Por João Bernardo
Os racistas não se dedicam fundamentalmente a inventar raças, mas a hierarquizá-las, e para afirmarem a supremacia da sua raça precisam de outra. Defendendo que não era o povo a falar a língua, mas a língua a fazer falar o povo, Fichte opunha aos alemães, que se tinham mantido fiéis à sua língua originária e por isso podiam pensar com criatividade, os franceses, que haviam adoptado o latim, o que os condenava à esterilidade do pensamento. Uma língua morta não podia fazer falar um povo, porque já nada tinha para dizer. Também Friedrich von Schlegel pretendeu que os povos que usavam línguas mortas ficavam desprovidos de faculdades criativas. O mesmo desejo de enaltecer a própria raça orientou a vertente biológica do racismo. Os eugenistas anglo-saxónicos situaram no cimo da hierarquia não simplesmente os brancos enquanto entidade genérica, mas eles próprios, os anglo-saxões, definidos como raça superior. O nacional-socialismo germânico trouxe uma nova complexidade e opôs à raça superior (a raça nórdica) uma sub-raça (os eslavos) e uma anti-raça (os judeus).
Do mesmo modo os cultores do identitarismo étnico, para afirmarem a sua superioridade, precisam de um espelho que lhes inverta a imagem. Para eles o eurocentrismo é uma categoria indispensável porque a proliferação de identidades, parcialmente sobreponíveis e sempre conflituais, só obtém alguma coerência através da oposição a um inimigo comum, o eurocentrismo, a única identidade réproba. O eurocentrismo, porém, é um mito que não corresponde aos factos históricos, porque na Europa havia três áreas culturais distintas, e nenhuma delas se restringia ao continente europeu, integrando-se em geografias mais vastas.
«Desde tempos imemoriais», afirmou Jacob Burckhardt nos meados do século XIX, «o Mar Mediterrâneo conferiu às nações estabelecidas nas suas costas impulsos mentais diferentes dos que guiavam os povos do Norte». A civilização grega e a romana, vulgarmente consideradas a matriz da Europa, na realidade foram mediterrânicas e não europeias. E foram-no em sentido lato, visto que a Grécia assimilou conhecimentos não só do Egipto, mas igualmente da Babilónia. «Muitos dos hábitos mentais mais familiares no Ocidente», observou Julian Bell, artista e historiador da arte, «têm afinal origem nos sumérios». O império de Alexandre aproveitou aquela rede de relações e chegou mais longe, porque levou à Índia a sabedoria grega e, em sentido inverso, trouxe para o Mediterrâneo elementos do pensamento indiano. O império romano ampliou a área de influências recíprocas, continuando a ter como centro o Mediterrâneo. Era esta a encruzilhada do mundo.
Depois, apesar da ruptura religiosa provocada pela difusão do islamismo, a área cultural mediterrânica não se desfez, graças ao movimento de traduções para a língua árabe ocorrido no califado abássida a partir dos meados do século VIII e que culminou no primeiro terço do século seguinte sob o califa al-Ma’mūn. De um lado traduziram-se originais gregos e do outro, textos em sânscrito e em persa. Aliás, como os abássidas estiveram particularmente ligados à cultura persa, as relações transmediterrânicas ampliaram a abrangência, considerando ainda que o contacto dos muçulmanos com a Índia alterou as noções de matemática a sul e depois a norte do Mediterrâneo. E além de a conquista berbere e árabe da península ibérica ter contribuído para acentuar a influência do islamismo sobre a cristandade europeia, deve também mencionar-se o judaísmo ibérico como ponte entre as correntes filosóficas em curso na cultura islâmica e o novo pensamento filosófico que despontava além-Pirenéus. Basta recordar que se situava em Córdova uma das maiores bibliotecas do mundo muçulmano.
Quando, a partir do século XII, se iniciou o movimento de traduções para o latim das obras filosóficas e científicas difundidas no mundo islâmico, a cristandade ocidental não só voltou a conhecer a filosofia e a ciência gregas, mas ampliou o âmbito geográfico das suas inspirações. Richard Fletcher considerou que «este foi um dos pontos de inflexão na evolução intelectual da humanidade» e Jim Al-Khalili, cientista e divulgador da ciência, de origem iraquiana, afirmou que «a revolução científica na Europa dos séculos XVI e XVII não poderia ter ocorrido sem os numerosos progressos feitos no mundo islâmico medieval». Um académico marroquino e historiador da filosofia, Mohamed Ábed Yabri, uma das grandes figuras do mundo árabe contemporâneo, colocou o acento tónico no outro lado ao escrever que «é precisamente o papel de medianeiro entre a cultura grega e a cultura moderna (europeia) que define o valor dos árabes».
Aquela linha de continuidade incluiu como articulação principal uma civilização não europeia, o Islão; mas não todo o Islão, ou não homogeneamente. Retomando uma problemática suscitada por Yabri, gostaria de proceder a uma história em se, uma experiência conceptual à maneira da física. Imaginemos como evoluiria a filosofia ocidental se a distribuição geográfica das filosofias islâmicas tivesse sido a inversa e se na Andaluzia ou no Maghreb tivesse vivido ibn Sīnā (Avicena) e não ibn Rushd (Averroes). «Adoptar o espírito averroísta implica uma ruptura radical com o espírito oriental, gnóstico e obscurantista de Avicena», escreveu Yabri, observando ainda que «os europeus dedicavam-se a viver a história precisamente por terem recebido de nós o averroísmo». «Cabe insistir no carácter matemático e racionalista do pensamento de Averroes», sublinhou ele, para concluir que, enquanto os árabes seguiram o rumo de ibn Sīnā e se afastaram do racionalismo, a Europa pôde abrir caminho ao racionalismo histórico e científico porque aprendera a lição de ibn Rushd. Todavia, não é menos certo que os europeus sofreram igualmente a influência do misticismo oriental que inspirou ibn Sīnā, pois o neoplatonismo desenvolveu-se na área muçulmana e daí passou para o Ocidente.
Esta rede de relações perdurou nos séculos seguintes. No prefácio à edição de 1972 de uma das suas obras mais conhecidas, Fernand Braudel sublinhou «a unidade e a coerência da região mediterrânica», acrescentando que mantinha «a firme convicção de que o Mediterrâneo turco vivia e pulsava ao mesmo ritmo que o cristão». Braudel acumulou provas da unidade cultural, política e económica do Mediterrâneo, e já no século anterior Burckhardt destacara «a influência que a civilização árabe exercera, na Idade Média, sobre a Itália e sobre todo o mundo culto», uma influência que persistiu nas cidades italianas do Renascimento tanto no plano da religião e da astrologia como no dos sistemas administrativos. O facto de as cidades italianas recorrerem umas contra as outras à aliança turca é a prova final de que acima das divisões religiosas prevalecia a unidade cultural. Nem sequer se tratou de fugazes jogos diplomáticos, porque o sultão, além de califa do Islão, considerava-se ainda herdeiro do império romano. Duas décadas e meia depois de os turcos terem conquistado Bizâncio, quando o pintor Gentile Bellini foi convidado para trabalhar na corte do sultão, não se limitou a levar consigo a arte italiana, mas aprendeu também a arte islâmica, como se vê, por exemplo, pelo seu Escriba Sentado. Reciprocamente, esta obra foi tão bem aceite pelo mundo islâmico que existem várias cópias e variantes persas.
A cultura intelectual na cristandade medieval e renascentista integrou a lição da cultura islâmica porque a vida económica e política do Mediterrâneo constituiu uma unidade, desde o sul da Europa até à Pérsia e desde o Maghreb até ao Mar Negro. Mencionar a este respeito uma Europa é anacrónico, mas a crítica factual ao mito do eurocentrismo deve ir mais longe, pois o grande obstáculo à unificação europeia foi precisamente a atracção exercida pela área cultural mediterrânica. «A Europa», definiu Braudel, «é a própria diversidade», e este historiador considerou que «o Mediterrâneo, graças à profunda influência que exerceu sobre a Europa meridional, contribuiu em grande medida para impedir a unidade daquela Europa que atraíra para as suas margens e depois dividira em seu benefício». Assim, a Europa era uma entidade geográfica, mas não cultural. Uma parte dessa entidade geográfica que não se submetera à atracção do Mediterrâneo tendia para o nordeste, através do Báltico, e para o leste, pela rota das estepes até aos confins da China. E a parte restante, através do oceano, tendia para o norte, dando alguma continuidade ao que outrora havia sido a cultura celta. A Europa dos críticos ao eurocentrismo não existiu.
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Situada no centro do continente e cindida por aquelas três áreas, a França comprovava a inexistência de qualquer unidade cultural europeia. O Mediterrâneo, a área de atracção mais poderosa, conferiu ao sul da França o carácter que ainda hoje ali subsiste. A França do Norte e do Leste era atraída pelas grandes rotas continentais. E no noroeste bretão, mal integrado no resto do país, perdurava a tradição gaélica e celta.
Cruzada com esta divisão cultural havia outra, porque a estratificação social era entendida como uma cisão racial. A historiografia francesa da segunda metade do século XVII atribuíra à nobreza uma ascendência franca, entroncando-a na raça dos conquistadores, enquanto a plebe descenderia dos gauleses, a raça conquistada. Escrevendo no primeiro quartel do século seguinte, Henri, conde de Boulainvilliers, recorreu a esta concepção para defender os privilégios da nobreza tradicional contra as pretensões do absolutismo, que ele considerava um regime próprio de escravos, decorrente da noção romana de imperium, enquanto caberia à nobreza restaurar a liberdade aristocrática dos germanos. A verdadeira nobreza, argumentava Boulainvilliers, não era concedida pela boa vontade do monarca, mas provinha do sangue que corria nas veias dos descendentes dos francos, mentalmente superiores aos gauleses.
Em 1789, Sieyès deu a esta genealogia consequências imprevistas, apelando para a desforra dos gauleses sobre os francos, e no célebre panfleto que marca a fase inicial da Revolução Francesa, Qu’est-ce que le Tiers État?, ele perguntou por que motivo a plebe «não mandaria de regresso para as florestas da Francónia todas essas famílias que conservam a louca pretensão de descenderem da raça dos Conquistadores e de terem herdado direitos de conquista». Na mesma perspectiva Saint-Simon ergueu-se contra o facto de os descendentes dos francos continuarem a deter o exclusivo da força política, enquanto a força económica cabia já aos descendentes dos gauleses. E Augustin Thierry, a quem Saint-Simon chamara «filho adoptivo» numa publicação de 1817, argumentou que, se a Revolução se devera ao Tiers État, herdeiro das antigas comunas urbanas onde — a crer na historiografia daquela época — haviam encontrado asilo os servos, descendentes da raça vencida, então «nós chegamos ao termo final de uma conquista que nos cumpre revogar». Na verdade, Thierry foi mais longe e denunciou «o emprego de uma fraseologia» que «substitui a ideia de classes e ordens pela ideia de povos diversos» e «aplica à luta das classes inimigas ou rivais o vocabulário pitoresco da história das invasões e das conquistas».
