Por João Bernardo

À memória dos camaradas
Liu Chieh e Chu Ching-fang, Wang Li, Sidney Rittenberg, Yao Teng-shan,
que lutaram na primeira fila do proletariado em revolta durante a “revolução cultural”, partilhando as ilusões e toda a grandeza desse primeiro levantamento maciço da classe proletária contra o capitalismo de Estado,
fuzilados em fins de 1968 ou princípios de 1969,
dedico este pequeno texto.

A VERDADEIRA FORÇA DO MOVIMENTO OPERÁRIO

Muitos, desiludidos com o que se passa na URSS e nos países da sua esfera de influência, agarram-se ao mito de uma China vermelha e de um presidente (ou camarada? ou camarada presidente?) Mao timoneiro das lutas proletárias, repetindo angustiados para si próprios e para os outros: «Se a China não for comunista, então não há países comunistas e isso significa a condenação do comunismo como uma utopia, significa a escravidão eterna dos explorados».

Para mim, no entanto — e para muitos outros camaradas — negar que exista em qualquer país um governo comunista significa simplesmente que se considera o comunismo e o poder de Estado (nomeadamente o poder económico do Estado) como absolutamente antagónicos.

O comunismo não é uma ilusão vã. As relações sociais igualitárias e comunizantes são produzidas quotidianamente pelos proletários em todos os países do mundo, são as relações que entre si estabelecem na prática da luta, desde que essa luta seja directa e autónoma, dirigida pelas próprias massas proletárias e não pelos sindicatos nem pelos partidos políticos. A pressão do mercado capitalista mundial impede que essas novas relações sociais dominem num país isoladamente dos restantes, porque toda a produção coloca o problema do seu escoamento e, perante a estreita integração capitalista e o absoluto domínio do mercado mundial, é impossível uma empresa ou um país isoladamente desenvolver e consolidar essas relações sociais comunizantes. A incapacidade, até agora, de desenvolver um verdadeiro processo revolucionário internacionalista impediu que as relações sociais que o proletariado estabelece na luta autónoma se transformassem em verdadeiras relações de produção comunistas. Mas cada vez mais, em vastas porções do globo, o proletariado luta independentemente das instituições burocráticas, sindicatos ou facções do aparelho de Estado, construindo e desenvolvendo durante algum tempo, enquanto a autonomia da luta durar, as relações sociais novas, comunitárias e igualitárias. É isto que mostra que o comunismo não é uma utopia sem base. Essas relações sociais que o proletariado estabelece nas lutas autónomas prefiguram a sociedade de amanhã. É para elas, e não para os aparelhos de Estado e os seus apêndices, quaisquer que sejam, que os proletários devem voltar as suas esperanças. É nelas que devem concentrar as forças.

A força do movimento operário mede-se pelo próprio movimento operário. Não precisamos de nos entregar de olhos fechados às mais torpes ilusões burocráticas.

SERÁ A CHINA UM PAÍS SOCIALISTA?

Não creio que possa chamar-se socialista ou comunista a um sistema social onde não são os trabalhadores que controlam a economia, onde o salariato se mantém, onde o trabalho gratuito se generaliza, onde a tecnologia capitalista se desenvolve sem barreiras, onde a repressão sobre o movimento autónomo do proletariado é quotidiana, enfim, onde as relações de produção capitalistas se mantêm basicamente inalteradas.

A política externa contra-revolucionária do governo chinês, de aliança com as forças mais conservadoras e tradicionalistas, é o aspecto divulgado do regime, por ser aquele que mais de perto toca os outros países capitalistas e, por conseguinte, o que mais preocupa os seus jornais. Não existe, porém, uma “política estrangeira” que se possa separar de uma “política interna”. A aliança actual da classe dominante chinesa com as facções internamente mais repressivas e externamente mais agressivas dos capitalistas dos Estados-Unidos e da CEE (“mercado comum”) corresponde a uma etapa no processo de reprodução alargada das relações capitalistas na China, em que o capitalismo de Estado se expande para além do âmbito das fronteiras nacionais, convertendo-se assim em imperialismo, e defrontando-se nesse processo com o inimigo mais próximo: o imperialismo russo. A política externa hoje seguida pelo capitalismo de Estado chinês resulta, pois, da reprodução das relações de produção capitalistas na China e só pode portanto ser entendida em estreita interligação com a política interna.

