Por João Bernardo
Um leitor do Passa Palavra pediu que o site reeditasse o meu livro Lutas Sociais na China, publicado no Porto e em Lisboa pela Contra a Corrente, em Junho de 1976.
A livraria e editora Contra a Corrente foi criada pelo grupo do jornal Combate no Porto, e posteriormente o grupo de Lisboa abriu também uma livraria com o mesmo nome, sendo as edições conjuntas. A colecção completa do Combate, criado em Junho de 1974 e cujo último número foi publicado em Fevereiro de 1978, encontra-se na internet aqui e o site Vosstanie procedeu a uma reedição fac-símile em papel, como se vê aqui. Acerca do jornal Combate podem ler-se dois textos introdutórios redigidos por alguns dos antigos membros aqui e aqui. Podem consultar-se também as dissertações de mestrado de Lúcia Bruno, Portugal: O “Combate” pela Autonomia Operária (PUC-SP, 1983), de Danúbia Mendes Abadia aqui e de Tales dos Santos Pinto aqui. E sobre a editora Contra a Corrente, no contexto do movimento editorial português, pode consultar-se a tese de doutoramento de Flamarion Maués aqui, depois editada em livro (Livros que Tomam Partido. Edição e Revolução em Portugal, 1968-1980, Lisboa: Parsifal, 2019).
O livro Lutas Sociais na China foi traduzido para espanhol (Lucha de Clases en China, 1949-1976, Bilbao: Zero, 1977), podendo consultar-se aqui. O livro foi também traduzido para inglês em 1978 por Phil Meyler, Social Struggles in China, aqui. A partir da tradução inglesa, o grupo Minus, de Hong Kong (ver aqui), procedeu a uma tradução para o chinês, sendo o livro publicado em Hong Kong e alguns exemplares introduzidos na China — não sei quantos nem com que resultado.
Esta reedição do Lutas Sociais na China segue sem alterações a primeira edição, excepto a correcção de lapsos ou outros erros na ortografia de certas palavras.
Além disso, hoje é correntemente usado o sistema Pinyin nas transcrições do chinês (mandarim) para o alfabeto latino. Neste livro eu empreguei o sistema Wade-Giles, que era, aliás, o mais divulgado na época em que escrevi e que continuo a preferir. No entanto, para facilidade do leitor, na primeira referência que ocorrer para cada nome colocarei entre parênteses rectos a forma transcrita em Pinyin.
O livro será aqui publicado em cinco partes sucessivas. Primeiro, tratarei de alguns aspectos gerais do capitalismo de Estado e do maoismo. Em seguida, analisarei aspectos gerais das lutas sociais na China e a Revolução Cultural. Em terceiro lugar, abordarei o fim do maoismo e a hegemonia adquirida pelo centrismo. Em quarto lugar, seguirei a ascensão de Hua Kuo-feng [Hua Guofeng]. Finalmente, indicarei algumas condicionantes económicas e políticas do futuro, além de um anexo polémico.
As raízes deste livro
Convém explicar que as raízes deste livro provêm de um debate interno ocorrido nos Comités Comunistas Revolucionários, uma organização clandestina marxista-leninista a cuja direcção eu pertencia. A evolução da Revolução Cultural e, depois, a morte de Lin Piao [Lin Biao] e a visita de Nixon à China suscitaram inquietações quanto à política maoista e alguns de nós, muito poucos, começaram até a reavaliar o leninismo. Pensávamos que, se uma experiência como a Revolução Cultural abortara tão catastroficamente, o problema não podia residir unicamente na China, mas na própria matriz leninista. Nesse sentido eu redigi, em Setembro de 1972, uma extensa circular interna analisando a Revolução Cultural e criticando o maoismo, intitulada 24 Teses sobre o actual curso revisionista e anti-revolucionário do Partido Comunista da China. Outro membro da direcção dos Comités Comunistas Revolucionários apoiou essa circular, mas os três membros restantes opuseram-se. A cisão era iminente, e só não se precipitou porque cada um dos lados queria ter tempo para colocar os seus peões no jogo.
