Por Leo Vinicius

Apesar do título, o leitor pode ler este artigo mais como um resumo dos apontamentos e conclusões do fundamental artigo de Aaron Benanav, «Automation and the Future of Work»[1], publicado em duas partes na New Left Review em 2019. Bastante consistente em termos de dados e de lógica, Benanav também desenha um esboço do que poderia ser um futuro pós-escassez, o qual deixamos de lado nesse resumo. Mas é importante frisar a clareza do autor de que qualquer saída da situação que nos encontramos só será possível através da luta de movimentos de massa. A análise de Aaron Benanav é tão mais pertinente quanto raros são autores de esquerda que, como ele, fazem uma análise da economia globalmente. Num capitalismo transnacional, qualquer análise restrita a nações corre o risco de esconder mais do que mostrar.

Segundo os dados e o raciocínio que Benanav nos apresenta, vivemos um contexto global nas últimas décadas de baixa demanda de trabalho, tendo entre suas consequências a redução da fatia da renda do trabalho na renda total e a redução do poder de barganha da classe trabalhadora. O impacto dessa baixa demanda de trabalho seria maior hoje do que em outros períodos históricos, uma vez que uma proporção maior da população depende hoje da venda da sua força de trabalho para sobreviver [2].

Aaron Benanav procura nos mostrar que essa baixa demanda por trabalho é decorrente de uma estagnação econômica, que tem se aprofundado. Essa estagnação ocorre concomitantemente à desindustrialização em nível global, atingindo todos os países, embora tenha se iniciado nos países de alta renda. Nesses, o declínio do emprego industrial – manufatureiro – ocorreu ao mesmo tempo que essa produção industrial aumentava em números absolutos, fato que exclui assim a explicação de que a produção industrial teria se deslocado para outros países. O que ocorreu foi um crescimento maior da produtividade no período, em comparação com o crescimento da produção industrial. O ponto que Benanav frisa é que essa diferença não se deveu a um aumento da produtividade propriamente dito, mas ao baixo crescimento da produção (output). Essa diferença entre o crescimento da produtividade e o crescimento da produção industrial é que explicaria, segundo ele, a baixa demanda por trabalho crônica que enfrentamos.

Essa padrão ocorreu em todos os países, sendo a China uma exceção parcial, como ele procura mostrar. Embora tenha se reindustrializado a partir dos anos 2000, na década de 2010 teve início um processo de desindustrialização também nesse país asiático. Esse contexto explicaria, pelo menos em parte, que na última década um perfil de força de trabalho, que anteriormente se empregaria na indústria e a na construção civil, tem formado o contingente de entregadores de aplicativos nos centros urbanos chineses [3].

Aaron Benanav indica que a origem dessa onda global de desindustrialização está na superprodução industrial instalada. É essa superprodução instalada e as baixas taxas de juros mundiais que Nick Srnicek, por sua vez, aponta como fatores do investimento do capital acumulado em empresas de plataformas digitais, com vistas a um retorno mesmo que de alto risco [4]. Empresas que, como ele também bem aponta, se beneficiam da estagnação relativa do crescimento econômico global e do alto desemprego resultante. Srnicek ainda procura mostrar que essas empresas acabam exacerbando essa própria estagnação econômica ao aumentar a competição por fatias de mercado, sem melhorar a produtividade ou criar novos mercados.

Uma consequência da superprodução industrial instalada é a tendência de queda dos preço dos produtos manufaturados e o aumento da competição por fatias de um mercado restrito, em relação a essa produção instalada. Isso tende à busca de um aumento de produtividade – para ampliar a capacidade competitiva – acima do crescimento da produção e do mercado. Por isso foram os países com maior nível de robotização que tiveram os menores níveis de desindustrialização. Assim, ao contrário do que se imagina, esse nível de automação ajudou a manter e até gerar empregos nesses países. Alemanha, Japão e Coreia do Sul possuem alguns dos maiores índices de robotização e possuem os maiores superávits de balanças comerciais[5].

Países como o Brasil perderam mercado de bens manufaturados para a China, que expandiu sua fatia no mercado não apenas através da robotização, mas por meio de baixos salários e alto investimento em infraestrutura. Com o aumento salarial na China, sua corrida agora é para ampliar a robotização, de modo a manter ou aumentar sua fatia no mercado [6].