Esta inversão dos termos reforçou o mito. Na primeira metade do século XIX o conde de Montlosier lembrou à plebe que ela jamais poderia apagar as suas origens raciais, tal como as origens raciais da nobreza lhe confeririam inevitavelmente o carácter de elite. E Guizot apresentou a Revolução Francesa como o recomeço da guerra mais do que milenária entre dois povos que, apesar de reunidos no mesmo país, se haviam mantido estrangeiros — os francos e os gauleses, conquistadores e conquistados, senhores e servos. Já Joseph de Maistre se mostrara apreensivo com o facto de os francos serem menos numerosos do que os gauleses. Entretanto, o tema viria a encontrar repetidamente eco na grande obra de Balzac, que num dos seus romances pôs um personagem imaginário, o velho marquês d’Esgrignon, a lastimar, perante o sucesso da revolução de Julho de 1830: «Os gauleses triunfam!».
Não existia uma cultura europeia, não só porque o continente se repartia por três áreas culturais, cada uma abarcando mais longe do que a Europa, mas ainda porque à população que habitava o país central do continente eram atribuídas origens raciais opostas.
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Ao longo do século XIX a diversidade no continente europeu foi absorvida e integrada numa cultura unificada, mas essa não era uma cultura europeia, era já a cultura de vocação mundial promovida pelo capitalismo [*]. Na primeira parte deste ensaio eu escrevi que o carácter universal da civilização não nasceu com o capitalismo e que muito antes de se ter constituído uma economia global já a cultura existia num âmbito universal. Mas o capitalismo não se limitou a servir de quadro a uma evolução humana comum ou a veicular transferências culturais e desde a sua génese suscitou uma fusão criativa das diversas culturas, numa dinâmica que começou no continente europeu e depressa se ampliou aos outros continentes. Não se tratou de uma liquidação ou simples apropriação de culturas, mas de uma assimilação e integração que gerou algo sem precedentes, uma nova cultura de projecção global. A cultura capitalista não é eurocêntrica, não só porque o espaço europeu não estava culturalmente unificado, mas também porque esta nova cultura nasceu mundializável.
Até ao final do século XVIII, quando começou a desenvolver-se o racismo linguístico germânico, mas sobretudo até à segunda metade do século XIX, quando se difundiu a eugenia, as sociedades europeias não eram racistas no sentido moderno da palavra, não atribuíam uma cultura a um grupo biológico nem deduziam desse grupo uma cultura. No final do primeiro terço do século XVII mais de 15% da população de Lisboa era formada por escravos negros e, ao vê-los, um frade capuchinho exclamou: «Os seus corpos são bem feitos e mais formosos do que os dos brancos, e um negro nu é mais belo do que um branco com roupa».
Só numa metrópole era então possível que aquele esteta vivesse, porque o racismo biológico não nasceu nas metrópoles, mas nas sociedades coloniais das Américas. E não foi o escravismo, por si só, a suscitar esse racismo como efeito colateral, porque se tratava de um sistema demasiado vasto e multímodo para ser responsável por um fenómeno histórico específico. Quase todas, se não todas, as sociedades sedentárias organizadas em Estados praticaram o escravismo, sem no entanto conceberem um racismo biológico.
No caso específico do continente africano o escravismo era generalizado e os europeus só ocasionalmente foram caçadores de escravos, sendo fundamentalmente compradores de escravos, adquiridos aos mercadores e potentados esclavagistas nativos. Aliás, com o tráfico humano através do Atlântico combinavam-se as exportações africanas de escravos através do Índico e pelas rotas trans-saharianas, que atingiam um volume notável e não diziam respeito às colónias europeias. A grande alteração provocada pelo tráfico no Atlântico consistiu em incrementar as capturas ou compras de escravos pelos soberanos e mercadores africanos, para os venderem aos traficantes europeus. Um exemplo é o Império Lunda nos séculos XVII e XVIII, estabelecendo redes de comércio transcontinentais que lhe permitiram abastecer a exportação de escravos para as colónias nas Américas. Este processo reforçou a importância social e política dos mercadores africanos activos nas rotas interiores, que enriqueciam pelo tráfico e ao mesmo tempo organizavam forças militares destinadas à caça humana. Na bacia do Baixo Congo, por exemplo, surgiu uma associação de mercadores-guerreiros unidos por um culto religioso e interessados pela aquisição de escravos destinados à exportação ultramarina. Vendendo milhões de cativos aos traficantes europeus, os potentados e comerciantes africanos reforçaram o seu poderio económico e político e obtiveram as divisas necessárias para a importação de produtos oriundos da Europa. A difusão do escravismo nas colónias americanas esteve sempre ligada ao reforço das elites nativas em África. Depois, quando o conteúdo do comércio transatlântico foi alterado pelo cancelamento do tráfico humano, as sociedades africanas aumentaram a sua própria procura de escravos, destinados a produzir e transportar em África os bens requeridos pelo novo tipo de exportações. Calcula-se que em muitas regiões africanas, no final do século XIX, o número de escravos se situasse entre 1/4 e 1/2 da população total.
Ora, se o racismo biológico se devesse simplesmente ao escravismo ele teria uma existência milenária, com fundas raízes na África negra. O responsável inicial pelo novo racismo foi o modelo de sociedade fundado nas colónias americanas, com um tipo específico de escravismo, organizando grandes grupos de trabalho para a produção em massa de matérias-primas destinadas ao mercado mundial. Talvez este sistema tivesse sido inaugurado no século XIV em Creta e Chipre submetidos à soberania veneziana, mas foi no outro lado do Atlântico que se desenvolveu. Todavia, o racismo biológico nas colónias americanas manteve-se num plano empírico, sem pretensões intelectuais ou científicas. E como se tratava de áreas periféricas, que não exerceram influência sobre a cultura das metrópoles, os letrados e os cientistas europeus puderam interessar-se pelos novos espaços, sem que essa curiosidade os levasse a absorver as ideias dos colonos.
Para que o racismo biológico se divulgasse na Europa foi necessário que as metrópoles se empenhassem directamente na colonização, o que só veio a suceder a partir de meados do século XIX. Mas esta acção das metrópoles acompanhou o movimento de abolição da escravatura, pois o objectivo das empresas coloniais era o desenvolvimento do capitalismo e precisavam para isso de criar uma classe de proletários assalariados.
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Numa primeira fase, as autoridades coloniais e os agentes das empresas estabelecidas nas colónias preocuparam-se mais em aniquilar as culturas nativas do que em assimilá-las e criar algo de novo com elas. André Gide resumiu a questão numa frase lapidar, ao escrever que «quanto menos inteligente é o branco, mais o negro lhe parece estúpido». Foi assim que se criou a base empírica para o racismo biológico, e nas metrópoles as Sociedades de Geografia reproduziram aquela hierarquização racial e aquela biologização da cultura, coadjuvadas pela eugenia.
Ao mesmo tempo, porém, ocorreu um movimento em sentido contrário e iniciou-se nas metrópoles a recolha e a classificação sistemática de monumentos e artefactos culturais de outras civilizações. A expedição de Bonaparte ao Egipto deveu-se a muitos motivos, principalmente ao desejo de ampliar a um vasto âmbito geográfico a luta da República Francesa contra a Inglaterra e, acessoriamente, às manobras do jovem general contra o Directório. Mas aquela expedição salientou-se ainda por outra razão. É que pela primeira vez uma campanha militar foi também um empreendimento científico, com o propósito de registar e estudar culturas alheias. Cientistas e artistas pertencentes às mais reputadas instituições parisienses de ensino e pesquisa, incluindo astrónomos, geómetras, químicos e físicos, zoologistas, botânicos, mineralogistas, economistas, arqueólogos, entre eles figuras que ainda hoje marcam a história da ciência, mas também pintores e compositores, cento e sessenta e sete pessoas no total, acompanharam a expedição, e a eles se deve muito do que hoje se conhece acerca do Egipto e do seu passado.
De então em diante o desejo de compreender as outras culturas não esmoreceu, e se nenhum grupo de cientistas teve a dimensão daquele que Bonaparte levou consigo, o certo é que as iniciativas se multiplicaram e diversificaram. Pela primeira vez na história da humanidade, um centro que se considerava detentor da civilização, em vez de mostrar desprezo pela cultura dos bárbaros, procurava estudá-la e aprender com ela. Ao contrário do que pretendem hoje os nacionalistas e os seus sucessores identitários, na maioria dos casos não se tratou de pilhagem, porque os monumentos e artefactos recolhidos pelos eruditos europeus e, depois, norte-americanos eram desprezados pelos povos que os haviam criado, ou tinham mesmo caído no esquecimento. À arte e às artes aplicadas das sociedades que eram alvo da expansão capitalista foi atribuída a dignidade máxima que a cultura burguesa é capaz de conferir — a de figurar em museus. O capitalismo é, na história do mundo, o primeiro sistema a preocupar-se com a preservação dos monumentos. É uma preocupação contraditória, porque os monumentos são aceites na forma que tinham antes de o capitalismo se iniciar, quaisquer que fossem as alterações entretanto sofridas, só se considerando apócrifo o que veio depois. Mas esta aura conferida pela cultura capitalista envolveu tanto as relíquias da Europa como as dos outros continentes.
Houve precursores, e é raro que os não haja. Em 1520, Dürer manifestou no seu diário uma encantada surpresa perante os despojos artísticos provenientes da conquista do império azteca: «Em toda a minha vida nunca vi nada que me alegrasse tanto o coração. Porque vi ali prodígios de arte e fiquei maravilhado com a criatividade subtil de povos em terras estranhas. Na verdade, não consigo exprimir tudo o que me fizeram pensar».
Mas este apreço não contribuiu para inspirar novos rumos à obra de Dürer, e é a influência nas próprias realizações estéticas que me importa aqui destacar. A partir da segunda metade do século XIX todo o vanguardismo teve uma componente de exotismo. O Modernismo assimilou a lição da pintura japonesa e das perspectivas chinesas, e da arte das ilhas do Pacífico no final desse século, para depois, nos primeiros anos do século XX, se abrir inteiramente à escultura africana e um pouco mais tarde à escultura e também à tecelagem dos índios das Américas. E não só acolheu e repensou esteticamente o visível, mas ainda o que durante milénios havia permanecido oculto, porque a arqueologia trouxe o impacto de artes esquecidas. Nos cem anos que ligaram os meados do século XIX aos meados do século XX não houve na Europa uma estética de vanguarda que não resultasse também de uma reflexão criativa sobre a estética das outras civilizações.
Em sentido inverso, as formas artísticas praticadas na Europa influenciaram a arte do Japão, depois de alguns povos africanos, mais tarde da China. O vanguardismo estético nasceu num choque entre a tradição europeia e as tradições de outros povos, e foi assim que se forjou uma arte nova, que pela primeira vez na história nasceu como uma arte mundial. Aliás, o mesmo sincretismo ocorreu no plano religioso, com a renovação do misticismo e do espiritualismo.
