Por Aurora Apolito

2.2. O comunismo requer complexidade. Antes de partir para a apresentação de uma proposta mais concreta para a resolução do problema da escala, gostaria de sublinhar que só é possível maximizar um modelo de organização e produção baseado em princípios anarcocomunistas se houver capacidade suficiente de processamento de informações complexas.

A título de referência, remeto o leitor para um estudo recente [31], onde dados históricos (do Seshat Global History Databank) de uma grande variedade de sociedades, de aldeias a impérios, são analisados. O método da Análise de Componentes Principais (ACP) foi aplicado aos dados, permitindo que fossem mapeados num espaço bidimensional definido pelos dois primeiros componentes principais, englobando a maior parte das variações nos dados. Visualizados desse modo, os dados obedecem a um padrão altamente estruturado. Observando as variações no segundo componente principal causadas pelo aumento dos valores no primeiro, sociedades mais antigas mostram uma fase inicial muito concentrada, que pode ser interpretada como um aumento da escala acompanhado por um baixo crescimento relativo da capacidade de informação. Em seguida, observa-se um limiar (que os autores chamam de “limiar da escala”) depois do qual o padrão das sociedades que crescem em escala, mas não em complexidade informacional, começa a divergir significativamente do padrão daquelas sociedades cuja capacidade informacional alcançou um crescimento mais significativo. Um segundo limiar (o “limiar da informação”) possibilita um aumento de escala naquelas sociedades que alcançaram um nível suficientemente elevado de capacidade de processamento de informações. Há uma área nesse espaço bidimensional de parametrização onde as sociedades ficam mais dispersas, indicando diferentes padrões possíveis de desenvolvimento nesse quadro escala/informação. Quando o segundo limiar é ultrapassado, volta a predominar o aumento da escala e as sociedades tendem a se concentrar novamente nesse espaço de parametrização, exibindo traços menos diversificados. A base de dados usada nesse estudo foi elaborada para a análise de sociedades pré-modernas, daí, como advertem os autores, o comportamento depois da ultrapassagem do limiar da informação parecer artificialmente homogêneo, devido à saturação de muitas das variáveis na medida em que dados sobre sociedades mais modernas vão sendo encontrados.

O socialismo e o comunismo são fenômenos intrinsecamente modernos, exigindo sociedades industriais e da informação (os primitivistas que se danem). Mesmo assim, podemos fazer algumas observações úteis a partir da análise realizada em [31]. Em particular, quando diferentes formas de organização se manifestam em sociedades de pequena escala, o desenvolvimento social, se a escala aumenta significativamente, mas é restringida por uma capacidade relativamente baixa de processamento de informações, tende a dar origem a formas autoritárias de Estado. A desigualdade econômica costuma aumentar rapidamente nessa fase. Somente quando uma complexidade informacional suficiente é alcançada é que diferentes formas de desenvolvimento tornam-se novamente possíveis. Deixando momentaneamente de lado a questão da validade dos dados do Seshat para sociedades mais modernas, podemos interpretar a retomada no aumento da escala (em vez de um crescimento contínuo da complexidade informacional) depois da transição da segunda fase como um aspecto das sociedades capitalistas modernas. Isso sugere que devemos esperar outra fase de transição — para um crescimento significativo da capacidade de gestão da informação — para que novas formas de organização não capitalistas tornem-se possíveis na escala atual das sociedades contemporâneas. Em outras palavras, um aumento significativo da complexidade informacional é necessário para um comunismo não autoritário. Por outro lado, o fascismo pode ser entendido como a tentativa de obter um aumento na escala (aspirações imperiais) combinado com uma dramática supressão de todos os níveis de complexidade.