Não é meu intuito, no espaço de uma breve brochura, tentar uma análise dos principais aspectos económicos do capitalismo de Estado na China, nem historiar os grandes conflitos sociais que o pontuaram. O tema está, aliás, abordado em dois ou três livros publicados em Portugal e relativamente conhecidos (Nota 1). Limito-me a recordar alguns traços salientes.

ASPECTOS GERAIS DO CAPITALISMO DE ESTADO NA CHINA

A China era, até ao completo domínio do continente pelo Partido Comunista em 1949, um país praticamente sem indústrias (exceptuando nalguns centros urbanos isolados e sob a directa influência estrangeira) e onde dominava a agricultura, num regime distinto das relações de produção que fizeram a História europeia. Isto significa que não existia reunido na China o capital necessário para um desenvolvimento amplo e acelerado da indústria capitalista. Um país que, nessa situação, prossiga um desenvolvimento de tipo capitalista pode integrar-se numa de duas alternativas gerais: a) ou fazer apelo à entrada maciça de capitais estrangeiros, desde que o aparelho de Estado consiga utilizar parte dos lucros assim obtidos para desenvolver ramos da indústria do país; b) ou expropriar os capitalistas e os grandes proprietários fundiários nacionais para, com os capitais assim reunidos e com o resultado de uma sobre-exploração dos trabalhadores que reforça a concentração do capital, desenvolver a indústria capitalista, realizando simultaneamente uma reforma agrária cujos efeitos são importantes para o desenvolvimento capitalista que se prossegue. O Brasil de hoje é um exemplo do primeiro caso, a China, do segundo. É claro que estes modelos não se oferecem à classe dominante como possibilidades de escolha, mas impõem-se consoante as características históricas. Quero dizer, estes modelos não existem idealmente, antes da sua aplicação prática; pelo contrário, resultam de esforços teóricos de síntese após vários processos práticos.

Entre as duas alternativas há um ponto em comum fundamental, embora a dinâmica de cada uma delas seja divergente. O ponto comum fundamental é o reforço do aparelho de Estado. No caso b a necessidade desse reforço é bastante evidente, visto tratar-se de uma expropriação dos capitalistas particulares e grandes proprietários agrários e, portanto, da transformação da propriedade particular em propriedade capitalista de Estado. No caso a a permanência da propriedade particular, ainda que a propriedade estadual se reforce, e o papel político activo dos capitalistas particulares, contribuem para ocultar ao observador superficial o reforço do aparelho de Estado. A penetração maciça de capitais estrangeiros num país em que o aparelho estadual seja política e economicamente débil só pode levar ao domínio directo e imediato de toda a economia por um número restrito de grandes monopólios multinacionais, que utilizam o país essencialmente como fonte de matérias-primas, obstando portanto ao seu desenvolvimento capitalista e ao desenvolvimento e expansão da classe capitalista autóctone. Só mediante o desenvolvimento de uma economia de Estado forte pode a classe capitalista do país que recebe os investimentos estrangeiros canalizá-los para certos ramos e aproveitar parte dos lucros para estimular, noutros ramos, o desenvolvimento capitalista do país. É, aliás, essa necessidade de reforço do aparelho estadual que leva à militarização crescente dos campos do político e do económico, fenómeno que se observa em todos os países que seguem este modelo geral de desenvolvimento, do Irão ao Brasil, de “direitas”, sem esquecer o Peru, de “esquerdas”. Numa alternativa como na outra é, pois, necessário reforçar o aparelho de Estado e, consequentemente, desenvolver o capitalismo de Estado. Mas as diferenças entre estes modelos são decisivas e condicionam a diferente evolução dos dois tipos de economia, bem como da luta de classes que neles se trava.

