Por João Bernardo

ARRASTAR-SE-Á A PASSIVIDADE OU RESSURGIRÁ A REVOLTA?

Quem quer que, do exterior, analise as lutas sociais na China não pode responder à pergunta com a exactidão requerida. Podem, no entanto, formular-se hipóteses.

Sob o ponto de vista económico, a concentração acelerada de capital, de que as importações maciças de meios de produção e bens de equipamento, atrás referidas, são um indício, não deixará de ter agravado as condições de vida do proletariado. Os dirigentes chineses afirmam que imporão à economia, até ao fim deste século, uma taxa de crescimento anual para o produto nacional bruto de pelo menos 9%; de 10% a 11% para a indústria em geral; de 15% a 18% para a indústria pesada; de 6 a 7% para a agricultura. O leitor que comparar estas previsões com as taxas de crescimento referentes à situação nos últimos anos, transcritas na Nota 3, poderá fazer uma ideia da enorme concentração de capital que seria necessária, bem como da sobre-exploração, do aumento das cadências e da produtividade que teriam de ser impostos à classe operária. Os recentes acontecimentos, como vimos, de modo nenhum puseram em causa a linha económica seguida e, se alterações houve, foi no sentido do seu reforço. Criam-se, assim, possibilidades objectivas para que a luta contra a exploração assuma formas mais agudas. Foi conhecido que, na Primavera do ano passado, greves operárias em Hangchow, aparentemente reivindicando aumentos salariais, atingiram dimensões tais que os próprios jornais oficiais afirmaram terem sido enviados 11 mil soldados para restabelecer a ordem. É evidente que uma luta com esta amplitude não pode ser um caso único. O problema aqui é, em primeiro lugar, com que profundidade os efeitos dessas lutas permanecem após serem derrotadas nos seus objectivos imediatos, ou seja, até que ponto os proletários desenvolvem nessas lutas relações sociais autónomas e igualitárias. Em segundo lugar, se tais lutas permanecem isoladas ou até que ponto se relacionam entre si.

Sob o ponto de vista social, porém, é necessário ter em conta que há poucos anos um grande número dos proletários mais activos e, entre eles, os militantes mais experimentados, foram massacrados pelos maoistas na fase final da “revolução cultural”. E se o proletariado, por vezes, se recompõe rapidamente das derrotas, inúmeros casos há em que entre a derrota e o recomeço da luta generalizada medeia o espaço de uma geração. Correspondentes da imprensa ocidental anunciam ter visto, em certas fábricas, cartazes de parede criticando quadros técnicos e gestores; mas as informações são demasiado vagas para se poder fazer uma ideia da origem do movimento — movimento efectivamente proletário ou, aí também, luta de facções entre gestores?

Para já, uma conclusão parece poder tirar-se, relativamente certa. A de que as massas proletárias têm-se mantido até agora passivas, sem procurarem aproveitar em seu favor os conflitos que dividem a classe dominante — o que é negativo — mas sem apoiarem activamente nenhuma das facções em disputa — o que pode ser positivo.

Posto isto, o grande problema é o de saber se a actual passividade esconde ou não uma efervescência subterrânea. É neste contexto que a posição do exército na actual luta de tendências pode ser muito importante.

UMA QUESTÃO EM SUSPENSO: O EXÉRCITO

Vimos que nos acontecimentos de 5 de Abril em Pequim o exército, apesar de fisicamente atacado pelos partidários de Teng Hsiao-p’ing, não reagiu e foram as milícias civis, dependentes de Hua, que restabeleceram a ordem. Desde aí que a posição do exército se tem mantido dúbia nas lutas em curso.

Teng era chefe do estado-maior do exército e, destituído de todas as suas funções, esse posto decisivo ficou até agora por preencher. É certo que, por vezes, as nomeações militares não são anunciadas publicamente na China, mas este posto afigura-se-me demasiado importante para qualquer eventual ascensão poder ser silenciada e, por outro lado, a atitude dos altos dirigentes militares parece mostrar que hesitam em aceitar a tutela de Hua. O ministro da Defesa, Yeh Chien-ying, é indubitavelmente um elemento seguro do centro pragmático, e alguns comentadores comparam a sua orientação política com a de Li Hsien-nien; mas o que os chefes militares mais importantes porão eventualmente em causa não é, claro está, a hegemonia dos centros, e sim o facto de Hua Kuo-feng a consubstanciar. Enquanto que todas as figuras oficiais de relevo têm estado presentes nos meetings de crítica a Teng e de apoio a Hua, um número considerável dos principais dirigentes militares tem-se mantido ostensivamente ausente, entre eles Ch’en Hsi-lien [Chen Xilian], comandante da região militar de Pequim e membro do bureau político, tido como um dos mais poderosos generais chineses, que se destacou na repressão à revolta proletária durante a “revolução cultural” na província de Kiangsu. Em suma, o exército tem-se associado, embora de uma maneira bastante geral e vaga, às críticas a Teng, mas, por enquanto, não aos apoios a Hua.

