Por João Bernardo

Os tons de pele dispõem-se numa série progressiva, e do mais escuro ao mais claro não existem linhas de diferenciação nítidas que permitam organizar grupos distintos, definidos pela pigmentação. O mesmo continuum ocorre nas outras características físicas. Entre a mais acentuada dolicocefalia (crânio longo, relativamente à largura) e a mais perfeita braquicefalia (a largura do crâno aproxima-se do comprimento) os formatos intermédios dispõem-se de modo gradual. Quanto aos outros traços fisionómicos, à proporção dos membros e à altura das pessoas, também não há rupturas de continuidade. Além disso, não se verifica uma sobreposição entre estes espectros, e um indivíduo que ocupe um dado lugar numa dada série não ocupa obrigatoriamente um lugar equivalente em todas as outras séries. Isto significa, em termos simples, que não existem raças.

Quando, nos percursos de colheita ambulante, as comunidades humanas começaram a frequentar territórios cada vez mais circunscritos e em seguida, na continuação deste processo, descobriram a agricultura e se estabeleceram em locais fixos, os acasalamentos sistemáticos levaram à selecção de algumas características físicas e ao abandono de outras. Surgiram então populações diferenciadas, mas mesmo nessas circunstâncias não se interrompeu a continuidade das séries de características físicas. Passou a haver zonas de concentração e a sequência prosseguiu mediante passagens mais estreitas, mas sem que se formassem grupos discretos, quer dizer, grupos exclusivos e nitidamente separados por uma ruptura de continuidade. A formação deste tipo de grupos não ocorreu no plano biológico, mas no plano cultural, sobretudo no seu aspecto mais perceptível — a língua. Os grandes impérios, que acumulavam volumosos excedentes agrícolas e por isso podiam construir cidades e sustentar sacerdotes e escribas e fundar civilizações, desprezavam os vizinhos nómadas e consideravam-nos bárbaros. Mas qualquer destes bárbaros que aceitasse a religião do império e se adaptasse aos seus costumes podia, se mostrasse engenho para tanto, ascender à elite, por vezes até sentar-se no trono. Não importava a cor da pele nem o formato do nariz. A cultura era o factor determinante, e a habilidade pessoal.

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Só no final do século XVIII, nos Estados germânicos, uma nova geração de literatos começou a associar de maneira sistemática a cultura à biologia. Nasceu então o racismo moderno. Os racistas não reflectiram sobre raças que já existissem. Pelo contrário, inventaram as raças, transpondo para o plano biológico entidades meramente culturais. Nesta operação os racistas partiram do aspecto mais patente de cada cultura, a língua, e converteram as famílias linguísticas em grupos raciais. É notável que este processo tivesse ocorrido numa Alemanha em luta contra o imperialismo napoleónico, e aqueles que hoje defendem o nacionalismo como um valor necessário e positivo desde que enfrente um imperialismo deviam reflectir — se fossem capazes de reflectir — que o racismo moderno surgiu como uma reacção nacional e nacionalista contra um invasor que herdara o racionalismo universalista dos jacobinos. A História tece-se com contradições.

Herder foi, nessa linhagem, a primeira figura marcante. No âmago das suas concepções residia a noção de totalidade orgânica, onde ele incluía tanto os aspectos mentais e culturais como os biológicos. O processo de pensamento era, na sua opinião, indissociável dos processos sensoriais e volitivos, e o todo orgânico constituído pela razão humana abrangia as manifestações espirituais e as biológicas. Esta fusão na diversidade supunha a existência de uma força vital interna, que transformava o todo em algo mais do que a soma das partes. A coerência das ideias de Herder, como de outros pensadores daquela época, era conferida pela noção místico-biológica de vitalismo. E se a força vital assegurava a unidade dos elementos no todo, então a existência orgânica era activa e o organismo era sinónimo da vida.