No primeiro dos modelos os capitalistas particulares continuam a ter um peso importante, o que leva em geral à manutenção de formas parlamentares ou, no mínimo, a um certo liberalismo de fachada, que parecem à primeira vista contraditórios com o sistema ditatorial reinante.

Em segundo lugar, o facto de o desenvolvimento económico ser condicionado pelos lucros canalizados pelo Estado a partir dos sectores dominados pelo grande capital estrangeiro faz com que esse desenvolvimento seja extremamente desarmónico, isto é, com uma desigualdade mais acentuada do que a regra no capitalismo, já que não são desenvolvidos aqueles ramos de indústria a cuja expansão os grandes capitalistas estrangeiros activos no país se oponham decididamente; deste modo, o país encontra-se estreitamente dependente das variações do mercado mundial, cujos efeitos sofre plenamente sem praticamente o poder influenciar, e a sua indústria permanece além disso inteiramente subordinada ao desenvolvimento tecnológico das metrópoles imperialistas.

Em terceiro lugar, o facto de uma grande parte dos trabalhadores ser assalariada em empresas directamente decorrentes do capital estrangeiro faz com que o domínio dessas empresas sobre a vida económica incida não só no pólo determinante da produção mas ainda no pólo subordinado do consumo, o que pode levar a desfasamentos nos níveis de vida e nos hábitos de consumo que têm como consequência o aumento da inflação.

Em quarto lugar, estes aspectos, juntos com uma sistemática entrada de capitais estrangeiros puramente especulativos e de empréstimos destinados a subsidiar o aparelho burocrático governamental, que não têm uma contrapartida na produção, levam a inflação nesses países a taxas muito superiores à média mundial e, sobretudo, fazem com que as oscilações na inflação sejam sentidas de forma muito mais brutal, o que não deixa evidentemente de acarretar consequências para o próprio processo de industrialização.

O segundo modelo tem em geral caracterizado o desenvolvimento económico em países onde, por razões históricas várias, o esforço das camadas dominantes para encetar o arranque do capitalismo é coincidente com a necessidade de para tal conduzirem uma luta armada contra países imperialistas. Cria-se assim uma situação de bloqueio diplomático, pelo menos parcial, que torna difícil durante algum tempo o apelo a investimentos estrangeiros maciços, e em que simultaneamente o próprio processo da luta armada — conduzida burocraticamente — levou ao desenvolvimento de um aparelho de Estado altamente militarizado e centralizado. Nas condições determinadas por esse bloqueio, parcial ou total, e com as possibilidades oferecidas por um aparelho de Estado forte e concentrado, reforçadas pelos interesses de classe objectivos dos gestores desse Estado, desenvolve-se a necessidade de recorrer às medidas do tipo enunciado no segundo modelo.

Este modelo corresponde ao caso da China, entre outros países, e tem como características imediatas mais salientes:

Em primeiro lugar, os capitalistas particulares aceitam de bom grado a sua expropriação, vendo que sem ela é impossível qualquer concentração de capitais suficientemente ampla e rápida para permitir um arranque do capitalismo, desde que — e esta condição é para eles fundamental — mantenham uma posição de primeiro plano no controle da economia. Se, por qualquer motivo, existir já uma camada burocrática suficientemente ampla para constituir um obstáculo forte à integração, no aparelho de controle estadual da economia, desses antigos capitalistas particulares reconvertidos em gestores, então trava-se uma luta social aguda, interna à classe dos gestores e capitalistas de Estado; dessa luta resulta, geralmente, o extermínio dos ex-capitalistas particulares, que têm contra si as pressões objectivas do processo de concentração do capital.