Se esta situação se prolongar sem ser resolvida, a classe dominante chinesa será atravessada por uma séria divisão e os conflitos agudizar-se-iam e paralisariam, pelo menos parcialmente, a sua capacidade de resposta a uma ofensiva proletária.

Restaria então ver, no caso de essa ofensiva ter lugar, se as massas proletárias iriam repetir os mesmos erros que as condenaram durante a “revolução cultural” — a incapacidade de se libertar dos mitos ideológicos populistas do capitalismo de Estado, o atraso na constituição das comunas e na unificação dos vários movimentos revolucionários, e o atraso no ataque ao exército. Se tais erros se repetissem, com as consequências evidentes para a reestruturação interna da classe dominante e o peso relativo das suas facções, podendo os maoistas sair então relativamente beneficiados, isso significaria que esses erros eram um sintoma de problemas muito mais fundos, decorrentes da situação da classe proletária nos regimes de capitalismo de Estado. Seria necessário então analisá-los a outra luz, de forma a poder avançar na compreensão teórica das relações sociais nos países capitalistas em que propriedade de Estado é integral.

O processo que até agora se tem desenvolvido na China limita-se a ser uma luta social no interior da classe dominante. Da forma como esta conseguir ou não manter a sua coesão, nomeadamente quanto ao exército, e principalmente da capacidade ofensiva das massas proletárias e da capacidade de lutarem autonomamente, depende a transformação do conflito numa luta entre classes, já não circunscrita ao interior dos capitalistas de Estado, mas opondo-os frontalmente ao proletariado. É nesse sentido que devem estar voltadas a nossa atenção e as nossas esperanças.

21 de Junho de 1976

POST-SCRIPTUM
EM PORTUGAL: A VERGONHA DOS MAOISTAS E OS MAOISTAS ENVERGONHADOS

Deixo de lado, claro está, os maoistas sem vergonha nenhuma.

Destes, o PC de P m-l é a agência local da tendência dominante em Pequim, qualquer que ela seja. Linpiaoistas com Lin Piao, os seus dirigentes rejubilaram com o assassinato do “mais próximo companheiro de armas” do Grande Timoneiro e vitoriaram a consolidação da hegemonia de Chou, assim como elogiaram Teng durante o seu curto reinado e, submissos, entoam agora loas ao poder de Hua. No mundo, uns curvam a espinha de vez em quando, outros têm-na sempre curvada. A confiança dos dirigentes chineses, quaisquer que sejam, no PC de P m-l não se deve só às provas de submissão política desta organização; vem do controle pessoal que desde há muitos anos a embaixada chinesa em Paris exerce sobre os seus dirigentes principais. Não é, pois, nas análises desta organização que podemos encontrar razões para espanto. Seguem pontualmente as oscilações da classe dominante chinesa.

Nem o MRPP me parece, nestas questões, digno de nota. Militar em Macau sob as ordens de Eanes, o «grande educador do proletariado e do povo» [Arnaldo Matos] tornou-se lá adepto da política maoista, para encerrar o círculo tornando-se agora, que já é maoista, adepto da política de Eanes. Tinha poupado, a ele trabalho, a alguns expectativas, e a todos juntos tempo, se se tivesse simultaneamente feito adepto das duas coisas — maoismo e Eanes. Para o MRPP, porém, o maoismo é mais uma invocação para uso interno e um formulário de expressões líricas e slogans ridículos, do que propriamente vocação para aplicar a ideologia e adoptar as práticas de Mao Tsé-tung e dos seus seguidores chineses. Se o PC de P m-l se assemelha mais a uma embaixada pequinense em Portugal do que a uma organização que queira aplicar neste país os princípios maoistas, o MRPP, por seu lado, preocupa-se mais em desenvolver os seus métodos de actuação próprios do que em referi-los seriamente à ideologia maoista. Talvez o «grande educador» se sinta em maré de voos mundiais e ache que pode já dispensar tutelas.

Neste campo dos maoistas sem vergonha não encontraremos, pois, reacções com interesse às peripécias da sucessão de Chou.