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Concluindo, a relação do capitalismo com as culturas dos outros povos foi atravessada inicialmente por duas correntes antagónicas. Numa, localizada nas colónias e nos países penetrados pelo imperialismo, as culturas locais foram subestimadas. Noutra, centrada nas metrópoles, as culturas exóticas foram enaltecidas e, posteriormente, foram assimiladas num processo de que resultou a criação de formas novas. Estas duas correntes opostas entraram em choque ao longo da segunda metade do século XIX e da primeira metade do século XX. Mas foi a tendência incorporada pelas vanguardas estéticas que acabou por triunfar e ditou o comportamento posterior de políticos e empresários, de cientistas e filósofos, desmentindo a noção de eurocentrismo e contrapondo-lhe a globalização.
O triunfo da corrente globalizante provém da conjugação de dois movimentos. Do lado imperialista, resultou da abertura manifestada pelas vanguardas artísticas e culturais à cultura e à arte de outros povos. Do lado dos povos que sofriam o imperialismo, resultou da compreensão de que, para lhe resistir, tinham de adoptar a modernidade. O imperialismo procurara modernizar apenas alguns aspectos das sociedades para onde se expandira, especialmente difundir as relações de trabalho proletárias e abolir o escravismo e outras formas acaicas, mas ao mesmo tempo levantara obstáculos a uma modernização que convertesse essas sociedades em centros autónomos de acumulação de capital. Completar este processo foi o objectivo das lutas anti-imperialistas, desde os primeiros modernizadores disseminados no Império Otomano no final do século XIX, passando pelo Movimento do Quatro de Maio de 1919 na China, até finalmente às lutas pela independência na África do terceiro quartel do século XX. Foi assim que se formou a cultura mundial em que hoje vivemos. Para esta globalização foi tão decisivo o expansionismo capitalista das metrópoles como foi a acção modernizadora dos povos que sofriam os limites impostos pelo colonialismo. A globalização deve-se a este duplo processo.
Perversamente, os progressos que a classe trabalhadora e a esquerda conseguiram originar e sustentar, e de que os movimentos anticoloniais foram um agente activo, são agora denegridos como eurocêntricos pelos cultores das identidades. Nada podia revelar melhor o carácter reaccionário do identitarismo étnico, que renega o passado das lutas anticoloniais.
[*] Num contexto de história comparada, é indispensável explicar o que entendo por capitalismo. O capitalismo assenta num sistema de organização da força de trabalho em que aqueles que controlam o seu próprio tempo de trabalho, ou participam neste controle, e simultaneamente controlam o tempo de trabalho alheio constituem as classes exploradoras (burgueses e gestores) e aqueles que não controlam o seu próprio tempo de trabalho nem o tempo de trabalho alheio constituem a classe explorada (trabalhadores). Este sistema de organização remodelou a sociedade à sua imagem e sobre ele fundou um modo de produção. Por isso o tempo é a substância do capitalismo. Nesta definição, o capitalismo começou a desenvolver-se em áreas reduzidas da Grã-Bretanha e do norte e leste da França na segunda metade do século XVIII e no começo do século XIX, expandindo-se a partir de então a uma velocidade crescente e abrangendo regiões cada vez mais vastas. Considero errónea a designação de capitalismo comercial, que numerosos autores aplicam ao mercantilismo. O capital, no modo de produção capitalista, não é uma soma de dinheiro nem um volume de bens, é o domínio sobre uma relação de trabalho. O volume de bens é o resultado material desse domínio e a soma de dinheiro é o seu símbolo. Aliás, o dinheiro é sempre uma forma simbólica que permite a articulação de relações sociais, e por si só a existência de dinheiro não deixa presumir quais sejam as relações sociais que ele articula. Por isso o dinheiro existe desde há vários milénios e numa pluralidade de sistemas económicos.
Bibliografia
Quanto à oposição linguística e racial entre os alemães e os franceses, consultar: J. G. FICHTE, Discours à la Nation Allemande, Paris: Aubier-Montaigne, 1975; Léon POLIAKOV, Le Mythe Aryen. Essai sur les Sources du Racisme et des Nationalismes, Paris: Calmann-Lévy, 1971. Sobre a hierarquia racial do nacional-socialismo, em comparação com a eugenia clássica, remeto para o capítulo 2 da Parte 4 da minha obra Labirintos do Fascismo. Na Encruzilhada da Ordem e da Revolta, 3ª versão, 2018, por exemplo aqui. Para a crítica à noção de eurocentrismo consultar: Jim AL-KHALILI, Pathfinders. The Golden Age of Arabic Science, Londres: Penguin, 2012; Julian BELL, A Mirror of the World. A New History of Art, Londres: Thames & Hudson, 2007; Martin BERNAL, Black Athena. The Afroasiatic Roots of Classical Civilization, vol. I: The Fabrication of Ancient Greece 1785-1985, New Brunswick, Nova Jersey: Rutgers University Press, 1987; Fernand BRAUDEL, The Mediterranean and the Mediterranean World in the Age of Philip II, 3 vols., Londres: The Folio Society, 2000; Jacob BURCKHARDT, The Civilisation of the Renaissance in Italy. An Essay, Londres: The Folio Society, 2004; Richard FLETCHER, Moorish Spain, Londres: Phoenix, 2001; John KEAY, Sowing the Wind. The Seeds of Conflict in the Middle East, Londres: The Folio Society, 2016; Mohamed Ábed YABRI, El Legado Filosófico Árabe. Alfarabi, Avicena, Avempace, Averroes, Abenjaldún. Lecturas Contemporáneas, Madrid: Trotta, 2016. Sobre o mito racial franco e gaulês consultar: Jacques BARZUN, Race: A Study in Superstition, Nova Iorque: Harper & Row, 1965; Franz BOAS, The Mind of Primitive Man, Nova Iorque: Macmillan, 1938; Jean Pierre FAYE, Théorie du Récit. Introduction aux Langages Totalitaires. Critique de la Raison — l’Économie — Narrative, Paris: Hermann, 1972; Léon POLIAKOV, Le Mythe Aryen. Essai sur les Sources du Racisme et des Nationalismes, Paris: Calmann-Lévy, 1971. Esse mito encontra-se em BALZAC, La Comédie Humaine, ed. org. por Pierre-Georges Castex, 12 vols., [Paris]: Gallimard (Bibliothèque de la Pléiade), 1976-1981, nas obras seguintes: Le Cabinet des Antiques; Les Paysans; Le Médecin de Campagne; Historique du Procès auquel A Donné Lieu «Le Lys dans la Vallée». A expressão do marquês d’Esgrignon encontra-se em Le Cabinet des Antiques, op. cit., vol. IV, pág. 1096. A exclamação do frade capuchinho encontra-se em Fernand BRAUDEL, op. cit., vol. I, pág. 304. Sobre a aquisição e exportação de escravos pelos soberanos e mercadores africanos a bibliografia é muito vasta e limito-me a indicar todos os capítulos da General History of Africa, vol. VI: J. F. Ade AJAYI (org.) Africa in the Nineteenth Century until the 1880s, Paris e Oxford etc.: UNESCO e Heinemann, 1989 e ainda um capítulo de síntese recente: Ray A. KEA, «Africa in World History, 1400 to 1800», em Merry E. Wiesner-Hanks (org.) The Cambridge World History, vol. VI: Jerry H. Bentley, Sanjay Subrahmanyam e Merry E. Wiesner-Hanks (orgs.) The Construction of a Global World, 1400 – 1800 CE, Parte I: Foundations, Cambridge: Cambridge University Press, 2015. Acerca do tipo de escravismo praticado em Creta e Chipre sob o domínio veneziano remeto para a minha obra Poder e Dinheiro. Do Poder Pessoal ao Estado Impessoal no Regime Senhorial, Séculos V-XV, 3 vols., Parte II: Diacronia. Conflitos Sociais do Século V ao Século XIV, Porto: Afrontamento, 1997 que pode ser consultada aqui. A frase de Gide encontra-se em André GIDE, Voyage au Congo, Paris: Gallimard, 1927 aqui. Sobre a expedição de Bonaparte ao Egipto consultar Jacques BENOIST-MÉCHIN, Bonaparte en Égypte ou Le Rêve Inassouvi, Lausanne: La Guilde du Livre, 1966. A anotação de Dürer a respeito da arte azteca encontra-se reproduzida em Julian BELL, op. cit., pág. 181.
Exceptuando as imagens que dizem directamente respeito ao texto, as cinco partes do ensaio Outra face do racismo são ilustradas com fotografias de Robert Mapplethorpe.
O ensaio Outra face do racismo divide-se em cinco partes:
1) o Tolstoy dos Zulus
2) o ressentimento substituiu a história
3) foram os racistas quem criou as raças
4) o mito do eurocentrismo
5) será o racismo inerente ao capitalismo?
Caro João Bernardo,
Como você situaria o caso do Brasil colônia (ou mesmo as colônias hispânicas) em que, até o século XIX, sequer havia uma unidade linguística (por exemplo, Língua Geral Paulista, como bem demonstram os diversos topônimos da “metrópole” paulistana…) ou cultural (boitatá, curupira, etc), ou mesmo política (até a proclamação da república, mais especificamente com a “Nova República” de Vargas, as províncias ou estados gozavam de uma autonomia bem expressiva…)? Será que esse dualismo que você aponta entre metrópole x colônia se aplica, integralmente, à América Ibérica? Não se localizaria essa dicotomia mais a partir da “sociedade do espetáculo” (já nos primórdios da “Era do Rádio”)?
Caros leitores,
Informamos que autor do ensaio não pode responder aos comentários no momento, mas o fará logo quando possível.
Cordialmente,
Coletivo Passa Palavra.
Os adeptos das políticas identitárias (o identitarismo) expõe mais claramente suas características nacionalistas regressivas quando acusam algo de ser “eurocêntrico”. Em geral rotular algo de eurocêntrico serve para desqualificar, sem precisar fundamentar em argumentos lógicos o motivo de ser contra ou a favor de algo. Assim se desqualifica pela nacionalidade, origem, como se desqualifica pela cor da pele.
É bom dizer que não é de hoje que marxistas “ortodoxos” da América latina utilizam desse subterfúgio, muitas vezes pateticamente, como era comum acusar o anarquismo de ser eurocêntrico (por ter surgido na Europa), como se Karl Marx usasse cocar.
Mas como aqui vou fazer o papel de advogado do diabo para tentar fortalecer e melhorar a crítica, teve algo que me pareceu contraditório nesse parte 4 do artigo.
A primeira metade do artigo se esforça em mostrar que não havia uma cultura europeia. Porém ao final é dito que: “O vanguardismo estético nasceu num choque entre a tradição europeia e as tradições de outros povos”. Pois então, havia ou não uma cultura europeia? Ou o autor está separando cultura em sentido amplo de tradições estéticas mais específicas?