Na sequência desse debate interno, de Julho a Setembro de 1973 escrevi e dei a ler a vários camaradas dos Comités um livro intitulado, numa elíptica referência à conhecida obra de Preobrazhensky, Nova Institucional. A Afrontamento, do Porto, aceitou editá-lo, e por isso empreguei, a começar pelo título, aquela linguagem meio metafórica meio obscura, necessária para que a censura fascista autorizasse a publicação. Mas entretanto ocorreu o golpe militar de 25 de Abril de 1974, que derrubou o fascismo e deu início a um longo processo revolucionário e me fez desistir, a mim e a outros dois camaradas, da polémica no interior dos Comités Comunistas Revolucionários e nos levou a situarmo-nos num âmbito já exterior ao leninismo. O jornal Combate nasceu nesse processo. O fim do fascismo implicou também o fim da censura, o que me permitiu reescrever todo o livro numa linguagem explícita, e o Nova Institucional passou a intitular-se, de maneira clara, Para uma Teoria do Modo de Produção Comunista. Os leitores que conheçam esse livro sabem que nele eu contraponho a Lei do Valor, definidora do capitalismo, a uma Lei do Institucional, vocacionada para presidir a um sistema económico-social comunista. Aproveitei também para incluir no livro o essencial da circular interna de crítica à política maoista, que há pouco mencionei, e que passou a constituir o capítulo 25 c, nas págs. 234-282, que pode ser lido aqui.
Escrevi o livro Lutas Sociais na China como um desenvolvimento e uma actualização daquele capítulo, e creio que ambos os textos ajudarão a compreender a génese e a consolidação do capitalismo de Estado chinês.
Um erro de avaliação
Quero desde já prevenir que no Lutas Sociais na China cometi um erro de avaliação, supondo que Teng Hsiao-p’ing [Deng Xiaoping] não estaria posicionado de uma maneira que lhe permitisse assumir o comando da política chinesa. Poderia invocar em meu abono a escassez de informações acerca da situação naquele país, mas seria o que em Portugal se chama desculpas de mau pagador.
Esse erro fica tanto mais claro quanto, em Fevereiro de 1978, insisti nele na Introdução que escrevi para a tradução inglesa, Social Struggles in China (aqui), apesar de na parte final ter colocado a hipótese de que uma reorganização das tendências da classe dirigente afastasse os centristas do poder e o concedesse à facção de Teng. (Note-se que, não tendo conservado o meu texto original, verto agora a partir do inglês. Mas como sou eu o autor…) Nessa introdução afirmei o seguinte:
Fiquei um tanto ou quanto hesitante quando me propuseram a publicação desta brochura em inglês. Trata-se de um texto polémico, escrito rapidamente, onde não procuro fazer qualquer análise económica e social minuciosa do capitalismo de Estado chinês, embora essa seja uma tarefa urgente, numa perspectiva marxista revolucionária. Assim, uma exposição resumida e necessariamente simplificada de uma questão de vastíssimas dimensões, e que não está ainda suficientemente estudada, arrisca-se a ser confundida com aquelas generalizações apressadas e “inspirações” superficiais que proliferam em certa literatura de extrema-esquerda. Uma grande parte dessa literatura aborda a China mediante dois processos simplistas. Por um lado, os autores estabelecem um paralelo forçado e sem fundamento entre os processos revolucionários chinês e russo, inventando Kerenskys chineses e comunas de Shanghai russas, um Movimento das Cem Flores na Rússia e uma NEP na China. Por outro lado, as lutas dos trabalhadores não são avaliadas consoante as instituições em que ocorrem nos processos reais, mas a partir de alguns slogans ambíguos, cujos significados são completamente distintos para o proletariado e para os capitalistas de Estado. Deste modo, os nossos autores revolucionários negam qualquer conteúdo revolucionário e espontâneo às enormes lutas de massas que fizeram tremer a China maoista. Por motivos que julgo estarem expostos, ainda que resumidamente, nesta brochura, considero que, pior do que infundamentadas, essas teses são completamente vazias.
Essa paupérrima ideologia reflecte a base social de uma parte dos grupos de extrema-esquerda, geralmente constituídos por estudantes frustrados, sob a condução de candidatos a tecnocratas. Estes dirigentes e militantes projectam sobre a classe trabalhadora o mesmo desprezo e a mesma superioridade que eles próprios são obrigados a sofrer por parte dos estratos verdadeiramente dominantes da sociedade. Daqui decorre o carácter ideológico dessas teses. A classe dominante, à qual pertencem como filhos indesejados, ocupa todo o panorama; mas, como eles são odiados, assumem uma função perversa. Os que se pronunciam a favor da classe dominante apresentam-na como o agente exclusivo de toda a história — uma história de maravilhas. Aqueles críticos de esquerda também a apresentam como o agente exclusivo de toda a história — mas uma história de horrores. Em ambos os casos o papel independente do proletariado é o mesmo: nenhum. Nesta brochura procurei não cair nesse círculo vicioso, mostrando como a classe trabalhadora desempenhou um papel autónomo e revolucionário em lutas que, no geral, se mostraram incapazes de ultrapassar certas facções da classe dominante. Para nós, revolucionários, são sobretudo estas manifestações de autonomia que nos devem interessar, pois só graças a elas seremos capazes de entender as condições futuras de uma luta radicalmente anticapitalista e de uma completa autonomia proletária.