O fato é que nenhum setor substituiu a indústria como motor do dinamismo econômico, e a estagnação relativa da produção industrial tem implicado na estagnação relativa da economia como um todo, e na baixa demanda por trabalho. Se a industrialização historicamente significou a movimentação da força de trabalho de atividades de baixa produtividade para atividades de alta produtividade, com a consequente possibilidade de aumento da renda e de melhoria de condições de vida, Benanav destaca que vivemos agora o caminho inverso, com a força de trabalho se deslocando cada vez mais para atividades de baixa produtividade no setor de serviços.

Se os países chamados do Sul Global, do Terceiro Mundo, periféricos ou como se queira chamar, sofreram particularmente por terem ficado com parte irrisória do mercado global de bens manufaturados e, portanto, com menor demanda por trabalho, a situação para esses países se tornou ainda pior porque essa dinâmica de desindustrialização e estagnação econômica global ocorreu num período de rápido aumento da população economicamente ativa, devido às características de suas pirâmides demográficas [7]. Numa época em que mais pessoas eram lançadas no mercado de trabalho, a demanda por trabalho se tornou cronicamente baixa.

O fato de hoje em dia, diferentemente de outros períodos históricos com baixo crescimento econômico e demanda por trabalho, apenas uma pequena parte da população produzir ou ter acesso aos meios de subsistência, faz com que um enorme contingente de pessoas dependam da venda da sua força de trabalho para sobreviver. Nesse contexto de estagnação e baixa demanda por trabalho, essa dependência resulta em precariedade. A relação entre dependência e precariedade tem sido exposta por pesquisadores que investigam os chamados trabalhadores de aplicativos [8]. Esse par dependência-precariedade parece desse modo ser um paradigma da condição do trabalhador nesse contexto de estagnação, desindustrialização e baixa demanda por trabalho global. Talvez entre os trabalhadores de aplicativos essa relação se torne mais visível.

O contexto econômico global que Aaron Benanav apresenta, e que resumimos aqui, não leva a um desemprego em massa, mas sim ao subemprego em massa. O subemprego em massa é o que explica que pela primeira vez em 150 anos o pleno emprego técnico no Reino Unido e nos Estados Unidos não levou a aumentos salariais [9]. É provável que não tenha ocorrido melhoria das condições de trabalho da mesma forma. Em tal contexto histórico em que os aumentos salariais parecem bloqueados por esse fenômeno, e em que toda a força de trabalho ganha tendencialmente estatuto de exército industrial de reserva [10], parece fazer sentido que o valor do salário mínimo se torne a questão mais importante para os trabalhadores, uma vez que seria a única forma de ter um aumento num mercado com baixa demanda por trabalho [11].

Benanav salienta que rumamos para um futuro que não é “sem trabalho”, mas sim “sem bons trabalhos”. Como ele aponta, 60% dos trabalhos gerados nos países da OCDE nas décadas de 1990 e 2000 foram de chamados arranjos atípicos de trabalho, enquanto que nos países periféricos 70% dos trabalhos eram considerados informais em 2016. É nesse contexto que faz sentido se falar de precariado para caracterizar uma nova composição da classe trabalhadora [12].

Alguns criticam o conceito de precariado ou de precarização do trabalho quando aplicado ou transposto aos países periféricos. Como aqui grande parte da força de trabalho sempre esteve fora do emprego formal e de suas garantias, os críticos desses conceitos apontam sua falta de pertinência local, sendo assim tachados de conceitos importados de outras realidades e histórias. No entanto, o contexto e tendência global que Benanav nos mostra parece apontar para a não pertinência dessas críticas. Na medida em que a ideia de precariado se reporta a uma tendência de generalização de relações e condições de trabalho nesse contexto histórico de subemprego em massa, ele não se confunde com uma massa que simplesmente não foi incorporada às relações de trabalho típicas do fordismo. O precariado é aquele que se vira em trabalhos informais, com renda insegura, intermitentes, mas é mais que isso. Ele não se constitui simplesmente daqueles que estão na viração, mas daqueles que estão numa viração que passa a ser incorporada ao próprio empreendimento capitalista e organizada por ele. O precariado é o sujeito produtivo quando a viração é subsumida realmente no capital [13]; quando os arranjos atípicos de trabalho do fordismo se tornam a tendência e o padrão.

O subemprego em massa é o nosso presente e nosso horizonte de curto prazo, implicando uma tendência de, na melhor das hipóteses, não aumento da renda do trabalho. Mas, além disso, há uma tendência de rebaixamento da renda do trabalho própria do setor de serviços onde esse subemprego se concentra.