Essa energia simultaneamente espiritual e biológica sustentava a noção de linguagem. A língua era, para Herder, a força criadora da unidade social orgânica. Só ela podia criar um povo, unificando as várias classes sociais, e, reunindo a variedade de esferas de soberania, formar uma nação. Mas, ao considerar uma língua como manifestação da força vital de um povo, Herder estava a situá-la num plano também biológico e a atribuir à comunidade linguística o carácter de comunidade racial. Foi este o primeiro esboço de conversão das famílias linguísticas em grupos raciais. «Cada nação fala da maneira que pensa e pensa da maneira que fala», afirmou Herder, transitando deste modo da língua, enquanto sistema convencional de símbolos sonoros, para o pensamento, que se refere à estrutura do cérebro. Herder, escreveu Jacques Droz, «imagina a nação como uma concepção biológico-filológica» e foi ele quem primeiro desenvolveu a ideia, que viria a ser tão importante no racismo, de uma psicologia dos povos. A partir daqui o caminho estava aberto.

Não era naquela Alemanha, retalhada em principados e reinos, que Ernst Moritz Arndt encontrava a pátria. Mas onde se falava alemão, proclamou ele num poema, ali se encontrava a Alemanha, e Friedrich von Schlegel escreveu que a unidade linguística «constitui o testemunho irrecusável, o traço de união mais íntimo e natural, e será considerada, junto com a identidade dos costumes, como o elo mais sólido e mais durável, assegurando a unidade da nação através dos séculos». Este foi um nacionalismo de literatos, de etnólogos, de pesquisadores das canções tradicionais. E antologias de contos populares, como a organizada por Achim von Arnim e Clemens Brentano nos primeiros anos do século XIX, ou a História da Língua Alemã de Jacob Grimm eram saudadas como acontecimentos políticos.

Mas não devemos esquecer a outra face deste nacionalismo linguístico. Admitir que «cada nação fala da maneira que pensa e pensa da maneira que fala» supõe uma permanente circularidade entre a cultura, ou a língua como expressão máxima da cultura, e a biologia. Foi Fichte, nos Discursos à Nação Alemã, quem melhor exprimiu essa entidade única. Não seria o povo a falar a língua, mas a língua a fazer falar o povo, e Fichte considerou que «a bem dizer, não é esse povo quem exprime o seu conhecimento, mas o seu conhecimento que se exprime através dele». A raça era uma entidade biológico-espiritual, manifestada na língua. «Os homens são formados pela língua», afirmou Fichte num dos Discursos, «mais do que a língua o é pelos homens. […] A língua em geral, e mais particularmente a designação dos objectos com a ajuda de sons emitidos pelo aparelho vocal, em nada depende de decisões arbitrárias ou de convenções […] Na verdade, não é o homem enquanto tal quem fala, mas a natureza humana que se exprime através dele e se comunica aos outros».

Esta tese desenvolveu-se num sentido racista quando se pretendeu que as pessoas de um dado povo falavam e pensavam da mesma maneira porque tinham o mesmo tipo de cérebro. Fichte reconhecia, decerto, que a população dos Estados alemães resultava de uma mistura com as antigas populações autóctones e com elementos eslavos; porém, não era no sangue que o seu racismo originariamente se localizava, mas na língua. Era em sentido pleno e literal que «os homens são formados pela língua». A pureza linguística garantia a pureza rácica, que as outras mestiçagens não atingiam. Assim, pouco importavam o sangue e a genealogia, porque a língua, além de ser uma maneira de pensar e falar, materializava-se numa constituição cerebral própria. Mas note-se que a «síntese genética» concebida por Fichte restringia ao plano intelectual os processos cognitivos e fenomenológicos exigidos pela criação da realidade empírica, e é nesta perspectiva que se deve entender a passagem da língua à raça. O verdadeiro problema, para Fichte, era a sequência de processos cognitivos e fenomenológicos, não a sua materialização, por isso ele não deixava a língua em suspenso no plano das ideias, sem pressupor a sua corporalização. A acção intelectual da entidade colectiva seria criadora da realidade.