Em segundo lugar, a conversão da propriedade particular em propriedade de Estado, e as próprias exigências da industrialização acelerada, obrigam à realização de uma reforma agrária. Embora, nessas reformas, a pequena e média propriedade camponesa particular possa ter mais ou menos peso, consoante variadas circunstâncias gerais de ordem económica e política, a grande propriedade agrária é dissolvida ou estadualizada e os grandes agrários são, regra geral, além de eliminados politicamente, destruídos fisicamente; trata-se de uma classe ociosa, e não de técnicos da agricultura, cujos membros não podem, por isso, ser reconvertidos em gestores e capitalistas de Estado. A reforma agrária é uma base indispensável para o desenvolvimento capitalista acelerado da indústria, porque aumenta a produtividade da agricultura, diminuindo assim as importações de matérias-primas alimentares e permitindo concentrar mais capitais no desenvolvimento industrial; esse aumento de produtividade permite também diminuir as importações de um certo número de matérias-primas industriais; “liberta” mão-de-obra para trabalhar nos centros industriais, sem que porém esteja no estado de subnutrição característico do antigo regime e que impedia esses elementos de terem a produtividade considerada necessária; transforma as explorações agrícolas num mercado para produtos industriais como tractores, adubos químicos, etc.; elevando o nível de vida da população rural, aumenta o mercado interno de bens de consumo.

Em terceiro lugar, proceder a um arranque capitalista rápido, unicamente pela concentração dos capitais nacionais e praticamente sem recurso, na fase inicial, ao capital estrangeiro, exige uma sobre-exploração do proletariado, que leva a: 1) militarização do trabalho, com o controle directo das fábricas e dos aparelhos sindicais pelos chefes militares e com a aplicação da disciplina militar às relações de trabalho; 2) extracção de trabalho gratuito (trabalho gratuito dos soldados, dos prisioneiros, dos assalariados camponeses e até dos próprios operários da indústria que cultivam, fora das horas oficiais de trabalho, um pouco de vegetais para completar a sua alimentação e compensar assim salários inferiores às necessidades de subsistência, em parcelas de terreno que o Estado para isso lhes distribui, etc.); 3) aumento do número de horas de trabalho e da intensidade do trabalho (mitologia dos “heróis do trabalho”, etc.); 4) para além da militarização no interior do processo de trabalho propriamente dito, aumento dos aparelhos repressivos, quer policiais, quer partidários, quer ideológicos, que envolvem o processo de trabalho e se destinam a assegurar essa exploração reforçada; 5) para que os salários se mantenham no nível mais baixo possível, é necessário que os trabalhadores ignorem a maior parte dos produtos modernos de consumo e, portanto, não “sintam necessidade” de os utilizar, o que diminuirá, em princípio, as reivindicações de aumento de salários; assim, se as relações com o resto do mundo capitalista eram já muito restritas do lado da produção, fecham-se do lado do consumo à penetração dos bens de consumo modernos.

Em quarto lugar, este processo de desenvolvimento assegura um maior equilíbrio interno (dentro dos limites possíveis no capitalismo) e uma maior independência tecnológica relativamente às potências capitalistas mais avançadas (dentro do que a integração capitalista e o mercado mundial possibilitam); deste modo, a expansão capitalista do país adquire uma base suficientemente sólida para, uma vez alcançados os limites da sua reprodução no interior das fronteiras nacionais, transformar-se numa expansão imperialista particularmente “agressiva” — em termos económicos, entenda-se, o que nem sempre corresponde a uma agressividade militar.