Como a taxa de aumento da produtividade é menor no setor de serviços, o custo dos serviços em relação aos bens tende a aumentar com o tempo. Assim, o aumento da demanda de serviços acaba dependendo do aumento de renda da população ou da diminuição do custo do serviço por outras vias, como a redução da renda do prestador de serviço [14]. Num período de estagnação econômica, a expansão do setor de serviços tende a ocorrer então com base na redução da renda desses trabalhadores e de suas condições de trabalho. A tendência que enfrentamos é a de massas de trabalhadores só conseguirem trabalho à medida que não haja aumento de seus salários ou rendas em relação a uma taxa média de aumento, o que amplia a desigualdade [15].

Uma grande questão, como Aaron Benanav ressalta muito pertinentemente, é que “os movimentos da classe trabalhadora emergiram durante um longo período de industrialização, e agora vivemos no marasmo pós-industrial” e as lutas que viveremos serão relacionadas “às consequências do fim da industrialização” [16]. Se as consequências do fim da industrialização se relacionam a certas tendências de renda e salário num contexto de subemprego em massa, estejamos atentos aos significados de pautas como o aumento das taxas entre entregadores de aplicativos. Elas podem significar algo diferente e além de uma mera continuidade da luta histórica dos trabalhadores por melhores salários.

Notas

1. A duas partes do artigo podem ser baixadas aqui: https://cominsitu.wordpress.com/2019/12/16/automation-and-the-future-of-work-benanav-2019/
2. Essa dependência da venda da força de trabalho, ou da forma-emprego, significa, nos termos de Ivan Illich uma redução da autonomia e uma dependência de “produtos industriais”. Sendo nesse caso o próprio trabalho esse produto industrial a que cada vez mais pessoas, destituídas das suas formas de vida relativamente autônomas, têm que recorrer para sobrevivência. Usando o conceito de monopólio radical de Illich , podemos dizer que esse trabalho subordinado se constitui um monopólio radical, uma vez que se torna imperativo recorrer a ele para sobreviver. Sobre o conceito de monopólio radical, ver o livro A Convivencialidade, de Ivan Illich, ou o texto Energia e Equidade no livro Apocalipse Motorizado, organizado por Ned Ludd.
3. Ver JIALIN, Zhang. The Fast and Frustrating Lives of China’s Food Delivery Drivers. Sixth Tone, july 25, 2019. Disponível em: https://www.sixthtone.com/news/1004343/the-fast-and-frustrating-lives-of-chinas-food-delivery-drivers
4. SRNICEK, Nick. Platform Capitalism. Cambridge: Polity Press, 2017.
5. Ver o artigo de Aaron Benanav, Automation and the Future of Work: https://cominsitu.wordpress.com/2019/12/16/automation-and-the-future-of-work-benanav-2019/
6. idem.
7. idem.
8. Ver, por exemplo: Schor, J.B., Attwood-Charles, W., Cansoy, M. et al. Dependence and precarity in the platform economy. Theor Soc (2020). https://doi.org/10.1007/s11186-020-09408-y
9. Ver Edwards, Jim. The ‘supply-and-demand model of labor markets is fundamentally broken,’ and that’s why you’re not getting a pay raise anytime soon. Business Insider, jne 18, 2018. Disponível em: https://www.businessinsider.com/supply-and-demand-model-of-labour-markets-is-fundamentally-broken-2018-6?r=UK.
10. Paolo Virno buscava mostrar já há cerca de vinte anos que no pós-fordismo toda a força de trabalho, incluindo as mais “garantidas” em termos de estabilidade e direitos, viveriam permanentemente a condição de exército industrial de reserva na concepção marxiana. Todos se enquadrariam nos conceitos de Marx de superpopulação flutuante, latente ou estagnada. Ver: VIRNO, Paolo. Virtuosismo y revolución: la acción política en la era del desencanto. Madrid: Traficante de Sueños, 2003.
11. Ver Edwards, Jim. op. cit.
12. Ver por exemplo: STANDING, Guy. O Precariado: a nova classe perigosa. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
13. Sobre a subsunção real da viração, ver ABÍLIO, Ludmila C. Uberização: a subsunção real da viração. Em: https://passapalavra.info/2017/02/110685/
14. Ver o artigo de Aaron Benanav, Automation and the Future of Work: https://cominsitu.wordpress.com/2019/12/16/automation-and-the-future-of-work-benanav-2019/
15. idem.
16. idem, p. 144 da segunda parte do artigo.