«Em si, cada raça é um todo fechado, um círculo completo», escreveu Görres, um filósofo que haveria de ser muito apreciado pelos nacionais-socialistas; «todos os seus membros estão unidos por uma comunidade de sangue; e tal como falam uma única língua, também devem ter uma única consciência e comportar-se como um só homem. É esta a regra fundamental». O passo decisivo foi dado por Schlegel ao defender que a comunidade linguística encontrada na origem do sânscrito, do persa e de várias línguas europeias correspondera a uma entidade racial, os arianos, a quem se atribuía a conquista da Índia e a fundação da cultura ocidental. Assim se passou da descoberta de uma família linguística para a invenção de uma raça. «De uma língua fez-se um povo, e deste povo fez-se em seguida uma raça», observou André Pichot. «Sobre essa base linguística e depois racial construiu-se toda uma história mítica».

 

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Se no racismo linguístico germânico se passou da cultura para a biologia, o círculo completar-se-ia algumas décadas mais tarde, passando-se da biologia para a cultura. Darwin tem lugar marcado nesta circunvolução, ele que escreveu que «a convicção de que existe no homem uma estreita relação entre a dimensão do cérebro e o desenvolvimento das faculdades intelectuais apoia-se na comparação dos crânios das raças selvagens e civilizadas, dos povos antigos e modernos, e por analogia com toda a série dos vertebrados». Na obra em que aplicou à humanidade o modelo da selecção sexual, Darwin considerou que a distância que separava os animais superiores das raças humanas inferiores era menor do que a que os separava das raças superiores, assim como classificou as mulheres como física e mentalmente inferiores aos homens. Mas Darwin era demasiado bom cientista para ter certezas absolutas, e se no primeiro terço daquela sua obra ele postulou a inferioridade biológica dos povos selvagens, nos restantes dois terços limitou-se a justificar as diferenças de fisionomia e de cor da pele, sem que nunca conseguisse daí inferir a hierarquização das capacidades mentais.

A prioridade na dedução da cultura a partir da biologia cabe a Francis Galton, o fundador da eugenia, que transpôs para termos biológicos não só as diferenças entre os povos como ainda as diferenças sociais no interior de cada povo, considerando que a elite da classe dominante se distinguiria sob os pontos de vista mental e físico, e que a hereditariedade asseguraria a transmissão da superioridade racial e da superioridade social. Fundiu-se assim a problemática das hierarquias raciais e das hierarquias sociais.

Com a eugenia enraizou-se a noção de que existiriam raças humanas diferenciadas e que a cada uma corresponderiam capacidades intelectuais distintas e hierarquizadas, bem como comportamentos e atitudes culturais distintos. Às raças, como quer que elas se definissem, foi atribuída uma cultura; e as camadas sociais inferiores ou marginalizadas económica e socialmente foram também concebidas à maneira de raças, ou sub-raças. Este percurso da biologia para a cultura dispensou o vitalismo, que o romantismo germânico usara para o percurso inverso, e a eugenia substituiu o vitalismo por um formalismo estatístico imitado da racionalidade científica. O racismo passou então a satisfazer todos os gostos, tanto os místicos como os prosaicos.

«A eugenia», definiu Galton, «consiste no estudo de todas as instituições submetidas ao controle social que podem melhorar ou comprometer a qualidade rácica das gerações futuras». E ele apelou para a intervenção directa e sistemática dos governos na evolução biológica da humanidade. Para aperfeiçoar a raça seria necessário promover a fertilidade da elite e ao mesmo tempo tomar medidas económicas e legais para condenar à extinção as famílias consideradas social, moral e fisicamente indesejáveis. Por isso a eugenia, assim como até ao final da segunda guerra mundial hegemonizou praticamente as pesquisas sobre genética humana, foi também preponderante na medicina. Ambos os domínios científicos convergiam no mesmo objectivo: a adopção de medidas legais e a introdução de modificações nos serviços médicos e sanitários para condicionar os casamentos, estimular a reprodução dos indivíduos pertencentes ao escol, desencorajar a reprodução dos indivíduos julgados inferiores, deficientes físicos e degenerados, ou até impedi-la através do aprisionamento ou da esterilização sexual ou mesmo da castração, e regular o fluxo de imigrantes, proibindo a entrada de pessoas oriundas de raças consideradas inferiores e limitando a dos provenientes de raças intermédias.