São estes aspectos que explicam o “isolamento” desses países. Na verdade, tal isolamento é só aparente. Entre os países que seguem este modelo de desenvolvimento capitalista e os centros capitalistas mundiais tece-se uma rede de relações estreitas a certos níveis do mercado: importações de meios de produção por parte destes países; exportação de mercadorias, especialmente matérias-primas; e, evidentemente, negociação de empréstimos, uma vez ultrapassado o eventual bloqueio diplomático consequente à luta armada. Neste modelo de desenvolvimento a penetração do capital estrangeiro não é nula, mas distingue-se do outro num ponto fundamental: regra geral, não são os capitalistas estrangeiros que investem directamente, mas sim mediante as relações entre os seus Estados e os Estados destes países. O desenvolvimento destas relações económicas Estado-Estado, se é uma consequência do desenvolvimento do capitalismo de Estado nestes países, não deixa de ter efeitos sobre os países investidores, reforçando aí o papel económico do Estado e contribuindo, portanto, para remodelações estruturais importantes. Em suma, o “isolamento” dos países decorrentes deste modelo é uma forma aparente; na origem dessa ilusão está o facto de as relações com o mercado capitalista mundial não serem estabelecidas na base a que a maior parte de nós está habituada, de capitalista a capitalista, nem sequer na base em que em grande parte se processam nos países que se integram no primeiro modelo de desenvolvimento descrito, de capitalista a Estado; não se trata de isolamento, mas do predomínio das relações económicas típicas da actual fase do capitalismo de Estado, as relações de Estado a Estado no processo de integração capitalista.

ASPECTOS PARTICULARES DO CAPITALISMO DE ESTADO NA CHINA. O MAOISMO

Tudo isto se aplica à China, que, como disse, é um dos exemplos típicos deste segundo modelo de desenvolvimento. No entanto, o caso chinês tem uma particularidade específica muito importante: o limitado desenvolvimento da indústria capitalista na China anterior a 1949 teve como efeito a escassez de gestores tecnológicos, isto é, daqueles gestores que têm como função o conhecimento e o controle dos aspectos técnicos da produção, o preenchimento do espaço que na tecnologia capitalista separa o produtor dos meios de produção. Na maior parte os gestores existentes na China antes de 1949 eram administradores, burocratas, quer do aparelho de Estado oficial quer do aparelho de Estado organizado pelo Partido Comunista nas regiões sob o seu controle. Isto levou a que, quando o Estado em 1956 concentrou nas suas mãos a prática totalidade dos capitais industriais existentes, os capitalistas particulares que acabavam de ser desapossados fossem mantidos em funções de controle tecnológico, transformando-se assim em gestores e em capitalistas de Estado. O processo de expansão acelerada do capitalismo num país com as dimensões da China e com a sua escassez de indústrias permitia a integração maciça nos corpos do capitalismo de Estado daqueles que ontem ainda eram proprietários capitalistas particulares, sem que se desenvolvessem, ou agudizassem, as suas fricções e hostilidades contra a camada dos capitalistas de Estado já estabelecidos anteriormente, isto é, contra os que se desenvolveram no aparelho de Estado das regiões controladas pelo Partido Comunista até 1949 e no aparelho de Estado central de 1949 a 1956. Foi, em suma, a prática inexistência anterior de uma tecnocracia e a amplitude das funções que os gestores tinham de executar que permitiram a estes elementos, em princípio hostis, fundir-se na nova classe dominante.

É esta a base objectiva de uma das diferenças importantes entre os processos de desenvolvimento do capitalismo de Estado na URSS e na China.

Quando, com a derrota e a reabsorção da revolução proletária de 1917-1918, a URSS iniciou sistematicamente um desenvolvimento capitalista de Estado, o vasto sector rural da sua economia era há um ano e meio ainda semifeudal, mas o sector industrial era dos mais evoluídos do mundo de então. Na Rússia existia a mais alta concentração capitalista da indústria nessa época, o que se reflectia, por exemplo, no facto de o número de assalariados por fábrica ser, em média, superior ao dos grandes países capitalistas, e a produção de certas indústrias de base, como no ramo do aço, era das mais elevadas do mundo. Em virtude desta situação, na altura da revolução de 1917-1918 a Rússia possuía uma classe de gestores tecnocráticos que, se compararmos com o que aconteceria posteriormente na China, distinguia-se por duas importantes características: a) ser consideravelmente extensa e bem preparada, podendo, pois, de imediato lançar-se nas tarefas de planificação global da economia; b) tendo-se formado e desenvolvido antes de 1917, portanto exteriormente ao partido leninista, o “meio intelectual” (fundamentalmente os gestores dominando os conhecimentos necessários ao prosseguimento do processo produtivo) foi sempre muito mais vasto do que o meio partidário propriamente dito, daí que certas lutas intra-gestores tomassem a forma aparente de conflitos entre o “meio intelectual” e o partido, o que aliás ainda hoje tem repercussões, como a simples leitura dos jornais diários nos mostra.