Historicamente, as sociedades que tentaram implementar um modo de produção comunista, ausente um nível suficiente de complexidade informacional, acabaram apostando no planejamento central e regredindo para formas políticas autoritárias. Apesar da experiência histórica, muitas forças políticas, da social-democracia tradicional, passando pelo eurocomunismo do pós-guerra (como o PCI italiano), ao atual socialismo democrático, continuam a defender que soluções estatistas para o problema da distribuição em larga escala de serviços no socialismo podem existir sob formas não autoritárias. No entanto, tais soluções continuariam a depender de formas de coerção (tributos, força policial) para levar a cabo a expropriação e distribuição da riqueza. Pouco importa que tais formas de coerção sejam apresentadas como benignas; no longo prazo, o fato de um sistema de trabalho depender da ameaça do uso da força para manter-se funcionando torna-o intrinsecamente frágil.

Em última análise, tanto a rede cibernética de Victor Glushkov, que não chegou a ser implementada na União Soviética, quanto o sistema Cybersyn de Stafford Beer, que permaneceu inacabado no Chile de Allende, foram tentativas de incrementar drasticamente a capacidade de processamento de informações complexas em suas respectivas sociedades, como uma condição necessária para a existência de um comunismo descentralizado e não autoritário capaz de se maximizar para alcançar o nível das grandes redes.

2.3. A objeção comunista aos mercados. Gostaria de reiterar que minha objeção comunista aos mercados tem a ver com a necessidade de uma matemática muito mais sofisticada para elaborar e enfrentar o problema da escala numa economia comunista, numa perspectiva descentralizada e não autoritária, do que a que costuma ser aplicada quando tomamos emprestados os mecanismos do capitalismo. Basear-se em métodos matemáticos inadequados resultará em soluções ineficazes e indesejáveis. O capitalismo e seus desastres podem surfar a onda de um simples processo de otimização baseado no lucro, ao custo de uma devastação generalizada, mas isso não é algo que devemos tentar emular. Se um problema é, ao mesmo tempo, complicado e suficientemente interessante para merecer o desenvolvimento de um aparato teórico apropriado, então isso é “Algo que precisa ser feito”, sem conivência com atalhos capitalistas questionáveis.

Acho que esse esclarecimento é necessário porque há uma tendência generalizada de conceber a objeção comunista aos mercados em termos de uma objeção absoluta ao uso de métodos matemáticos de otimização e análise. Gostaria de poder reduzir essa tendência a um efeito colateral do estado deplorável do comunismo na América do Norte. Contudo, figuras proeminentes da tradição comunista europeia não autoritária (como a Autonomia) têm apoiado esse ponto de vista recentemente, como pode ser conferido, por exemplo, em textos recentes de Bifo [5] [6]. Por exemplo, lemos em [5] que “podemos afirmar que desvencilhar a vida social da dominação selvagem da exatidão matemática é uma missão poética, pois a poesia é a linguagem do excesso” e em [6] que “o poder é hoje baseado em relações abstratas entre entidades numéricas […] Não há escapatória política dessa armadilha: apenas a poesia, enquanto excesso do intercâmbio semiótico, é capaz de reanimar a vida”. Apesar do que sugerem Bifo e outros, não há qualquer identidade entre a abstração matemática e o capitalismo financeiro, a ser combatido com uma oposição poética à abstração. Expressa nesses termos, a objeção não faz sentido algum, não apenas porque a poesia é intrinsecamente uma forma de abstração e a matemática é, em grande medida, um tipo de imaginação poética, mas porque é precisamente a nossa capacidade de imaginação poética matemática que nos permitirá conceber uma alternativa viável ao mundo do capitalismo e das finanças. Como discutido acima, sobre o episódio da programação linear de Kantorovich, a oposição cega aos modelos matemáticos é uma reação genuinamente stalinista, não um ponto de vista que o anarcocomunismo deveria estar adotando. O comunismo é essencialmente tecno-otimista: isso é algo que certas tendências primitivistas anticivilizatórias do anarquismo podem ter dificuldade de digerir, mas é inerente à natureza tanto do socialismo quanto do comunismo que a expropriação dos meios de produção requer a existência de meios de produção suficientemente sofisticados, que compensem a expropriação. Buscar abordar problemas cruciais como a distribuição de recursos e serviços numa economia comunista através de uma análise matemática e científica cuidadosa é a abordagem natural do comunismo. Novamente, não fosse o fato de a atual cena comunista (e anarcocomunista) ter desenvolvido uma visão tão distorcida da ciência e da tecnologia, seria absolutamente desnecessário esclarecer o que é autoevidente.