Edu Vidal,
Nesta 4ª Parte do ensaio concentro-me nas três grandes áreas culturais (mediterrânica, continental e céltica) pelas quais se repartia o continente europeu. Ora, a sua questão exige um mosaico de outra ordem e com outro detalhe. As grandes áreas culturais estabelecem-se mediante sistemas de trocas comerciais; jogos políticos, tanto alianças como hostilidades; e o cruzamento de influências estéticas e culturais. Mas você refere áreas culturais menores, que resultam do prevalecimento de um sistema de poder hegemónico e centralizador, ou seja, de um Estado. A Nação, aquilo que nós hoje consideramos a cultura nacional, é o resultado do prevalecimento do Estado, e o que se passou nas Américas não foi diferente do que ao mesmo tempo se passava na Europa.
No meu ensaio mencionei o caso da França pelo facto de aí a divisão cultural (França a sul do Loire / França a norte do Loire / Bretanha) se conjugar com uma pretensa divisão racial (Francos / Gauleses), o que não sucedeu nos outros países europeus. Mas a nação francesa enquanto unidade cultural foi uma criação sucessiva do Império napoleónico, do Segundo Império e da Terceira República, demorando um século para se completar. Na Alemanha a génese do percurso foi a oposta. Eu recordei na 3ª Parte que a Alemanha não era para Ernst Moritz Arndt uma entidade política, pois estava repartida numa miríada de áreas de soberania, mas onde se falava alemão, escreveu ele num poema, ali se encontrava a Alemanha. Mas que alemão se falava na Alemanha, já que só os literatos davam unidade a uma língua que se repartia por múltiplos dialectos? Essa área cultural — que para os românticos era cultural e racial, portanto biológica — foi um terreno de luta entre dois pólos político-culturais: o luterano, a Norte, representado pela Prússia, e o católico, a Sul, representado pela aliança da Áustria com a Baviera. Para que a Alemanha se convertesse no Império Alemão, sob a dinastia prussiana, foram necessárias várias guerras no terceiro quartel do século XIX: duas entre a Prússia e os seus aliados e a Dinamarca, pelo controle do Schleswig-Holstein; entre a Prússia e os seus aliados, de um lado, e a Áustria e a Baviera, do outro; finalmente, a guerra entre a Prússia, com o resto da Alemanha, e a França. O Império Alemão ficara constituído, com o enorme inconveniente, porém, de a exclusão da Áustria representar a cisão daquela Alemanha linguístico-biológica sonhada pelos românticos. Um austríaco chamado Adolf Hitler pretendeu resolver esse problema, com as consequências bem conhecidas. A unificação da Itália não foi menos problemática, com efeitos que ainda hoje se fazem sentir. E termino aqui, não por falta de exemplos, mas de espaço.
Neste contexto, o caso do Brasil nada tem de especial. É que, como eu insisto para desgosto de algumas pessoas, o Brasil não está no Brasil, está no mundo. Há dois séculos atrás, quem não juraria que a sul da América de língua inglesa se desenhariam apenas quatro potências — o México, o Império brasileiro, um Estado encabeçado por Simón Bolívar e outro por San Martín? O que haveria a explicar, então, não seria o motivo pelo qual o Brasil e o México conseguiram criar uma unidade nacional e cultural, mas por que os outros dois pólos políticos não conseguiram.
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Leo,
Nesta 4ª Parte do ensaio os leitores têm de fazer permanentemente o exercício de distinguir o conceito europeu quando aplicado ao plano cultural ou à esfera geográfica. Na esfera geográfica a Europa constitui um dos cinco continentes, não sou geólogo, não ponho isto em causa. Na frase que você destacou, a «tradição europeia» é a tradição das artes praticadas no continente europeu. E ainda aqui é muito clara a cisão entre as três grandes áreas culturais.
A escultura grega, nos seus primórdios, foi influenciada pela escultura indiana, tal como seria novamente mais tarde, numa projecção a que Alexandre deu nova materialidade. Aquela região a que hoje chamamos Afeganistão era uma encruzilhada nestas rotas culturais, com resultados artísticos fascinantes. Quem tiver oportunidade, visite o Musée Guimet. No entanto, a islamização da parte meridional do Mediterrâneo, se não rompeu a unidade económica e cultural dessa área, rompeu parcialmente a unidade estética num aspecto crucial, já que o Profeta proibira a representação de figuras humanas. Ainda assim, a ruptura não foi completa, porque do século XVI em diante a representação da tapeçaria turca passou a ocupar um lugar significativo em muitas telas pintadas no continente europeu. É interessante constatar que enquanto na Europa o público permanece em boa medida indiferente a essa influência, ela é bem destacada no Museu de Tapeçaria de Istambul.
Um exemplo fascinante de cruzamentos estéticos é o do célebre El Greco, o nome por que ficou conhecido Doménikos Theotokópoulos, nascido em Creta, que se integrava então na área de soberania veneziana. Ora, Creta sentira a influência bizantina de maneira ainda mais directa do que Veneza, onde continuava viva a tradição dos ícones, imagens religiosas que obedeciam a princípios estéticos diferentes dos praticados no continente europeu. Aliás, existe em Veneza um interessantíssimo Museu de Ícones pintados na antiga área de soberania veneziana. Doménikos Theotokópoulos começou por ser um pintor de ícones, até ir para Veneza e depois para outras cidades italianas, onde absorveu a lição dos grandes artistas daquela época, estabelecendo-se finalmente em Espanha, onde morreu. Mas mesmo quando já era El Greco (Grego significava então Bizantino), ele usava ainda a reminiscência da técnica dos ícones para a criação de espaços em torno de personagens ou grupos de personagens. El Greco é o melhor exemplo da vitalidade das fusões estéticas de uma ponta a outra do Mediterrâneo.
E enquanto isto se passava na parte meridional do continente europeu, inserido numa área cultural muito mais vasta, na parte setentrional, mesmo para uma pessoa alheia à história da arte, é flagrante a diferença entre a Renascença na Flandres, nos Países Baixos e na Alemanha do Norte e a Renascença italiana. Havia influências, directas e indirectas, e aliás os pintores eram artesãos ambulantes, ao serviço de uma ou outra corte, um ou outro convento, uma ou outra cidade, trocando a aprendendo técnicas e estilos. Mas apesar disto o universo estético da Europa setentrional conservou a sua especificidade e as ligações para Leste, pela rota continental, e através do Báltico, mantinham-se vivas. Foi nesta tradição estética que o racismo nacional-socialista pretendeu fundar a apologia da Raça Nórdica. O contraste entre o fascismo hitleriano e o fascismo mussoliniano, o contraste entre a Raça e o Estado, foi também, nas referências históricas e míticas, um contraste entre a área cultural do Norte e Nordeste e a área cultural mediterrânica.
Quanto à área cultural céltica, que em boa medida desaparecera da estética erudita, manteve-se viva na cultura popular, como se verifica na Bretanha francesa, na Galiza espanhola e no norte de Portugal.
Concluindo, o vanguardismo estético nasceu num choque operado entre um cruzamento de áreas culturais, nenhuma delas exclusiva do continente europeu, e tradições estéticas de povos mais distantes, que não se inseriam em nenhuma dessas três áreas culturais. Dois últimos exemplos. Gauguin e Van Gogh começaram por pintar a Bretanha celta e depois foram para a Provença mediterrânica, onde Van Gogh absorveu algumas lições da arte japonesa, enquanto Gauguin, sempre em busca de mais luz, demandou o Pacífico e abriu horizontes estéticos ainda mais vastos.
“Há dois séculos atrás, quem não juraria que a sul da América de língua inglesa se desenhariam apenas quatro potências — o México, o Império brasileiro, um Estado encabeçado por Simón Bolívar e outro por San Martín? O que haveria a explicar, então, não seria o motivo pelo qual o Brasil e o México conseguiram criar uma unidade nacional e cultural, mas por que os outros dois pólos políticos não conseguiram.”
A BBC explica: https://www.youtube.com/watch?v=8gM6WJ-ED9A
Caro João Bernardo,
Lendo esta parte do ensaio lembrei de um diálogo que está no conto “O Hóspede”, do livro “O Reino e o Exílio”, de Albert Camus, publicado em 1957. Como não estou com o livro em mãos, coloco, a seguir, o trecho que interessa tal como aparece no filme “Longe dos Homens”, de 2013 (o filme é baseado no conto de Camus): “Meus pais eram espanhóis, mas para os franceses éramos árabes. E agora, para os árabes, somos franceses.”
Fernando Paz,
O seu comentário caberia mais exactamente na 3ª Parte deste ensaio, onde defendo que, se as raças são uma invenção dos racistas, fica aberto o campo para uma ilimitada criação de raças e para a permanente alteração do seu perfil. Foi isto que sucedeu nas décadas de 1930 e 1940, graças ao nacional-socialismo germânico, e que volta agora a suceder um pouco por todo o mundo, e no Brasil também. Durante a segunda guerra mundial, no Cáucaso e na Crimeia soviéticos ocupados pelas tropas do Reich, os SS durante cerca de seis meses mataram os prisioneiros muçulmanos que, por serem circuncisos, haviam sido confundidos com judeus. Até que o Führer, quando soube, declarou que eles eram descendentes directos dos antigos Godos e, portanto, dignos de confiança. Quem estiver interessado pode ler o que escrevi no Labirintos do Fascismo, 3ª versão, pág. 935, onde a situação está narrada com algum detalhe e com a respectiva bibliografia. São estes casos-limite que melhor nos servem para definir e estudar o racismo. Não foi sem razões bem concretas que em 1949 Virgil Gheorghiu escreveu um romance, que na época atingiu uma enorme popularidade, em torno de um personagem sucessivamente classificado como judeu e ariano, para terminar num labirinto de perseguições políticas. O personagem de Camus que você evocou não vivia num mundo muito diferente, e aliás Camus sabia do que falava, porque era um pied noir. Mas agora regressámos plenamente a uma sociedade regida pelos racismos identitários. Não passa uma semana, por vezes não passa um dia, sem novos exemplos. Ainda neste sábado, 12 de Setembro, um português de 29 anos, residente há pouco tempo na Suíça como assalariado sazonal para a apanha de maçãs, foi assassinado na rua por um islamista turco-suíço, que já havia sido preso devido à participação em pequenas acções terroristas, e que julgou que a sua vítima era um suíço. E, com efeito, o que é que cada de nós é, os olhos de um racista? Quando o movimento negro brasileiro promove uma legislação contra os «pardos socialmente brancos» encerra-se no mesmo labirinto de paradoxos em se encerraram os nacionais-socialistas ao depararem com os muçulmanos soviéticos.
João, o que me diz da posição “decolonialista” de que o nazismo e o Holocausto só causaram grande horror porque foram “brancos contra brancos, fazendo o que a Europa já fazia com os povos Africanos há muitos séculos”?
Caro Irado,
Você já sabia qual iria ser a minha resposta, esteve só a dar-me uma oportunidade de me explicar, o que lhe agradeço. Então, sem papas na língua, como se diz em Portugal, considero essa posição recentemente expressa, por exemplo, pela actriz americana Whoopi Goldberg a) racista e b) ignorante, a um ponto tal que posso classificá-la até como c) imbecil. Vou explicar-me.