No contexto português, para o qual foi escrita, esta brochura resultou da necessidade de criticar uma outra forma de confusão entre a luta proletária e as manobras da burocracia dirigente. Durante a primeira metade de 1976, quando Teng Hsiao-p’ing pretendeu ascender de dirigente de uma facção da classe dominante a seu dirigente supremo, abrindo assim o caminho para a ascensão de Hua Kuo-feng, um grande número de maoistas portugueses — como aliás de todo o Ocidente — ficaram eufóricos, insistindo que isto significava a verdadeira vitória de Mao, e da senhora Chiang Ch’ing [Jiang Qing] e dos seus seguidores. Anunciavam que os rebeldes proletários, acerca dos quais davam notícias entusiásticas, apoiavam a facção maoista. E concluíam que a China ainda era Vermelha e que a fénix maoista estava a ressurgir das cinzas dos centristas. Muitos jornalistas, talvez porque lhes faltassem outras informações, reproduziam uma versão mais sóbria para a imprensa burguesa. Era com esta confusão que os maoistas procuravam justificar as suas fantasias revolucionárias. A minha brochura surgiu nesse contexto. Eu quis mostrar que Teng Hsiao-p’ing não representava os centristas, mas pertencia a uma facção diferente; que tinham sido os centristas e não os maoistas a afastar Teng; que os maoistas estavam politicamente mortos desde o fim da “revolução cultural” e que os centristas aguardavam apenas a morte de Mao — e talvez nem sequer a aguardassem se o Grande Timoneiro se revelasse possuidor de uma Longa Longa Vida — para levarem a cabo o golpe final. Acima de tudo, quis mostrar que as revoltas proletárias mais recentes eram autónomas, não apoiando nenhuma facção da classe dirigente, e que o proletariado permanecia indiferente a essas lutas pelo poder.
Mao morreu alguns meses depois da publicação desta brochura e, pelo menos até agora, todas as minhas previsões foram confirmadas. O Bando dos Quatro caiu, sem que nenhuma revolta de trabalhadores tentasse apoiá-lo. E não nos deve iludir o facto de os seus inimigos vitoriosos atribuírem ao Grupo de Shanghai a responsabilidade das revoltas proletárias, tanto antes como depois da queda dos maoistas. É geralmente a facção derrotada que, nas disputas da classe dirigente, é considerada responsável por lutas de trabalhadores que foram essencialmente espontâneas. A história do stalinismo oferece tantos exemplos desta prática que seria impossível fazer a lista de todas as variações do tema. Quem se deixou enganar pela primeira vez tem desculpa, mas é imperdoável quando a história se repete. Esta brochura fornece razões suficientes para o isolamento dos maoistas relativamente à classe trabalhadora no período posterior à “revolução cultural”. E mesmo que essas razões não bastassem, a rapidez com que os discípulos da senhora Chiang Ch’ing foram afastados ou postos na prisão e a sua incapacidade de desencadear qualquer movimento popular que os apoiasse constituem uma prova suplementar de que as revoltas proletárias actuais visam a totalidade do sistema e não apenas uma das facções da classe dirigente. Por isso, continuo a defender que depois da “revolução cultural” as lutas proletárias surgiram de modo espontâneo, completamente separadas das questões internas do aparelho de Estado.
No que diz respeito às questões internas da classe dirigente, vale a pena observar que, em geral, as previsões feitas nesta brochura foram confirmadas.
Apesar disso, as coisas estão ainda demasiado agitadas para que seja possível formular uma opinião clara. A liquidação definitiva dos restos da tendência maoista tenderá a desequilibrar o poder dos centristas. Foi precisamente este desequilíbrio a permitir que o incansável Teng e o seu grupo tentassem de novo assumir o poder supremo, uma ambição que, até agora, tem sido frustrada pela oposição das outras tendências, deixando os centristas manter o equilíbrio do poder. Mas o aspecto mais importante da luta, independentemente do que venha a suceder a Teng ou a Hua ou a qualquer dos outros mandarins e marechais, é o de ter posto em causa a capacidade de controle das tendências existentes e permitido uma nova organização de tendências e um novo equilíbrio de poder. Isto implica para o capitalismo de Estado chinês uma reorganização da actual fase de maturidade ou, por outras palavras, o começo da fase senil. Creio que nesta brochura tratei das razões económicas determinantes da fase de maturidade — ainda que, como disse, o tivesse feito de maneira não sistemática e apenas sob certos aspectos.
