. Vamos manter os nossos vivos. Seguir firmes e se ajudando.
Desde o começo desse texto, já é facil entender por que esse aqui é o primeiro comentário sem ser do autor. E não suscitou debate. Arrisco algo simples: silêncio. Como resultado de horror e impotência. Parece que esse foi o texto que mais colocou a questão da impotência da esquerda frente à consequencia mais trágica: o extermínio. Enquanto dicursam por aí gritos inúteis de barbárie como crianças brincando com fogo, como se a classe trabalhadora fosse ressurgir num sonho. Eis aqui que a esquerda se depara com um pesadelo, pior do que o “colapso capitalista”: a crise econômica não é a final, só é intensificada pela crise do movimento operário. Não tem firulas estruturalistas e nem alegorias de grandes revoltas mundiais que se avizinham. O mundo é o mundo, mas o Brasil, apesar de estar no mundo, é o Brasil. Aqui é uma tragédia, talvez com paralelos em outros países. Mas nada como uma “teoria da conspiração”. É um arranjo de fatos, que ninguém previu. Mas sim, tem um extermínio em curso. E a falta de disposição REAL, somada à infantilidade da inercia dessa esquerda ainda assusta. Esse silêncio atordoa