*

Mais curioso é o caso da UDP-PCP(R), que constitui efectivamente uma tentativa de aplicação às andanças dos capitalistas de Estado neste país dos princípios e das tradições do maoismo. Digo bem do maoismo, e não das políticas sucessivas do regime chinês. O carácter “pró-chinês” da UDP-PCP(R) é mais ideológico do que meramente táctico, o que significa não terem sido escolhidos como representantes oficiais, nem oficiosos, do regime de Pequim.

O importante na única organização que seriamente pretendeu relacionar os princípios maoistas com o tipo de desenvolvimento do capitalismo de Estado verificado em Portugal é o completo fracasso dessa tentativa. Tal fracasso deve-se, principalmente, ao facto de o maoismo enquanto ideologia particular ser a expressão de uma situação típica da China, como atrás sinteticamente pretendi explicar, e de a situação portuguesa não permitir o mesmo tipo de concepções sobre a relação partido-massas, partido-Estado, etc. Mas o fracasso deve-se ainda acessoriamente ao facto de o maoismo, na própria China, ser uma corrente em desagregação, esgotadas as necessidades objectivas que lhe deram a utilidade e a força política. Deste modo, e como que ideologicamente entregue a si própria, a UDP-PCP(R) rapidamente se encaminhou para modelos políticos e ideológicos de tipo kruchtcheviano, evidenciando assim a comum origem deste modelo e do modelo de capitalismo de Estado maoista. Note-se que ao referir o carácter kruchtcheviano da UDP-PCP(R) não estou sequer a pensar no facto de esta organização cada vez mais circular em torno das iniciativas estratégicas, e quantas vezes até das iniciativas tácticas, do PC dirigido por Álvaro Cunhal. É algo mais fundo do que a polarização política a que estes fracassados maoistas estão sujeitos. Trata-se da própria visão que têm das lutas sociais, o predomínio quase absoluto das noções de “povo” e “nação” ligadas a uma prática legalista e eleitoralista banhada num certo radicalismo reivindicativo, e da fachada relativamente liberal, fazendo crer na possibilidade de discussão interna, com que apresentam a sua organização. Os saudosistas podem encontrar aqui o modelo dos partidos kruchtchevianos da segunda metade dos anos cinquenta. E os ingénuos podem acreditar, hoje — quinze anos passados sobre o momento em que Mao deixou de ser um mero dirigente nacional para se tornar o chefe de uma ala marxista mundial, ao lutar contra a tendência de Kruchtchev — que seja maoismo esse dessorado kruchtchevismo. Assim como os velhos senis voltam à infância, também a desagregação das correntes políticas as leva — mas numa forma mais degenerada — ao ponto de partida.

Vem daí a vergonha destes maoistas. Não se orgulham já de apresentar a sua táctica como aplicação nacional da ideologia de Mao, e esquecem, ou relegam, a progenitura nas peripécias das várias eleições portuguesas. Quando o pudor chega aos extremos, revela que se tocou o ponto sensível. Assim, por exemplo, pouco depois de Hua Kuo-feng ter sido nomeado, em Fevereiro, primeiro-ministro provisório, o jornal do PCP(R), ao escrever a sua biografia, dizia-o especialista em questões agrárias e, sem dúvida para tornar simpático o personagem, esquecia, pura e simplesmente, as funções que de facto ocupava na altura: ministro da Segurança Pública, chefe supremo da polícia política. É claro — trata-se de uma polícia política “democrática proletária”, uma “boa” polícia política, etc. O jornal do PCP(R) podia dizer isto tudo, certamente tem os argumentos na ponta da língua, mas não o disse. Teve vergonha. Como podiam falar abertamente da polícia política na pátria do maoismo eles que, aqui, protestam contra todas as polícias políticas — más ou “boas” — e reafirmam as suas puras intenções de respeitar a democracia operária? São tão cativantes assim, rubras as faces, com esta vergonha de maoistas…

*

Mas, para meu gosto, não os há mais atraentes do que os maoistas envergonhados. Não me canso de os admirar.

A vergonha dos maoistas é um pudor episódico, que vem em certos momentos extremos, mas que, geralmente, não se nota à superfície e permanece nas regiões mais íntimas do subconsciente. Nos maoistas envergonhados, pelo contrário, a vergonha é um estado permanente e transportam o seu maoismo como certas pessoas arrastam vícios secretos e temíveis, obcecados mas ao mesmo tempo parecendo pensar em outra coisa, para só em raros momentos propícios gritarem, libertados enfim — «eu também, eu também sou maoista!» É então que para estes maoistas envergonhados chega o momento ambicionado do exibicionismo. São muito úteis. Quando um deles ultrapassa a vergonha e se mostra na nudez da sua ideologia é sinal de que grandes esperanças surgiram entre as hostes fiéis a Mao.