Com esta engenharia biológica pretendia-se reforçar a raça considerada superior e consolidar a supremacia da elite no interior dessa raça. Uma raça nociva — e todas as raças reputadas inferiores seriam nocivas porque degradariam a humanidade — era vista como um tumor, e a ablação era a intervenção aconselhável. A vocação do médico já não consistia em salvar qualquer doente, mas em salvar a raça. Não era em nome de um império que se matava, mas da saúde. Foi nos Estados Unidos que a eugenia primeiro obteve a supremacia, conseguindo uma estreita ligação aos meios governamentais, empresariais, científicos e médicos, e só depois o ceptro passou para a Alemanha, havendo uma estreita ligação entre as medidas raciais aplicadas no Terceiro Reich e a eugenia concebida nos Estados Unidos.

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Os identitarismos étnicos contemporâneos são simultaneamente herdeiros do racismo linguístico e do racismo biológico, situando-se na encruzilhada destas duas correntes que participaram na génese do fascismo clássico. Por isso os incluo no fascismo pós-fascista. Decerto a eugenia está hoje desacreditada como ciência, especialmente devido às consequências práticas extremas a que foi levada no Terceiro Reich. Mas, como sucedeu com o fascismo em geral, o descrédito recaiu mais sobre o nome do que sobre a realidade. Afinal, o maior êxito da eugenia, a que o identitarismo étnico deu um novo alento, foi o de inventar raças humanas caracterizadas biologicamente e lhes atribuir culturas específicas.

É perverso que a noção de raça, tal como está a ser difundida no movimento negro contemporâneo, se deva aos meios científicos mais racistas da Europa e dos Estados Unidos no final do século XIX e na primeira metade do século XX. Os racistas negros limitam-se hoje a inverter as hierarquias que os racistas brancos ontem estabeleceram. Alguns autores críticos do identitarismo mencionam pudicamente um racialismo. Não vejo motivo para usar a palavra. Não há aqui lugar para uma noção descritiva e neutra. Trata-se de um conceito activo e prenhe de efeitos práticos, porque quando se recorre a critérios raciais fica desde logo implícita toda uma série de consequências. Não é racialismo, é racismo.

E como não há raças e o que existe são racistas, que criam as raças, o campo fica aberto para uma ilimitada criação de raças e sub-raças e para a alteração arbitrária do perfil de cada uma. Nesta perspectiva compreende-se o processo que hoje presenciamos um pouco por todo o mundo, e que no caso brasileiro consiste na perseguição aos «falsos quotistas», na recusa da mestiçagem e na aversão aos mestiços.

O movimento negro brasileiro acusa os imigrantes provenientes da Itália de terem sido convocados pela elite branca para branquearem o Brasil, em detrimento da mão-de-obra negra. É mais um exemplo de substituição da história pelo ressentimento, porque nos Estados Unidos, no final do século XIX e na primeira metade do século XX, os imigrantes italianos eram considerados negros, tanto racial como culturalmente, uma opinião sustentada também por conhecidos eugenistas. Aliás, esses imigrantes provinham geralmente do sul da península e da Sicília, onde as peles são mais escuras. A convivência entre ambos os grupos étnicos, estimulada por aquele preconceito, contribuiu para reforçá-lo, por vezes em benefício dos negros, e também os italianos foram frequentemente vítima de linchagens. Há até quem defenda, e com bons argumentos, que o jazz foi criado pelos ítalo-americanos de Nova Orléans a partir da música tocada pelas bandas afro-americanas dessa cidade.