Este artigo está ilustrado com obras de Pedro Cabrita Reis (1956-      ).

4 COMENTÁRIOS

  1. Leo,

    Discordo da perspectiva exposta nesta resenha, emanada de um tipo de marxismo esclerosado e apegada ao modelo da década de 1950. Muito sinteticamente, a minha crítica incide nos aspectos seguintes:

    a) A classe trabalhadora é considerada a-historicamente, sem ser analisada a sua formação, que decorre das transformações operadas no ensino de massas, na indústria cultural de massas, nos meios de comunicação, incluindo a internet e as redes sociais, e na urbanização.

    b) A tradicional divisão agricultura / indústria / serviços está obsoleta. Por um lado, a produção agrícola passou a realizar-se com a intervenção de máquinas, convertendo-se numa agro-indústria. Por outro lado, o desenvolvimento da electrónica e dos computadores, e a fusão entre os computadores e as máquinas, fizeram com que a categoria serviços deixasse de ser útil para a análise. Basta pensar no fabrico 3D. Assim, temos uma fusão da computorização tanto com a produção industrial como com a agro-indústria. Vivemos num mundo em que os sistemas produtivos estão unificados.

    c) É precisamente a introdução da electrónica e dos computadores nos processos de cultivo e de fabrico que faz com que a produtividade aumente exponencialmente no mundo actual. Não vivemos numa época de estagnação, mas de crescimento acelerado. Claro que, como sempre no capitalismo, o crescimento é desigual e as sociedades e os países que melhor se adaptavam a uma dada fase são os que pior se adaptam à fase seguinte (pelos mesmos motivos que Darwin estabeleceu para a evolução dos organismos). Assim, as geoeconomias reorganizam-se, e hoje a China progride enquanto os Estados Unidos estagnam.

    d) O velho tipo de disciplina operária, que continua a prevalecer no imaginário da esquerda, relaciona-se com a época fordista. Foi a transição para o toyotismo, com o correspondente uso da electrónica, que fez com que as economias de escala deixassem de depender da concentração física dos trabalhadores nos mesmos espaços, típica do fordismo. (Diz-se fordismo porque é mais fácil de pronunciar, mas, respeitando a realidade histórica, devia dizer-se generalmotorismo, porque as grandes inovações deveram-se à General Motors; em primeiro lugar, por ser uma companhia por acções, gerida por gestores, e não uma empresa de tipo familiar e, em segundo lugar, por adequar a cadeia produtiva às preferências expressas pelos consumidores, em vez de querer impor ao mercado automóvel uma única cor, o preto, como pretendeu Henry Ford.)

    e) O mundo da separação dos três sectores (agricultura / indústria / serviços) e da disciplina operária assegurada, do lado dos patrões, pela concentração dos trabalhadores nos mesmos espaços físicos e, do lado dos operários, pelos sindicatos, esse mundo terminou com as lutas da década de 1960, ou melhor, terminou com a forma como os capitalistas conseguiram aproveitar a derrota dessas lutas. É todo este background que falta à perspectiva de análise usada no artigo.

  2. Só há duas perspectivas fundamentais, mutuamente antagônicas e inconciliáveis, a dos intelectuais orgânicos do capital e a dos (futuríveis?) revolucionários proletários. O resto é verborragia sedizente análise política – v.g., a oximorosa cidadania governante.
    Parafraseando Sartre: o que importa não é o que o capital faz com o proletário, mas o que faz o proletário com o que foi feito dele pelo capital. Sobretudo, quando não o faz de maneira imediata e reativa ao fazer capitalista; ou seja: quando o que faz expressa positivamente sua autonegação crítico-prática, como autonomia proletária.

  3. João Bernardo,

    Como todo resumo, ele é um recorte. Na parte dois o artigo do Aaron Benanav ele discorre em alguns parágrafos sobre a industrialização da agricultura. Pelo menos quanto a isso ele não faz uma separação dessa forma entre agricultura e indústria. A separação é analítica e um pouco mais refinada.
    Sobre as questões de crescimento de produtividade e crescimento da produção, com a relação entre elas sendo explicativa de uma baixa demanda por trabalho (tese central dele nesse artigo), ele se baseia em dados que não reproduzi aqui nesse resumo. É o que posso dizer em favor dele.

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