No actual processo de renovação das elites capitalistas, o critério é o de que quem estava em último lugar tem direito a ascender primeiro, o que provoca um engraçado concurso de vitimizações. Eu fui mais martirizado do que você, clama uma certa identidade. Nada disso, a mais martirizada fui eu, argumenta outra identidade, acrescentando-se à cacofonia geral. As disputas entre as feministas e os transgéneros, para nem sequer falar das transgéneras, insere-se nesta competição. Mas, no que diz respeito à pergunta colocada por Irado, o movimento negro assume uma dupla posição ou, mais exactamente, uma posição com duas faces — a de que as chamadas raças se definem pela cor da pele e que a pele só tem duas cores, ou negra ou branca. Nestes termos o racismo, por definição, seria sempre uma vitimização dos negros pelos brancos.
Bastaria ler os eugenistas na primeira metade do século XX para saber que essa posição adoptada pelo movimento negro é desprovida de sentido. Na terceira parte deste ensaio eu escrevi que «nos Estados Unidos, no final do século XIX e na primeira metade do século XX, os imigrantes italianos eram considerados negros, tanto racial como culturalmente». Entretanto, «como explicar que a Etiópia, cujos habitantes eram indubitavelmente negros, se tivesse mantido como um Estado independente e além disso possuidor de uma milenária Igreja cristã? Procedeu-se então à fantástica descoberta de uma raça branca com pele negra». Brancos de pele negra, negros de pele branca, todos estes saltos entre a biologia e a cultura, a cultura e a biologia, são exigidos pelo racismo e pela forma generalizada de racismo que são os identitarismos.
Quanto aos nacionais-socialistas no Terceiro Reich, eles estabeleciam uma tripla divisão, opondo os Nórdicos (a classificação de Ariano tendeu a cair em desuso) a uma sub-raça (os Eslavos) e uma anti-raça (os Judeus, aos quais se acrescentavam os Ciganos).
Os nacionais-socialistas consideravam que os Eslavos eram incapazes de assumir uma organização social própria e, portanto, de adquirir a coesão de um Estado. Por isso estavam destinados a ser os escravos da Raça dos Senhores, ou seja, dos Nórdicos, a não ser que os Judeus dessem aos Eslavos aquela coesão. A revolução bolchevista seria, nesta perspectiva, uma revolta de sub-homens comandada por Judeus.
Ora, os Judeus eram considerados uma anti-raça, incapazes de se unirem entre eles a não ser quando enfrentavam um inimigo comum — os Nórdicos. Precisamente por isso, para preservar a Raça dos Senhores seria necessário destruir a anti-raça. O genocídio dos Judeus foi determinado por este raciocínio lógico, resultante de uma estrita lógica racial.
Mas, num mundo de raças, como se formara a anti-raça? Para um dos principais doutrinadores raciais da Alemanha, Houston Stewart Chamberlain, os Judeus resultavam de uma mestiçagem de tipos rácicos tão díspares sob os pontos de vista físico e moral que só fora capaz de gerar elementos bastardos e internamente cindidos, ou seja, uma anti-raça. Para Theodor Fritsch, outro dos mais populares doutrinadores do racismo, as sociedades primitivas teriam expurgado os mestiços, considerados — tal como uma grande parte do movimento negro hoje os considera — factores de degenerescência; votados ao ostracismo, esses mestiços ter-se-iam reunido em hordas que possuíam em comum a hostilidade à sociedade e ao Estado, ou seja, uma indisciplina desagregadora que os convertera numa anti-raça.
E, neste panorama, onde ficam as cores da pele? Cito novamente o que escrevi na terceira parte deste ensaio:
«Quando Hitler escreveu, em Mein Kampf, que os franceses “quanto ao essencial estão cada vez mais transformados em pretos”, ele não se referia apenas ao que os nacionalistas alemães dessa época chamavam a Vergonha Negra, ou seja, o facto de entre as tropas francesas estacionadas no território alemão após o final da primeira guerra mundial se contarem militares senegaleses. O mais importante é que os nacionais-socialistas, e os racistas nórdicos em geral, consideravam os judeus como levantinos, descendentes da antiga Cartago fenícia, portanto, africanos e, logicamente, negros. A influência racial judaica, além de nefasta cultural e biologicamente, era considerada como um factor de enegrecimento. A noção de que a França se havia convertido num prolongamento da África, comandado por judeus, foi defendida pelo doutrinador do nacional-socialismo, Alfred Rosenberg, na sua grande obra O Mito do Século XX, e, escrevendo já no final do Terceiro Reich, o médico e antropologista Eugen Fischer considerou que “o biólogo deve encarar com profunda inquietação o facto de as leis e instituições francesas permitirem a infiltração de sangue negro no organismo do povo francês”.
«Não se tratava de uma inquietação especificamente germânica. A tese de que os franceses estavam “cada vez mais transformados em pretos” foi partilhada pelo mais célebre dos romancistas do fascismo, o francês Louis-Ferdinand Céline, quando afirmou em 1937 que os judeus, acusados de dominar a França, seriam “o produto de um cruzamento entre pretos e bárbaros asiáticos” ou seriam mesmo simplesmente negros. Céline escreveu também, em 1942, que “o judeu é já um preto”, tal como afirmara no ano anterior que “o preto [é] o verdadeiro papá do judeu”. Isto explica que em 1937 ele tivesse podido mencionar “os franceses negróides”. No mesmo ímpeto escreveu numa carta de 15 de Junho de 1942, destinada a publicação, que “a França odeia instintivamente tudo o que a impede de se entregar aos pretos”, acrescentando que “a França anseia por acabar preta” e concluindo que “a França actual, tão miscigenada, pode apenas ser antiariana”. E num texto publicado em 23 de Outubro de 1943 considerou que “o sul da França enegrece cada vez mais”. A conclusão só podia ser uma. “Eu quero ser o mais nazi de todos os colaboracionistas”, proclamou Céline no Je Suis Partout, o principal jornal pró-nazi de Paris, “e proponho que todos os bastardos mediterrânicos a sul do Loire sejam lançados ao mar”. Terminada a guerra, Céline continuou a defender que o abastardamento judaico enegrecera o país».
Caro Irado, o mais importante que podemos aprender com o racismo do Terceiro Reich, com a escravização dos eslavos e o genocídio dos judeus, é que todos os raciocínios prosseguidos em termos raciais são delirantes e todas as formas práticas de racismo têm como único resultado a barbárie. É neste quadro que eu hoje analiso a propensão dos identitarismos, incluindo o movimento negro, à biologização da cultura.
Caro João, logicamente eu estava “deixando a bola quicar”, como se diz no Brasil, para que você a arrematasse. Eu complementaria ainda que o raciocínio que apresentei em minha questão é uma forma de revisionismo, que acaba minimizando o horror do Holocausto e do nazismo. Recentemente fiz algo que já há muito não fazia, que foi entrar em discussões de redes sociais, numa postagem de um editora que lançava um livro sobre a “supremacia branca” e a inexistência do “racismo reverso”. Sobre este último ponto, a postagem defendia uma diferenciação entre “preconceito” e “racismo”, onde o primeiro seria desprovido de “poder em relação ao segundo. Ou seja, só há racismo quando há um sistema de poder que sustenta o preconceito enquanto forma de opressão de uma “raça” por outra. Um verdadeiro absurdo. Caí na besteira de escrever o seguinte: “por essa teoria os nazistas só se tornaram racistas quando tomaram o poder, em 1933. Até então eram só ‘preconceituosos’…”. Logo vieram respostas me dando “aulas” sobre como a Europa oprimiu e explorou a África, etc. Ainda respondi o seguinte: “Estou me referindo às teorias ‘antirracistas’ em voga que desconsideram todo o racismo que foge ao padrão brasileiro Brancos x Negros. Mas, o racismo comeu solto na Europa entre brancos, vide os genocídios dos armênios e dos judeus. Hitler ao redigir o Mein Kampf desenvolveu uma concepção ‘preconceituosa’ ou abertamente racista? Ele estava preso após uma tentativa frustrada de golpe, não tinha ‘poder’ algum. Por essa teoria o nazismo nascente não era racista, pois não estava no poder. Toda afirmação de superioridade racial é um racismo, que pode ou não se afirmar politicamente na forma de um sistema de opressão. Essa distinção entre preconceito e racismo feita pela autora é furada e deixa margem para grupos racistas (ainda) ‘sem poder algum’ serem subestimados”.
Veio outra resposta minimizando os campos de extermínio, defendendo que “o poder não é apenas aquele legalizado e oficializado, tem como ser uma sociedade supremacista branca bem antes de haver qualquer lei que autorize atrocidades como campos de concentração (…)”. Foucault ficaria feliz com essa resposta, onde os “micropoderes” são mais letais do que Auschwitz…
Enfim, nem entrei nessa sua discussão sobre a “negritude” independente da cor da pele, mas está claro onde chegam as posições identitárias…
Caro Irado,
Ao ler este seu último comentário tive vontade de o prolongar… prolongá-lo pela África, após as independências e até ao dia de hoje. Se «só há racismo quando há um sistema de poder que sustenta o preconceito enquanto forma de opressão de uma “raça” por outra», como defende essa tal postagem, então como chamar ao domínio dos Hutus sobre os Tutsis e, ao lado, dos Tutsis sobre os Hutus? E, no Sudão, dos negros arabizados sobre os restantes negros? E do Estado Islâmico e seus apêndices no nordeste da Nigéria e nos países confinantes, no Sahel e mais recentemente em Moçambique, na província de Cabo Delgado? O que fazem nos campos de prisioneiros? Não escravizam os homens e as mulheres, aqueles e aquelas que não matam de imediato?
O silêncio é muito eloquente, para mim é mesmo o momento mais eloquente do discurso. Por isso procuro sempre o ponto vazio, a partir do qual o discurso se deve reestruturar. A África actual é o silêncio do movimento negro. As independências, excepto em casos raríssimos, instauraram duravelmente regimes corruptos até à medula ou verdadeiramente cleptocráticos, horrivelmente repressivos quando não mesmo genocidários. Na segunda parte de um manifesto intitulado Sobre a esquerda e as esquerdas, escrevi: «No dia em que surja um movimento negro que critique a formação de elites negras e as relações de desigualdade e exploração entre negros com a mesma veemência com que critica o racismo antinegro, então esse movimento passará a fazer parte constitutiva do processo geral de renovação da classe trabalhadora». Ora, o silêncio do movimento negro sobre a África actual, que implica na prática a absolvição daquelas elites africanas, significa que o movimento negro se quer converter numa elite igualmente despudorada.
Enquanto a esquerda continuar a oferecer espaço a essa gente — e hoje oferece-lhe todo o espaço — não fará mais do que pôr o instinto de rebelião ao serviço de uma nova ordem, o que é o mecanismo gerador de todo o fascismo. Por isso o movimento negro, aquele movimento negro que hoje existe, insere-se no fascismo pós-fascista, o fascismo dos nossos dias.