Na década de 1930 os adeptos de Mussolini nas comunidades de imigrantes italianos esforçaram-se por difundir a hostilidade aos negros e por convencer os seus conterrâneos de que eles eram, afinal, brancos. Ora, em 1940, quando a Itália entrou na guerra, só 8% dos jornais em língua italiana publicados nos Estados Unidos eram antifascistas, 12% seguiam uma orientação intermédia e 80% eram favoráveis ao fascismo. Mas foram as pressões da guerra mundial que pela primeira vez levaram o Departamento de Imigração e Naturalização dos Estados Unidos, em 1943, a considerar todos os europeus como brancos. E enquanto no serviço militar continuava a segregação das tropas negras, iniciava-se a integração dos americanos de qualquer origem europeia. Alterou-se assim a definição de branco, e os italianos que antes se confundiam e eram confundidos com os negros passaram a ser vistos e a ver-se como brancos. Agora já quase ninguém se lembra de que haviam sido negros.

Depois desta dupla invenção, a de que os italianos eram negros e a de que, afinal, eram brancos, ninguém se espantará com o facto de actualmente os imigrantes portugueses em França, nas palavras de uma socióloga, representarem «uma categoria intermédia, qualificada nas ciências sociais como Brancos Honorários».

Será também instrutivo recordar a invenção de outros brancos negros. É certo que os eugenistas e demais racistas com aspirações científicas partiam da biologia para deduzir as culturas, mas isto não os impedia de percorrerem ocasionalmente o caminho inverso. Quando deparavam com povos sem Estado ou com Estados precários, concluíam que esta situação resultava necessariamente de uma inferioridade biológica. E quando a história mostrava a dissolução de formas estatais, deduziam que ocorrera a degradação biológica da população. Mas surgia assim um enorme problema. Como explicar que a Etiópia, cujos habitantes eram indubitavelmente negros, se tivesse mantido como um Estado independente e além disso possuidor de uma milenária Igreja cristã? Procedeu-se então à fantástica descoberta de uma raça branca com pele negra. Numa data tardia, em 1979, quando toda a África estava já independente e o racismo biológico perdera a hegemonia no meio científico, podia ainda ler-se naquele clássico monumento cultural que é a Encyclopaedia Britannica: «[…] a Etiópia conseguiu preservar e aperfeiçoar uma cultura singular, nascida do vetusto encontro e da lenta fusão de dois povos igualmente bem dotados: os Cuxitas, uma raça branca de pele escura (a white race with dark skin), que eram provavelmente indígenas, e tribos semitas que possivelmente haviam emigrado da Arábia». E assim o critério biológico não comprometia o critério cultural, porque se, coberto por uma tez escura, havia um branco, justificava-se então que a Etiópia tivesse um nível cultural elevado.

Simetricamente, aquela extraordinária invenção foi acompanhada por outra, a dos brancos não-brancos. Quando Hitler escreveu, em Mein Kampf, que os franceses «quanto ao essencial estão cada vez mais transformados em pretos» [*], ele não se referia apenas ao que os nacionalistas alemães dessa época chamavam a Vergonha Negra, ou seja, o facto de entre as tropas francesas estacionadas no território alemão após o final da primeira guerra mundial se contarem militares senegaleses. O mais importante é que os nacionais-socialistas, e os racistas nórdicos em geral, consideravam os judeus como levantinos, descendentes da antiga Cartago fenícia, portanto, africanos e, logicamente, negros. A influência racial judaica, além de nefasta cultural e biologicamente, era considerada como um factor de enegrecimento. A noção de que a França se havia convertido num prolongamento da África, comandado por judeus, foi defendida pelo doutrinador do nacional-socialismo, Alfred Rosenberg, na sua grande obra O Mito do Século XX, e, escrevendo já no final do Terceiro Reich, o médico e antropologista Eugen Fischer considerou que «o biólogo deve encarar com profunda inquietação o facto de as leis e instituições francesas permitirem a infiltração de sangue negro no organismo do povo francês».