Não tive o intuito de proceder a um estudo detalhado, que conferisse ao texto uma validade a longo prazo. Já que ele resulta de uma necessidade polémica, o meu único objectivo foi compreender um momento específico da luta de classes na China. Mas o leitor interessado poderá usar o método aqui descrito para uma análise da China no futuro. Talvez seja este o único interesse do texto — propor um modelo de aplicação da metodologia marxista a uma sociedade capitalista de Estado.
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É claro que certas passagens teriam sido escritas hoje de maneira diferente. Um caso é talvez mais importante do que os outros. Parece-me agora que a eliminação de Lin Piao e dos seus seguidores não correspondeu apenas a uma luta das restantes facções da classe dominante contra os maoistas, mas implicou também uma cisão dentro da facção maoista, em que a ala dirigida pela senhora Chiang Ch’ing apoiou Chou En-lai [Zhou Enlai] contra Lin Piao. Lin defendia um programa de militarização acelerado, que permitisse à China opor-se simultaneamente à União Soviética e aos Estados Unidos. Um programa deste tipo implicava mudanças económicas e tensões sociais que teriam rompido os elos existentes entre os maoistas e a classe trabalhadora (definidos nesta brochura) e posto em risco a própria estabilidade da classe dirigente. Esta grave cisão no interior do campo maoista mostra até que ponto ele enfraquecera e perdera toda a iniciativa política. Mas duvido que esta correcção alterasse as conclusões gerais a que cheguei.
Por um lado, enganei-me a respeito de Teng Hsiao-p’ing, embora nesta Introdução de Fevereiro de 1978 tivesse começado a vislumbrar o rumo dos acontecimentos, anunciando «uma nova organização de tendências e um novo equilíbrio de poder». Por outro lado, acertei plenamente no diagnóstico a que procedi sobre a morte do maoismo, quando afirmei que ela era confirmada pela ascensão de Hua Kuo-feng. O meu erro, então, não resultou da avaliação das tendências gerais da luta de classes na China e das movimentações sociais daí resultantes, mas exclusivamente da avaliação dos equilíbrios internos da classe dos gestores chinesa. Afinal, apesar de ter insistido na colegialidade da direcção governamental e partidária pós-maoista, não entendi até que ponto a Revolução Cultural unira a classe dos gestores na firme decisão de não mais proceder a uma política de massas, que caracterizara o maoismo e fizera os gestores correr riscos muito sérios. No que lhe dizia pessoalmente respeito, Teng soube ultrapassar a facção tradicionalista em que se inserira e representar aquela nova coesão da classe gestorial. A mobilização política, baseada em elos partidários e em incentivos ideológicos, foi substituída pela mobilização económica, baseada em relações estritamente mercantis e em incentivos pecuniários. Foi esta a ruptura operada na 3ª Sessão Plenária do 11º Comité Central, em Dezembro de 1978. E que Teng Hsiao-p’ing se tivesse afirmado então como a figura proeminente mostra que os gestores chineses haviam aprendido a lição de maneira mais ampla e profunda do que eu então supunha.
Porém, quanto aos dados gerais da questão e ao seu enquadramento económico e social, creio que não me enganei e os leitores actuais poderão consultar com proveito o capítulo 25 c do Para uma Teoria do Modo de Produção Comunista e, agora, o Lutas Sociais na China.
A imagem de destaque reproduz um pequeno detalhe de uma instalação de Ai Weiwei (1957- ).
Leia aqui a 1ª Parte, a 2ª Parte, a 3ª Parte, a 4ª Parte e a 5ª Parte.
Caro João Bernardo,
Foi o seu livro:”Para uma teoria do modo de produção comunista” que me fez começar a refletir sobre a China contemporânea quando no prefácio que muito ignoraram ou se fazem cegos sobre a luta de classe na China quando o senhor justamente fala sobre a Revolução cultural e chama atenção: “como uma revolução se faz contra Deng Xiao Ping termina justamente com ele no poder”.
Confesso que hoje roubei essa frase para mim (mas sempre dou Copyright rsrs). Pois em toda conversa sobre a China eu jogo essa reflexão do senhor e é muito divertido ver o ponto de interrogação na cara desta militância.
Parabéns pela iniciativa de publicar o livro
Abraços fraternos