João, coincidentemente, enquanto dialogávamos aqui a esquerda à qual nos referimos acabava de descobrir o nazismo, devido às infames declarações de alguém com nome de fábrica de bicicletas e o líder do MBL, Kinta Katiguria. São centenas de postagens nas redes sociais condenando corretamente a apologia ao nazismo e outras centenas de novos “especialistas em nazismo”. No entanto, as principais mídias dessa mesma esquerda fez questão de lembrar que o nazismo não atacou apenas os judeus, mas também os negros, os homossexuais, deficientes, etc. Não que isto não seja verdade, mas parece que para tentar sensibilizar a “opinião pública” (e a si mesma), essa esquerda precisa encontrar entre as vítimas do nazismo seu cardápio de identidades favoritas, sua “clientela”. Um famosa mídia alternativa em Florianópolis, antiga defensora da causa Palestina, não tardou em indicar livros que versavam sobre “outras vítimas” do nazismo, para além do Holocausto judeu, para, logo em seguida, publicar postagens sobre o “plano sionista mundial de transformar o povo judeu em única vítima do nazismo”. De forma literal, uma postagem diz, entre tantas coisas, o seguinte: “O antissemitismo é transformado em um limite moral que ninguém pode cruzar – Monark foi racista contra negros, mas ser contra judeus, aqueles que o Ocidente carrega a culpa, é linha vermelha que não se cruza. Logo, os sionistas de Israel são alçados a guardiões do liberalismo.” Etc. Além de se referir aos judeus como aparentemente “únicas vítimas da SUPOSTA maior barbárie da história ocidental” (grifei). Enfim, não sabendo a diferença entre antissemitismo e antissionismo, ou se escondendo nessa confusão, nosso articulista se vê amarrado ao “limite moral” que adoraria avançar e que, sem dúvida, o faz. Um pouco mais do fascismo pós-fascista atual…
João, se possível comente esta passagem abaixo, de Aníbal Quijano, em Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina:
Com Descartes o que sucede é a mutação da antiga abordagem dualista sobre o corpo e o não-corpo. O que era uma co-presença permanente de ambos os elementos em cada etapa do ser humano, em Descartes se converte numa radical separação entre razão/sujeito e corpo. A razão não é somente uma secularização da idéia de alma no sentido teológico, mas uma mutação numa nova id-entidade, a razão/sujeito, a única entidade capaz de conhecimento racional, em relação à qual o corpo é e não pode ser outra coisa além de objeto de conhecimento. Desse ponto de vista o ser humano é, por excelência, um ser dotado de razão, e esse dom se concebe como localizado exclusivamente na alma. Assim o corpo, por definição incapaz de raciocinar, não tem nada a ver com a razão/sujeito. Produzida essa separação radical entre razão/sujeito e corpo, as relações entre ambos devem ser vistas unicamente como relações entre a razão/sujeito humana e o corpo/natureza humana, ou entre espírito e natureza. Deste modo, na racionalidade eurocêntrica o corpo foi fixado como objeto de conhecimento, fora do entorno do sujeito/razão. Sem essa objetivização do corpo como natureza, de sua expulsão do âmbito do espírito, dificilmente teria sido possível tentar a teorização científica do problema da raça, como foi o caso do Conde de Gobineau (1853-1857) durante o século XIX. Dessa perspectiva eurocêntrica, certas raças são condenadas como inferiores por não serem sujeitos racionais. São objetos de estudo, corpo em conseqüência, mais próximos da natureza. Em certo sentido, isto os converte em domináveis e exploráveis.
Basta perguntar ao Quijano se os khipu ainda sobreviventes dão alguma pista sobre o Willaq Umu ou qualquer dos Willka Uma terem precisado fazer de Apu Kun Tiqsi Wiraqutra ou da “glândula pineal” a solução para o dualismo mente-corpo em Tawantinsuyu como fundamento para a mit’a ou para o qhapaq hucha. Sem isso, não saberemos como eram tratados os chimú, os chanca, os chincha, os hulla, os huanca, os canhari e outros, todos subjugados em um momento ou outro, cuja existência conhecemos somente pela arqueologia, por certos relatos orais tradicionais e pelo relato dos vencedores… incas. Aproveitando, diga ao Quijano que o dualismo de substâncias não é exclusividade cartesiana, tampouco reinou exclusivo sobre a filosofia dita “europeia”, e muito menos é produto exclusivamente “europeu”. Se puder, diga também a ele que Baruch Espinosa mandou lembranças.
Irado e Chaski,
Graças a alguns comentadores, como sucedeu agora com Irado, tenho oportunidade de vislumbrar textos que eu sempre fugi de ler, e confirmo assim como tive razão. É que ler é seleccionar o que se lê, e eu nunca teria conseguido ler tudo o que li se não tivesse deixado de ler tudo o que não li.
Na passagem citada por Irado, o método de raciocínio é a especulação. A matéria-prima do raciocínio é formada por autores reduzidos ao lugar-comum e retirados do contexto. O tecido do raciocínio é a selecção arbitrária de casos e fontes ao serviço de um preconceito. O objectivo do raciocínio não é descobrir o que ainda não se conhece, mas reafirmar um pressuposto.
Aquela imagem de Descartes é a servida no fast-food da filosofia, e em sentido contrário eu lembro-me de Jean-François Revel mostrando a íntima ligação de Descartes à teologia. Chaski recordou Spinoza, mas acerca da noção de razão e das verificações empíricas eu recordaria Ockham, tão anterior a Descartes. Por seu lado, Gobineau é também muito servido no fast-food, mas mencioná-lo sem ao mesmo tempo falar de Rousseau, por exemplo, é destruir o tecido da História, fazendo uma razia nas fontes que não correspondam aos preconceitos. Com efeito, a noção de bom selvagem — mas a expressão é muitíssimo mais eloquente em francês e inglês, o nobre selvagem — é precisamente anti-racista. O bom, ou nobre, selvagem não era exposto como uma vítima fácil e, pelo contrário, era apresentado como um modelo de tudo o que os civilizados haviam perdido.
Mas a minha crítica à noção de eurocentrismo não resulta de contrapor uns e outros autores. É muitíssimo mais ampla. Vou recordá-la aqui em traços gerais.
Até à transição do século XVIII para o século XIX, que marca o início do capitalismo, o continente europeu não esteve unificado numa cultura única, mas repartia-se em três áreas culturais, todas extravasando para fora desse continente. 1) Uma área mediterrânica, que incluía a cultura islâmica e, por aí, chegava até à Pérsia. Aliás, a génese e o desenvolvimento do pensamento científico no continente europeu teriam sido impossíveis sem a influência determinante do meio intelectual islâmico. Não foi com Descartes que nasceu a razão científica, com tudo o que ela exige, pois a dinâmica veio de outro lado, precisamente do sul do Mediterrânico e da Espanha árabe. 2) Uma área céltica, essencialmente atlântica, cuja mitologia tanta importância teria depois para o Romantismo e para as formas românticas da política. 3) E uma área ligada às grandes rotas comerciais pelo Báltico e pelo norte da Rússia. O regime senhorial submeteu a maior parte do continente europeu ao mesmo sistema económico, mas a tripla divisão cultural perdurou. Isto não significa, porém, que não existisse uma vastíssima rede de mitos e formas simbólicas comuns, como mostraram os historiadores das religiões, de Frazer em diante, uma rede que a antropologia expandiu depois a todo o mundo. Mas no sentido mais restrito das expressões culturais só com o capitalismo a Europa se tornou uma unidade. Ora, nesse mesmo processo o capitalismo tornou o mundo uma unidade cultural. Porém — e este é um facto determinante que os críticos do chamado eurocentrismo se esforçam por ignorar — a transformação do mundo numa unidade cultural operou-se em ambos os sentidos, e tanto se expandiram para o resto do mundo aspectos das culturas europeias como a unificação cultural da Europa absorveu influências das outras culturas. Analisei este duplo processo nomeadamente a respeito da arte, mas o mesmo se pode observar noutras áreas ideológicas.
E, já agora, porquê restringir o racismo à Europa? O universalismo é o único antídoto do racismo, e só a partir da integração de todo o mundo num único modo de produção ele se tornou possível. Chaski falou dos Incas, por meu lado eu lembro-me sempre dos Aztecas e das suas pirâmides de corações humanos. O bom selvagem era um mito desprovido de realidade histórica, e aliás é o que confere a essa noção o seu carácter de proclamação anti-racista.
Mas se quisermos estudar uma grande sociedade, com uma grande cultura, toda ela estruturada pelo racismo, então veja-se a Índia, não só a de agora, mas a Índia clássica. A base daquela cultura milenária foi a estratificação em castas, que não constituía uma simples hierarquia de profissões, mas era uma inviolável hierarquia de raças, cada uma com as suas características mentais, os brâmanes no topo, ilustres manejadores da razão, que neste racismo de castas produziram uma magnífica linguística.
Para terminar, não há historiografia possível que não tenha por base a História comparada, mas essa não se compadece com o simplismo. O grande perigo da História comparada é o de pôr em causa preconceitos e lugares-comuns. Historiador é uma profissão de risco.
João, fez muito bem em ter pulado essas leituras, sua única função é fundamentar a crítica aos absurdos que elas propõem. Isso porque tais ideologias têm penetração social, caso contrário bastaria ignorá-las. Só as estou fazendo por imposição de certas demandas institucionais/acadêmicas, mas aproveito estes momentos para aprimorar a crítica. Entre os autores do “cânone” decolonial, Descartes tem sido enxovalhado quase como um precursor de uma “ontologia raciológica”, sendo imputado ao seu pensamento os princípios filosóficos de uma hierarquização racial. O curioso é perceber que os mesmos autores são, de forma confessa ou não, admiradores de Nietzsche e Heidegger, figuras abertamente racistas e envolvidas com pautas reacionárias de seus respectivos momentos históricos. No entanto, ambos são definidos como figuras insurgentes contra o “racionalismo ocidentalocêntrico”.
Também é interessante observar que os decoloniais concordam contigo em olhar para o meio intelectual islâmico como crítica à noção de “eurocentrismo”. Mas, de forma oposta à sua, os mesmos o fazem para, ao denunciarem o “mito da modernidade eurocêntrica”, renegarem toda a filoosofia ocidental como sendo intrínseca aos processos históricos de dominação colonial. Descartes, Kant, Hegel, entre outros, são meros expoentes do “pensamento moderno-colonial-patriarcal-capitalista-racista-abissal ocidentalocêntrico”. Assim como Marx se resume à reação crítica dentro desse mesmo marco histórico-político-intelectual-cultural eurocêntrico que, portanto, não serve para as “lutas diaspórico-decoloniais”.