Não se tratava de uma inquietação especificamente germânica. A tese de que os franceses estavam «cada vez mais transformados em pretos» foi partilhada pelo mais célebre dos romancistas do fascismo, o francês Louis-Ferdinand Céline, quando afirmou em 1937 que os judeus, acusados de dominar a França, seriam «o produto de um cruzamento entre pretos e bárbaros asiáticos» ou seriam mesmo simplesmente negros. Céline escreveu também, em 1942, que «o judeu é já um preto», tal como afirmara no ano anterior que «o preto [é] o verdadeiro papá do judeu». Isto explica que em 1937 ele tivesse podido mencionar «os franceses negróides». No mesmo ímpeto escreveu numa carta de 15 de Junho de 1942, destinada a publicação, que «a França odeia instintivamente tudo o que a impede de se entregar aos pretos», acrescentando que «a França anseia por acabar preta» e concluindo que «a França actual, tão miscigenada, pode apenas ser antiariana». E num texto publicado em 23 de Outubro de 1943 considerou que «o sul da França enegrece cada vez mais». A conclusão só podia ser uma. «Eu quero ser o mais nazi de todos os colaboracionistas», proclamou Céline no Je Suis Partout, o principal jornal pró-nazi de Paris, «e proponho que todos os bastardos mediterrânicos a sul do Loire sejam lançados ao mar». Terminada a guerra, Céline continuou a defender que o abastardamento judaico enegrecera o país.

Serão assim tão estranhos estes ziguezagues entre brancos que, de maneira negativa ou positiva, eram negros e negros que, sempre negativamente, eram brancos? Talvez isto ajude a reflectir quem se dispuser a fazê-lo. Quando, no Brasil, o edital do Sistema de Selecção Unificada (SiSU) de 2019 determinou que «as cotas raciais destinam-se aos pardos negros e não aos pardos socialmente brancos», as acrobacias entre raça e cultura foram idênticas às que levaram à invenção dos negros de pele branca e dos brancos de pele negra. Mais do que a afirmação de uma identidade, o que o identitarismo étnico hoje procura é redefinir o perfil e o carácter dessa identidade, e assim se explica uma grande parte das disputas actuais. Este racismo de sinal inverso dedica-se a reinventar as raças.

[*] O tradutor inglês de Mein Kampf escreveu que o povo francês estava «negrified», mas não consegui encontrar na língua portuguesa uma palavra única para exprimir esta concepção pejorativa.