As zonas ambíguas da Gazeta da Semana são um local predilecto destes maoistas envergonhados. A Gazeta da Semana é um jornal curioso, que veio colmatar uma lacuna no leque político dos nossos semanários. Temos o Expresso para as zonas situadas entre os dois pólos atractivos-repulsivos do PPD e do MRPP, e O Jornal para os jogos mais tortuosos dos “nove”, de certo PS e de algum “esquerdismo”. A Gazeta da Semana preenche a distância que medeia entre projectos actualmente marginalizados de capitalismo de Estado e aqueles elementos, em princípio contrários ao capitalismo de Estado, mas cuja ingenuidade política ou, mais provavelmente, o deficiente rigor na demarcação prática das classes sociais, os faz julgar que, mais do que uma greve, pequena mas autónoma, vale o apoio de um ex-secretário de Estado da Indústria e Tecnologia dos governos gonçalvistas e dos jovens tecnocratas que em torno dele circulam; os faz julgar que o movimento operário autónomo se unifica, não ao nível das lutas em que mantém a iniciativa, mas a partir do campo eleitoral do regime e sob o impulso de um general, ou major, cujo aventureirismo e as inépcias de ontem são esquecidos ou encobertos em mais uma tentativa de mover o proletariado atrás de um projecto hoje marginalizado — mas pelos vistos não desiludido — de capitalismo de Estado. Esses elementos, ingénuos ou oscilantes, nunca compreenderão que quando o movimento proletário autónomo julga ter encontrado apoios no seio do aparelho de Estado, na realidade foi o aparelho de Estado que encontrou apoio no seio do movimento operário.

No número de 15 de Abril, e com passagens de difícil leitura em virtude das muitas linhas trocadas, em artigo não assinado (ao alto da p. 15), a Gazeta da Semana apresentou a sua versão do conflito actual na classe dominante chinesa. Teng Hsiao-p’ing é apontado como um continuador de Chou En-lai, e esta grave confusão de tendências e figuras políticas serve só para dar à facção maoista os louros pela queda de Teng. É claro que o autor do artigo não consegue explicar, neste esquema, como pôde suceder a um Teng derrubado pelos maoistas um Hua que o próprio artigo afirma seguir uma «orientação “centrista”». E os entorses à realidade continuam quando se acusa Teng de responsável pelos «incidentes de Hangchow durante o Verão passado». Trata-se das greves a que me referi na p. 31 [nesta 5ª Parte]. (Que pudor na expressão! Por que não dizer greves em vez de «incidentes»? Ou será que os redactores da Gazeta da Semana começarão a redigir títulos assim: «Os trabalhadores hoteleiros decidiram entrar em incidente»?) Mas quem é o responsável pelas greves? Teng ou a exploração capitalista a que os proletários chineses estão sujeitos? Aí, o autor do artigo pulará e dirá: «Demagogia! Mas eu bem escrevi que se tratava de uma luta entre linhas económicas antagónicas». Isso sei eu, que escreveu. Basta ler. Mas essa interpretação tem o pequeno defeito não só de ser errada, como de ocultar factos. A demissão de Teng, correspondente à reaparição de Li Hsien-nien, só veio confirmar a linha económica que desde há anos a China tem seguido, e as palavras-de-ordem de aumento da produtividade, provenientes da facção maoista, são por si só sugestivas. Com Teng ou sem Teng os «incidentes» continuarão. Certamente para reforçar a ideia de que a facção maoista defende a remodelação das relações de trabalho, o autor do artigo esqueceu-se de assinalar que toda a campanha contra Teng é feita ao som dos slogans «ordem» e «produção». É esta «ordem», é esta «produção» que nos elucidam sobre o carácter das grandes reuniões que o regime organizou em homenagem ao recém-promovido Hua, e que o artigo parece apresentar como verdadeiros movimentos de massas. Quando uma ideologia, para se justificar, precisa de dar tais entorses à realidade, é sempre a ideologia que sofre, não a realidade.

Mas de nada valem aos redactores da Gazeta da Semana estas defesas do maoismo. Quando vejo entre os representantes do PC de P m-l, do PS e do PPD convidados pelo governo de Pequim a visitar oficialmente a China em Julho deste ano, o nome de Raul Rego, antigo director do República contra quem os trabalhadores se revoltaram, acabando por expulsá-lo; e quando, ao passar os olhos pela ficha técnica da Gazeta da Semana noto, entre os seus redactores, alguns dos jornalistas que se destacaram no movimento que abriu o República aos trabalhadores em luta e que, apesar de tantas limitações e de um inglório fim, teve durante algum tempo uma importância relevante — quando comparo os que a China premeia com visitas com aqueles que seriamente defendem o maoismo sem direito a turismos políticos, penso, e não quero fazer humor: muito mal paga Pequim os seus serviçais! E muito cegos devem ser os que ainda o servem!