E, retomando um debate anterior aqui mesmo nesta sessão, outro autor fundante do decolonialismo, Aimé Césaire, é quem dá o fundamento para a “esquerda identitária” sobre a relativização do nazismo em relação ao colonialismo, conforme fica abertamente expresso nessa passagem de “Discurso sobre o colonialismo”, para quem “a Europa é indefensável”. Hitler surge como um “superego” do branco europeu , quase uma “justiça divina e cármica” que recai sobre a Europa colonialista:
“E então um belo dia, a burguesia despertada por um golpe formidável que lhe é devolvido: a GESTAPO age com afinco, as prisões se enchem, os torturadores inventam, sutilizam, discutem sobre os instrumentos de tortura. Nos assombramos, nos indignamos. Dizemos: “Que curioso! Porém, bah, é o nazismo, já passará!” E esperamos. Nos esperançamos; e calamos a nós a verdade, que é uma barbárie, porém uma barbárie suprema, a que coroa, a que resume a cotidianidade das barbáries; que é o nazismo, sim, porém, contudo antes de ser a vítima fomos seu cúmplice; que poiamos esse nazismo antes de padecê-lo, o absolvemos, fechamos os olhos diante dele, os legitimamos, porque até então só se havia aplicado aos povos não europeus; e este nazismo cultivamos; somos responsáveis por ele e ele brota, penetra, goteja, antes de engolir em suas águas avermelhadas a civilização ocidental e cristã por todas as fissuras desta. (…) o que não é perdoável em Hitler não é o crime em si, o crime contra o homem, não é a humilhação do homem em si, senão o crime contra o homem branco, é a humilhação do homem branco, e haver aplicado na Europa, procedimentos colonialistas que até agora só concerniam aos árabes da Argélia, aos coolies da Índia e aos negros da África. (…) Ao fim do capitalismo, desejoso de perpetuar-se, está Hitler. No final do Humanismo formal e da renúncia filosófica, está Hitler.”
Irado, leia Quijano junto com isso aqui: https://passapalavra.info/2017/03/111108/ . Compare o vocabulário, os temas, os conceitos, as figuras, os argumentos, os lugares comuns. Se quiser, volte aqui depois e diga o que achou.
Obrigado pela sugestão e pelas informações Chaski. De qualquer forma já li esse artigo que é muito bom por sinal, assim como já sou leitor de Jean-Pierre Faye e de seu filho Emmanuel Faye, entre tantos outros. Concordo com todas as semelhanças entre o Pós-Estruturalismo, o pós-colonoalismo e o fascismo e dou especial atenção para a grande influência de Heidegger em toda essa questão. Apenas gosto de instigar o debate sobre certas questões que vão aparecendo para mim. Grande abraço.
Chaski, vc recomenda alguma obra a respeito da História Inca? Mais precisamente sobre a dominação dos demais povos citados?
Obrigado
Edu, a construção de uma “História” do Tawantinsuyu, no sentido mais forte da expressão, tem muitas dificuldades, mas vai sendo feita. Em português, que me lembre, A civilização Inca, de Henri Favre, ainda é uma boa introdução ao assunto, e o capítulo 1 fala dos “precursores”, mas ainda é pouco frente ao que se tem descoberto recentemente (cf. aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui). Existe também, mais antigo, um livro publicado pela Time-Life que trata do assunto com aquela típica mentalidade exótica de “civilizações perdidas” de décadas atrás, cujo texto se pode desprezar sem prejuízo, mas cujas imagens se aproveita de bom grado.
Falei dos problemas da construção da “História” do do Tawantinsuyu, e do impacto que isso pode ter sobre certa epistemologia “decolonial”. São tantos os problemas que não saberia nem por onde começar.
Para não me estender muito, fico naquilo que seria a principal fonte para reconstruir relatos históricos (no sentido mais forte da expressão) do Tawantinsuyu: os khipu. Há muitos problemas em torno deles. Em primeiro lugar, não há consenso sobre o que os khipu registravam. Eram um sistema de contagem simples, como também entenderam os conquistadores espanhóis e mantém ainda hoje Marcia Ascher e Robert Ascher? Eram sistemas complexo de registro binário de dados fonológicos e logográficos, como quer o hoje aposentado antropólogo e arqueólogo Gary Urton, ou seu discípulo Manny Medrano? Registravam palavras, como têm demonstrado Frank Salomon e Sabine Hyland? E qual o sentido desse registro? Era estritamente genealógico, ou haveria alguma preocupação histórica mais ampla, como discute Catherine Julien?
Mistérios abundam, hipóteses pululam, porque os conquistadores espanhóis não somente destruíram a maioria dos khipu existentes, como também mataram (diretamente, ou como resultado das doenças que trouxeram da Europa em seus corpos) os khipu kamayuq que conheciam intimamente a linguagem dos nós. Além disso, estudo recente de Sabine Hyland demonstra como a linguagem dos khipu foi mantida em segredo pelos khipu kamayuq sobreviventes, porque assim poderiam comunicar-se em segredo sob as vistas dos espanhóis — o que ajudou na comunicação epistolar durante as rebeliões contra o governo espanhol no século XVIII, em especial durante a rebelião de Tupac Amaru II.
Para deixar ainda mais difícil a situação, o uso dos khipu foi duradouro o suficiente — discute-se, por exemplo, os achados de Ruth Shady no sítio arqueológico de Caral, que incluem o que pode ser o mais antigo khipu já encontrado, com datação de carbono indicando ter cerca de 5 mil anos — e espraiado o suficiente para gerar todo tipo de variedade linguística, complicando o trabalho dos arqueólogos e antropólogos que a eles dedicam suas carreiras.
Se ainda não entendeu o tamanho do problema, imagine um cenário apocalíptico em que esta nossa sociedade atual, com escrita baseada no alfabeto latino e em números indoarábicos, foi erradicada, e séculos depois alguém encontra as ruínas intactas de uma biblioteca, com muitos livros ainda relativamente conservados. Guardadas as devidas proporções, é esta a situação com os khipu.
Se os khipu, por todos esses desafios, ainda estão por decifrar, o que resta como fonte são relatos de conquistadores como Pedro Cieza de León (Crónica del Perú), Juan de Betanzos (Suma y narración de los Incas) e Pedro Sarmiento de Gamboa (Historia de los incas), relatos tradicionais recolhidos por jesuítas — como Martin de Murúa (Historia General del Perú), o italiano Giovanni Anello Oliva (Historia del reino y provincias del Perú) e o mestizo Blas Valera, autor da famosa (e hoje perdida, restando só fragmentos) Historia Occidentalis — ou obras de mestizos como os Comentarios Reales de los Incas de Garcilaso de la Vega (volume 1 e volume 2), ele mesmo descendente matrilinear de Tupaq Wallpa e Tupaq Yupanki. Apesar de bastante precisos em suas descrições das instituições sociais e políticas incaicas, estes relatos foram escritos entre os séculos XVI e XVII, portanto depois da derrota e conquista dos incas pelos espanhóis. Basearam-se ora no “olhar estrangeiro” de conquistadores que não viam nos incas seus iguais, ora nos registros de khipu kamayuq e amawt’a já idosos, que por sua vez apresentavam relatos baseados em sua alta posição na hierarquia social do Tawantinsuyu.
Historiadores, antropólogos e arqueólogos do presente recebem estes relatos côncios de seus vieses, e tentam reconstruir o que podem com base em pesquisas arqueológicas mais recentes; na persistência de certos hábitos entre os muitos povos indígenas que vivem hoje no que um dia foi o Tawantinsuyu onde viveram seus antepassados; entre outras fontes.
Agora, imagine: se a dificuldade para reconstruir o Tawantinsuyu enquanto objeto histórico é assim tamanha, que dirá reconstruir a história dos povos subjugados pelos inca, ou mesmo da sucessão de impérios que precederam aos inca ou foram por eles conquistados (chimús, wari, chachapoyas, tiwanakus, chancas, etc.). Para aumentar as dificuldades, não esqueça que houve nos Andes outros povos e entidades políticas ainda mais antigos, tão antigos que nem a tradição oral local lhes dá nomes, e que arqueólogos vão distinguindo e nomeando com base nos sítios arqueológicos onde vão sendo encontrados resquícios e ruínas de sua cultura material (Caral-Supe, Valdivia, Jisk’a Iru Muqu, Kotosh, Huaca Prieta, Chavín, etc.).
Quando apresentei esta história como contraponto crítico ao “decolonialismo” do Quijano, foi porque a epistemologia dele toma como problema o que vem da conquista espanhola para a frente. Este ponto de vista tem um problema gigantesco: para ficar somente no caso inca, Quijano não tem como avaliar as conquistas inca, e portanto o papel dos inca como opressores de outros povos, porque não há, ao menos por enquanto, fontes históricas facilmente disponíveis sobre o assunto. O que existe é muito especializado, restrito a certas publicações acadêmicas, e ainda não tem repercussão generalizada.
Veja-se uma conjectura possível neste sentido: a colonização espanhola durou cerca de trezentos anos, e o Tawantinsuyu durou mais ou menos cento e trinta anos (c. 1438 — 1572), mas (para ficar em dois casos) os reinos aymara submetidos ao Tawantinsuyu terão sido fundados (estima-se) no século XII, e o império chimú também sujeitado ao Tawantinsuyu terá sido fundado (estima-se) no século X. Desde sua provável fundação no século XIII até a expansão do século XV, Qusqu era um reino como outros na região, mas os espanhóis encontraram no século XVI o Tawantinsuyu já formado como a terra dos “súditos do inka“, ou seja, dos súditos do rei de Qusqu. Seria possível conjecturar, como fez Alberto da Costa e Silva quanto ao predomínio dos iorubá sobre outras nações de escravizados no Brasil, um “imperialismo inca” sobre esses outros povos? Ou seja, um período de predomínio cusquenho sobre dezenas de outros povos, predomínio já em esgarçamento pelas próprias contradições quando da chegada dos conquistadores espanhóis? Quanto “epistemocídio” terá havido no processo cusquenho de conquista, quando yachakuq runa eram trazidos de todas as ayllu para serem educados pelos amawt’a nas yachaywasi de Qusqu dos 13 aos 19 anos, onde aprendiam a religião, a história, as normas morais e as formas de governo impostas pelos cusquenhos — além, é claro, da arte do khipu? Claro, a conquista espanhola foi indiscriminadamente arrasadora, a combinação de guerra, doença e encomienda não respeitou nada nem ninguém — mas o que sabemos do que fizeram os cusquenhos quando em posição semelhante? Por enquanto, muito pouco.
Outra conjectura possível: vejo nas crônicas e relatos que certos povos “aceitaram de bom grado” alianças com os inca. Quando relembro que é hoje aceito que os ayllu são pré-incaicos, e que os responsáveis por “aceitar de bom grado” essas alianças eram os kuraka que as encabeçavam, tudo isso me faz virar logo os olhos para a História da guerra do Peloponeso de Tucídides, para os kyrios de várias oikoi reunidos na agorá de suas respectivas poleis para fazer e desfazer alianças que mudavam ao sabor dos acontecimentos, e relembro que era tudo uma política de eleútheros sobre as quais douloi e epikleroi, por exemplo, tinham influência zero. Terá sido também assim no Tawantinsuyu? Terá sido essa, também, a relação entre o Tawantinsuyu e seus vizinhos? A guerra entre Waskar e Atawallpa permite conjecturar neste sentido, mas História se faz confirmando conjecturas com fatos, e sem fatos conjecturas não passam de hipóteses. Além disso, se esta guerra permite conjecturar sobre conflitos internos à camada social superior do Tawantinsuyu, não dá pista alguma sobre conflitos entre camadas sociais de status diferentes. Terão existido? Se existiram, como ocorreram? Outra conjectura na mesma linha, que arqueólogos e antropólogos influenciados por Pierre Clastres têm levado muito a sério: e se as múltiplas instituições criadas por certos povos indígenas para evitar a centralização política não tiverem como base algum temor abstrato pela centralização, mas a experiência histórica do contato com o Tawantinsuyu e outras entidades políticas centralizadoras nos Andes e na Amazônia?