Bibliografia

Sobre o racismo linguístico do romantismo germânico ver sobretudo: Reinhold ARIS, History of Political Thought in Germany from 1789 to 1815, Londres: Frank Cass, 1965; F. M. BARNARD, Herder’s Social and Political Thought. From Enlightenment to Nationalism, Oxford: Clarendon, 1965; Rohan D’O. BUTLER, Raíces Ideológicas del Nacional-Socialismo, México: Fondo de Cultura Económica, 1943; Jacques DROZ, Le Romantisme Allemand et l’État. Résistance et Collaboration dans l’Allemagne Napoléonienne, Paris: Payot, 1966; J. G. FICHTE, Discours à la Nation Allemande, Paris: Aubier-Montaigne, 1975; Wolf LEPENIES, The Seduction of Culture in German History, Princeton, Nova Jersey e Oxford: Princeton University Press, 2006 [e-book]; Karl A. SCHLEUNES, The Twisted Road to Auschwitz. Nazi Policy toward German Jews, 1933-1939, Urbana e Chicago: University of Illinois Press, 1990; Peter WATSON, The German Genius. Europe’s Third Renaissance, the Second Scientific Revolution, and the Twentieth Century, Londres: Simon & Schuster, 2011. A obra de Darwin que mencionei é Charles DARWIN, The Descent of Man and Selection in Relation to Sex, Londres: The Folio Society, 1990. Sobre a eugenia consultar: Alison BASHFORD, «Population Politics since 1750», em Merry E. Wiesner-Hanks (org.) The Cambridge World History, vol. VII: J. R. McNeill e Kenneth Pomeranz (orgs.) Production, Destruction, and Connection, 1750 – Present, Parte I: Structures, Spaces, and Boundary Making, Cambridge: Cambridge University Press, 2015; Edwin BLACK, War against the Weak. Eugenics and America’s Campaign to Create a Master Race, Nova Iorque e Londres: Four Walls Eight Windows, 2003; Matthew CONNELLY, «The Cold War in the Longue Durée: Global Migration, Public Health, and Population Control», em Melvyn P. Leffler e Odd Arne Westad (orgs.) The Cambridge History of the Cold War, vol. III: Endings, Cambridge: Cambridge University Press, 2010; Marouf Arif HASIAN JR., The Rhetoric of Eugenics in Anglo-American Thought, Athens e Londres: The University of Georgia Press, 1996; Stefan KÜHL, The Nazi Connection. Eugenics, American Racism, and German National Socialism, Nova Iorque e Oxford: Oxford University Press, 1994; André PICHOT, La Société Pure. De Darwin à Hitler, Paris: Flammarion, 2000; Lothrop STODDARD, The Revolt against Civilization. The Menace of the Under Man, Nova Iorque: Charles Scribner’s Sons, 1922; Sheila Faith WEISS, The Nazi Symbiosis. Human Genetics and Politics in the Third Reich, Chicago e Londres: The University of Chicago Press, 2010. Sobre o estatuto racial dos italianos nos Estados Unidos consultar Thaddeus RUSSELL, A Renegade History of the United States, Londres etc.: Simon & Schuster, 2011. Sobre os portugueses como brancos honorários, as declarações da socióloga Margot Delon encontram-se citadas em Mickaël CORREIA, «Dans l’Enfer des Grands Bourgeois du Nord: Des Femmes de Ménage Portugaises Témoignent», Médiapart, 15 de Agosto de 2020. Sobre os brancos de pele escura ver Jean P. DORESSE, «Ethiopia, History of», The New Encyclopaedia Britannica, 15ª ed., Macropaedia, Chicago etc.: 1979, vol. 6, pág. 1006. Sobre os brancos não-brancos consultar: Louis-Ferdinand CÉLINE, Bagatelles pour un Massacre, Paris: Denoël, 1937; id., Les Beaux Draps, Paris: Nouvelles Éditions Françaises, 1941; id., L’École des Cadavres, Paris: Denoël, 1942; Houston Stewart CHAMBERLAIN, La Genèse du XIXme Siècle, 2 vols., Paris: Payot, 1913; Annick DURAFFOUR e Pierre-André TAGUIEFF, Céline, la Race, le Juif. Légende Littéraire et Vérité Historique, [Paris]: Fayard, 2017; Adolf HITLER, Mein Kampf, Londres: Pimlico, 1995; Maria-Antonietta MACCIOCCHI, «Les Femmes et la Traversée du Fascisme», em Éléments pour une Analyse du Fascisme. Séminaire de Maria-A. Macciocchi, Paris VIII – Vincennes, 1974-1975, 2 vols., Paris: Union Générale d’Éditions (10/18), 1976; Anne QUINCHON-CAUDAL, Hitler et les Races. L’Anthropologie Nationale-Socialiste, Paris: Berg International, 2013; Alfred ROSENBERG, Le Mythe du XXe Siècle. Bilan des Combats Culturels et Spirituels de Notre Temps, Paris: Avalon, 1986, mas é preferível esta tradução: The Myth of the Twentieth Century. An Evaluation of the Spiritual-Intellectual Confrontations of Our Age, aqui. Sobre o edital de 2019 do SiSU ver aqui.