Mais interesse ainda tem a série de artigos que sobre a política actual chinesa Nuno Pereira da Silva escreveu na Gazeta da Semana, ao longo de vários números. O autor assimila também Teng Hsiao-p’ing a Chou En-lai, para poder apresentar a demissão de Teng como o fim da hegemonia dos centros e portanto, por exclusão de partes, como um triunfo da facção maoista. Claro está que não fundamenta esta interpretação em nenhuns factos. Aliás, nestes seus artigos os factos históricos económico-sociais pura e simplesmente não existem, como notava já uma carta de crítica que atrás transcrevi. Chou disse, Teng propôs, Mao pensa — são estas as únicas figuras e acções que se encontram ao longo dos artigos. De que são expressão essas ideologias e esses actos políticos, nada disso é dito. Não compreenderá este senhor que quando uma corrente política se refugia no ideal, nas regiões da ideia pura, isso significa que já nada tem a fazer nesta terra e que as suas experiências políticas fracassaram? Mas é esta separação entre a «linha política», entendida como visão subjectiva de um dirigente, e a realidade dos factos materiais preponderantes, que lhe permite fazer uma grande descoberta, que constitui, aliás, a originalidade dos seus artigos. O autor opõe-se à classificação dos países em pobres e ricos, desenvolvidos e subdesenvolvidos, que considera «economista» porque apaga a definição fundamental desses países como capitalistas ou socialistas. E, contra essa corrente, afirma que os maoistas verdadeiros devem defender uma outra divisão do mundo, com base na «política de não-alinhamento». Santo Deus e coro dos anjos! O autor, que começa por criticar a divisão em desenvolvidos e subdesenvolvidos opondo-lhe como critério a definição de capitalistas e socialistas, vai, imediatamente a seguir, esquecer esta ortodoxa divisão e propor o critério dos «não-alinhados». Mas — e não faço mais do que aplicar o seu raciocínio às suas próprias teses — «não-alinhados» capitalistas? Ou «não-alinhados» socialistas? O alinhamento de um regime vem dos discursos políticos dos dirigentes nas assembleias gerais da ONU e das suas impressões subjectivas, ou da integração económica a que o país não pode deixar de se sujeitar? Como pode um país ter uma política — «não-alinhamento» — inteiramente divergente das relações económicas em que se insere, que são forçosamente no mundo actual as da estreita integração numa das esferas de acumulação mundial de capital? Tudo o que, sob este ponto de vista, há a definir são as diferentes formas políticas como se podem explicitar os diferentes tipos de integração económica. É muito bonito saber o que um autor pensa — ou melhor, acha… — sobre os assuntos e, de qualquer modo, a partir do momento em que se dispõe de papel, caneta e possibilidades de nos fazermos editar, ninguém está livre de nos ler. Mas é preciso também que as ideias passadas ao papel sejam, pelo menos de vez em quando, referidas a factos reais. E o autor destes artigos esquece-se, para tristeza de quem o lê, de dizer: 1º) Quais são os países que considera «não-alinhados»? 2º) Qual tem sido a sua evolução? 3°) Quais são as suas estruturas económicas? 4º) Qual é a situação do movimento operário nesses países? Bem sei que se trata de uns artigos de jornal. Também não peço para escrever um tratado. É uma ou duas referenciazitas, só de vez em quando, dois ou três factos, uns breves exemplos que respondam a estas perguntas sem as quais todas as teses e as mais bonitas ideias política são só especulação e intriga. O autor que analise os «não-alinhados» sob estes quatro pontos de vista. Não o fará, porém, porque todas as suas lucubrações idealistas se destinam a cobrir a mesma política estrangeira da China com outros argumentos. Com a tese dos desenvolvidos/subdesenvolvidos ou com a tese dos alinhados/não-alinhados a política externa do governo de Pequim é a mesma, as alianças são as mesmas, as relações são as mesmas, nada muda. Alto aí! Nada muda? Muda uma coisa muito importante, mudam os argumentos, a embalagem, doira-se a pílula. Mas, nada mais têm estes senhores para ocultar a nudez do seu corpo do que o próprio corpo? Como não haveriam, pois, de ser maoistas envergonhados?

As ilustrações desta última parte do livro começam com duas obras de Zhang Xiaogang (1958-     ) e terminam com uma obra de Wang Jianwei (1958-     ).

Leia aqui a Apresentação, a 1ª Parte, a 2ª Parte, a 3ª Parte e a 4ª Parte.

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