O processo de maximização dos mercados, voltado para o lucro, não é uma opção viável, não porque “lucro” seja uma palavra ruim (e é) mas pelo modo como funciona sua dinâmica: mesmo que pudéssemos partir de um cenário inicial ideal de riqueza distribuída igualitariamente, pequenas flutuações seriam radicalmente maximizadas, reproduzindo rapidamente um cenário de acumulação desigual. Na dinâmica de lucro dos mercados, a distribuição equitativa da riqueza é uma condição necessariamente instável. É por isso, em essência, que os mercados não podem ser libertados do capitalismo. Os mercados são causadores automáticos de desigualdades, que podem acabar rapidamente com quaisquer ganhos duramente conquistados, ao custo de graves convulsões sociais e ações revolucionárias difíceis de realizar. (Todos queremos uma Revolução, mas não uma que será imediatamente perdida se alguém ativar a máquina de restauração acelerada do capitalismo comumente conhecida como mercado!) Para impedir que as disparidades na acumulação da riqueza sejam inexoravelmente restauradas, é preciso desenvolver um processo de otimização completamente diferente, não baseado no mecanismo de maximização de lucros do mercado.

Farei uma comparação metafórica para explicar melhor esse ponto de vista. Quando, na história moderna da física, os fenômenos quânticos exigiram uma compreensão teórica adequada, os físicos empregaram métodos já conhecidos e que já estavam disponíveis, como a álgebra linear e as equações lineares parciais diferenciais. Isso não significa que a adaptação imediata de modelos matemáticos desenvolvidos para descrever fenômenos da física clássica disponibilizou um modelo capaz de resolver os problemas da mecânica quântica. O fracasso da teoria das “variáveis ocultas” mostrou que a aplicação de modelos da física clássica a fenômenos quânticos, na verdade, é simplesmente impossível. Pelo contrário, uma teoria matemática completamente nova, baseada nos espaços de Hilbert e nos operadores lineares, teve de ser desenvolvida para descrever os fenômenos quânticos.

Quando digo que é preciso desenvolver um modelo matemático apropriado para a resolução do problema da escala numa perspectiva anarcocomunista, não quero dizer que os métodos existentes não possam ser usados como alicerces ou níveis intermediários. Como demonstrarei na seção a seguir, existem muitas teorias disponíveis que serão úteis e deveriam ser aproveitadas. O que estou dizendo é que o que devemos almejar é algo semelhante ao desenvolvimento de uma teoria matemática para uma descrição preditiva dos fenômenos quânticos: modelos já existentes não teriam viabilizado uma solução, nem todo o edifício teórico que precisava ser construído, não obstante alguns dos seus alicerces fundamentais já estivessem disponíveis em teorias existentes.

Este artigo está ilustrado com obras de Yaacov Agam (1928-      ).

Traduzido pelo Passa Palavra.

Este artigo será publicado em quatro partes, uma por semana. Leia aqui a , a e a parte.

Referências

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2 COMENTÁRIOS

  1. Essa parte do artigo incorre numa espécie de determinismo do desenvolvimento das forças informacionais que não se encaixa ou faria sentido com tudo que se conhece sobre a “natureza” do social-histórico. Trata como se uma equação entre escala e informação determinasse formas políticas, numa relação causal que não é compatível com diversidade de respostas humanas, sociais, para questões e problemas. Respostas essas determinadas por valores de cada sociedade, por sua cultura em sentido amplo.

  2. O comentário anterior mostra o que acontece quando o construtivismo social não entende suas relações com a materialidade das técnicas: uma crítica correta ao puro desenvolvimento das forças produtivas pode assim ser transformada numa fórmula sintagmática onde basta trocar a natureza das “forças” para que a crítica sirva para tudo.

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