 

Exceptuando as imagens que dizem directamente respeito ao texto, as cinco partes do ensaio Outra face do racismo são ilustradas com fotografias de Robert Mapplethorpe.

O ensaio Outra face do racismo divide-se em cinco partes:
1) o Tolstoy dos Zulus
2) o ressentimento substituiu a história
3) foram os racistas quem criou as raças
4) o mito do eurocentrismo
5) será o racismo inerente ao capitalismo?

8 COMENTÁRIOS

  1. Acompanhar esta nova série do JB e do PP sobre tema tão crucial e atual tem sido muito importante.

    Recomendo a vocês, assim como aos comentadores e debatedores, que leiam, reflitam e, quem sabe, incorporem nas suas considerações futuras o diálogo crítico (e autocrítico) com este texto recém-publicado pelo grande Deivison Nkosi, da Kilombagem, a meu humilde ver um dos melhores escritos nos últimos tempos sobre a questão e suas decorrentes polêmicas – bem como os desafios colocados a todos nós:

    https://deivisonnkosi.kilombagem.net.br/artigos/diversos/as-vezes-a-critica-a-critica-da-critica-e-apenas-ausencia-de-autocritica-sobre-a-realeza-wakandiana-a-psicanalise-e-a-critica-ao-duplo-narcisismo/

    Saudações pra vocês tudo.

  2. Danilo,

    Eu gostei muito dessa parte 3 dessa série do João Bernardo. Li muito rapidamente e não com a devida atenção o artigo que você sugeriu.
    Tem uma questão que é propriamente conceitual.. falar em “negritude” e “branquitude” e dar tal centralidade a esses conceitos é fazer um recorte racial do mundo que tem suas consequências, como os recortes nacionalistas tem suas consequencias ou os recortes de classe.
    E discordo muito quando o referido artigo diz que o branco que critica o identitarismo é parte de uma identidade hegemônica. A cor de pele desse crítico importa na construção da sua identidade? A do membro da KKK com certeza, mas não me parece que a do crítico das políticas identitárias.
    O outro lado da moeda do identitarismo negro não é o de pele clara crítico da políticas identitárias, mas os brancos identitarios de um KKK, por exemplo. Para dentro da esquerda é desnecessário criticar o racismo ou as relações econômicas que perpetuam o racismo. Essa violência é ponto pacífico. O que não é ponto pacífico são as políticas identitárias como resposta a essa violência, por isso a crítica se dirige a ela.

  3. Caro João Bernardo,

    Concordo consigo que o identitarismo visa a formação de uma nova elite capitalista. Mas toda elite pressupõe uma base de sustentação. E tanto uma (elite) quanto outra (base) necessitam ser produzidas, penso eu, que em termos muito semelhantes à forma por você definida de produzir o proletário e o capitalista. Neste sentido, se não compreendi mal, não me parece que o identitarismo seja um movimento de “imersão” ao capitalismo, mas o oposto… Um processo de “emersão” do modo de produção capitalista, num sentido quase de desenvolvimento das forças produtivas, posto que vem desenvolvendo todo um mercado, e relações sociais aí inerentes, organizado e gerido por Estados e empresas. Faz sentido esta minha análise?

  4. Ana Lista,

    Muito obrigado pelo seu comentário. Você sintetizou a problemática que eu abordarei na quinta parte deste ensaio.

  5. pagar de malandro entendendo uma letra dos Racionais é phoda, mas interpretar um x ou um e que substitui uma vocal é realmente uma tarefa titânica do intelecto. Pq negin ñ skreve drito, poha?

  6. Cara Chiara,
    Tal como está indicado no final do artigo, as fotografias são de Robert Mapplethorpe.
    Cordialmente,
    o coletivo do Passa Palavra

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