São, todas, conjecturas plausíveis, aliás já em investigação. Nenhuma idealiza, romantiza, toma em bloco um passado complexo e de difícil abordagem, para contrapô-lo aos problemas do presente. Vão bem ao contrário do caminho indicado por Quijano. O que se faz neste campo, aliás, é usar todas as ferramentas mentais, técnicas e instrumentais de que dispõe hoje a ciẽncia mais “cartesiana” para reconstruir, vagarosa e pacientemente, os caminhos desta História, e assim colocar a colonização espanhola em seu verdadeiro lugar e dimensão.
Caro João Bernardo,
Recentemente, uma professora doutora em História Cultural disse as seguintes palavras:
«[…] entende-se por cotas epistémicas acções de equidade a fim de promover a valorização e a legitimação de diferentes e variadas formas de saber, conhecer, entender e explicar o mundo. Então, tanto o conceito de eurocentrismo quanto de racismo epistémico, são reconhecidos e estão presentes institucionalmente nas políticas da [universidade]». Ela proferiu essas palavras com o intuito de refutar um sujeito que questionou o conceito de eurocentrismo.
É curioso pensar que, em seu argumento, a doutora utiliza-se do facto dum conceito ser reconhecido e institucionalizado para validá-lo e considerá-lo adequado historicamente. E, ainda, para embasar seu argumento, utilizou-se da tese de Aparecida Sueli Carneiro chamada «A construção do outro como não-ser como fundamento do ser». Que disponibilizo aqui: https://negrasoulblog.files.wordpress.com/2016/04/a-construc3a7c3a3o-do-outro-como-nc3a3o-ser-como-fundamento-do-ser-sueli-carneiro-tese1.pdf
Ela citou mais especificamente o capítulo 3, intitulado «Do epistemicídio». Neste capítulo, Carneiro afirma: «É importante lembrar que o conceito de epistemicídio, utilizado aqui, não é por nós extraído do aparato teórico de Michel Foucault. Fomos buscá-lo no pensamento de Boaventura Sousa Santos». Sim, o mesmo Boaventura que recentemente foi afastado dos cargos institucionais da universidade de Coimbra devido às denúncias de assédio. Curioso como os identitários e pós-modernos têm reagido em relação ao caso. E continua ela: «É o conceito de epistemicídio que decorre, na abordagem deste autor sobre o modus operandi do empreendimento colonial, da visão civilizatória que o informou, e que alcançará a sua formulação plena no racialismo do século XIX».
«Como já referido brevemente ao descrever a violência inerente ao processo colonial, Sousa Santos desvenda dois de seus elementos fundamentais: o genocídio e o epistemicídio. Para Sousa Santos, “o genocídio que pontuou tantas vezes a expansão européia foi também um epistemicídio: eliminaram-se povos estranhos porque tinham formas de conhecimento estranho”». Depois, ela vai buscar sustentar a tese de que tanto Kant como Hegel eram racistas e epistemicidas.
Bom, João, gostaria que tu comentasses a respeito dessas palavras expostas pela doutora em História Cultural e das escritas por Sueli Carneiro e Sousa Santos. Também gostaria que comentasses a respeito do conceito de «epistemicídio» e da lógica que normalmente é utilizada pelos académicos para tratar do assunto, que segue a seguinte direcção: eurocêntrico → epistemicida → racista → genocida.
Saudações!
“Eu não sou humano, sou quilombola”. “A luta de classes é a luta do trabalhador contra o patrão. O quilombola e o indígena não são uma coisa nem outra, ficamos de fora. Essa é uma luta cristã. Tanto Jesus quanto Karl Marx concordam que o trabalho é a base de tudo”. Antônio Bispo dos Santos.
Atualizando o debate, eis a resposta ao Universalismo que vem sendo festejada pela “esquerda”…
Dante, o problema parece ser que o epistemicidio se aplica a contextos não morticídas para os acadêmicos de plantão. Me chama atenção que nenhum deles lembra do caso do chá de Madagascar que era uma alternativa cultural às vacinas contra a covid-19. Afinal, como pode o universalismo ditar pautas comuns que dizem respeito à sobrevivência de uma humanidade inteira?
Não entendo o que diz Sueli sobre “cotas epistêmicas”, mas me parece algo similar ao “lugar de fala” de Djamila Ribeiro. Aliás, esta última se baseou na tese do epistemicidio para colocar sua teoria de lugar de fala. Uma aposta que eu faço, enquanto trabalhador de uma escola de elite, é que a perspectiva ideológica da Djamila é muito mais confortável no currículo escolar porque aplica a lógica da ideologia no interior das empresas capitalistas e não ameaça a existência das elites, só funciona a partir de uma remodelação das mesmas. A premissa do epistemicidio em Djamila e Boaventura remetem ao decolonialismo, a ideia de que tudo que vem da Europa e do norte global é ruim, mesmo se for o caso de teorias anticapitalistas nos moldes modernos (anarquismo e marxismo). O que essa ideia de “povos tradicionais” remete é ao seu oposto, representado pelo colonialismo que seriam os “povos não-tradicionais”, isto é, que constituem sua cultura historicamente. Quando a globalidade dos povos subalternos propõem um novo modo de vida isso isso leva à obscolência de formações sociais antigas. Mas os decoloniais parecem mais inspirados em conservar estas formações anteriores. Pouco importa que os subalternos pautem-se por questões humanitárias, que não dizem respeito à sua tradição, mas à sua existência no mundo globalizado. O problema é que tais pautas põem em cheque os departamentos de pesquisa decoloniais, pois seu objeto de pesquisa vê-se como agente de mudança, e não estrutura passiva de pensamento.
Dante e Aníbal,
Se é certo que toda a estética tem uma versão kitsch, agora na estética — ou inestética — do discurso universitário o kitsch prolifera. O conceito de epistemicídio merece figurar na frente da galeria. Que palavra!
As questões que me colocaram são certamente retóricas, porque a minha opinião já está claramente expressa no texto. Sublinho agora duas coisas.
Antes de mais, eu sou um historiador pedestre, que constrói os alicerces sobre o empírico. Começo por estabelecer factos e ponho-os a par de outros factos, numa teia de comparações. Em seguida, procuro agrupar esses factos em variantes. Só depois de conceber as variantes é que, mediante o estudo comparativo, tento definir um modelo e leis gerais. Em sentido oposto, a coorte de autores que vocês evocam parte de um conceito, retirado da gaveta do politicamente correcto, e depois polvilha esse conceito com referências a alguns factos, bem ou mal delimitados. Essa gente não parte dos factos para estabelecer modelos gerais, mas parte da invenção de conceitos para deduzir factos. Inevitavelmente, fazer história por dedução dá maus resultados.
Sugiro-vos uma experiência. Apliquem o conceito de epistemicídio ao interior do paraíso do Sul Global. O que foram e como se fizeram ali as grandes civilizações? Pensem nos mongóis por exemplo, na colossal área civilizacional que aquela cavalaria nómada fundou, abram qualquer atlas histórico e vejam. Mais modestamente, na África pré-colonial, como se implantavam e expandiam as áreas de poder, com as novas civilizações que promoviam, cada uma com a sua própria abordagem da realidade, a sua mitologia, a sua língua, incluindo os critérios lógicos que a estruturavam — quantas outras mitologias e línguas elas arrasaram? Que epistemicídios! E não fiquemos por aqui, passemos à América pré-colombiana e à formação das grandes áreas civilizacionais. Os Aztecas, esses então, fizeram um epistemicídio pela raiz.
Epistemicídio e fundação de novas civilizações são sinónimos. Mas os departamentos de estudos sociais infantilizaram-se definitivamente, as suas produções teóricas estão ao nível das histórias de embalar crianças, os Bons e os Maus, o papão e os fantasmas, e a capuchinho vermelho que por um triz se livrou de ser epistemicidada.
Irado,
É lamentável que essa esquerda identitária não leia os fascistas, porque pouparia trabalho, veria aquilo que é. Um operário fascista diria o mesmo que essa pessoa que você cita. Partindo do conceito de nação proletária, que foi o conceito gerador de todo o fascismo, o operário mussoliniano dizia que não era operário, mas italiano; o salazarista, que não era operário, mas português; o hitleriano que não era operário, mas membro da raça ariana ou nórdica, e o mesmo para todos eles. Esses movimentos identitários são o fascismo surgido agora de novo no campo da esquerda.
https://www.instagram.com/reel/Ct5B_umL7xA/?igshid=MjAxZDBhZDhlNA==
Imperdível…
Mais um discurso de Antônio Bispo dos Santos, agora direto da USP, o “ninho do colonialismo”, a convite da própria “esquerda” uspiana…
https://www.instagram.com/reel/Cw7zU11uqPv/?igshid=YTUzYTFiZDMwYg==
Irado, na descrição do vídeo que você mandou lê-se: “[Antônio Bispo dos Santos] destaca-se por sua atuação política e militância, que estão fortemente relacionadas à sua formação quilombola, evidenciada por uma cosmovisão a partir da qual os povos constroem, em defesa de seus territórios tradicionais, símbolos, significações e modos de vida.”
Curioso que alguma esquerda se sinta à vontade para fazer aliança ou dar espaço para aqueles que defendem as “tradições” e os “modos de vida” dos povos! Sugiro mais alguns aliados a esta esquerda defensora das tradições, a saber:
Estes defensores das tradições e modo de vida italianos http://www.forzanuova.eu
Estes também, pois defendem uma certa tradição muçulmana: https://en.wikipedia.org/wiki/Taliban
E por que não estes aqui também, legítimos defensores das tradições alemãs: https://en.wikipedia.org/wiki/Alternative_for_Germany
Viva o multiculturalismo!
Antonio de Odilon Brito, ótimos exemplos. Quanto à descrição que você destacou, deve-se prestar atenção a um termo chave: COSMOVISÃO. Esta noção é apresentada como um conceito antropológico ultrarrelativista que se contrapõe à “racionalidade ocidental”, à “ciência eurocentrada”, ao “universalismo epistemicida”, entre outras expressões do irracionalismo identitário com que a agenda dessa “esquerda” fascistizada se constituiu. Trata-se de uma noção de “cultura” no sentido spengleriano, mais do que étnico, com conotações raciais. Sinônimos de cosmovisão que têm sido utilizados nessa perspectiva são “cosmologia” e “ontologia”. Toda vez que estes setores sociais lançam mão destes termos, estamos diante do pensamento requentado dos “revolucionários-conservadores” do início do século XX, exatamente naqueles aspectos mais apropriados pelos nazistas.