Na China, pelo contrário, o meio intelectual — ou seja, para o caso que agora nos interessa, os gestores — fundiu-se inteiramente com o aparelho partidário. Ou se tratava de gestores formados antes de 1949 nas regiões sob o controle do Partido Comunista e que, portanto, se desenvolveram no interior do partido; ou de gestores formados, após 1949, no aparelho de Estado central, no campo também do Partido Comunista; ou então daqueles gestores provenientes da antiga classe dos capitalistas particulares que, para serem incluídos na nova classe dominante, tiveram de mostrar uma sujeição política e ideológica, de que a filiação no Partido é a principal garantia. Deste modo, todos os conflitos entre gestores, na China, implicam forçosamente conflitos no interior do Partido Comunista, o que lhe proporciona uma vida muito mais atribulada do que a do seu congénere russo.

Mas a restrição dos quadros tecnocráticos nos primeiros anos da hegemonia do Partido Comunista em toda a China não limitou os seus efeitos à dinâmica social da nova classe dominante. Essa situação histórica teve e tem efeitos muito importantes no próprio perfil da luta do proletariado chinês contra o capitalismo de Estado em expansão. É que, mesmo integrando a totalidade dos antigos capitalistas particulares, os gestores e os capitalistas de Estado chineses têm sido — até há pouco — insuficientes para procederem à planificação económica global; e sem planificação da totalidade da economia o capitalismo de Estado integral não pode sobreviver, teria de recorrer ao puro jogo dos preços no mercado para definir os equilíbrios económicos, e isso implicaria uma completa reestruturação económica e política, que teria como efeito, pelo menos nas condições chinesas, a derrocada do regime e o regresso à situação económica e política anterior — mas essa situação anterior dera provas patentes de não poder proceder ao desenvolvimento capitalista da China nem sequer à manutenção da situação económica existente. Parecia, pois, tratar-se de um círculo vicioso; os interesses do regime e a pressão inelutável das necessidades objectivas do capitalismo na China obrigavam a um sistema de capitalismo de Estado com planificação global da economia, mas a fraqueza histórica do capitalismo chinês impedia a existência de uma classe de gestores suficientemente ampla para poder encarregar-se dessa planificação.

A novidade do maoismo, em tudo o que diz respeito às suas concepções do Estado, do partido e do movimento de massas, consiste precisamente na resolução desse problema. É este o seu papel histórico.

Há não muito tempo, lia-se na Gazeta da Semana uma carta, assinada João Soares, em que se criticava um artigo, de uma série dedicada aos actuais acontecimentos na China, publicado num número anterior do mesmo jornal — aliás, referir-me-ei brevemente a essa série de artigos no fim desta brochura. É difícil alguém, sobre este assunto, escrever tantas coisas certas em tão poucas linhas, daí que passe a transcrever a maior parte da carta: «Nuno Pereira da Silva (o autor da referida série de artigos) aponta para a diferença que, segundo ele, existe entre ser maoista e ser pró-chinês. Cansado das desconcertantes viragens da política chinesa, opta pela cómoda posição de ser maoista sem ser pró-chinês, e fica assim ao abrigo de dilemas como: Lin Piao era maoista ou traidor revisionista que visava restaurar o capitalismo, Teng Hsiao-p’ing é um maoista ou idem e Chou En-lai? Hua Kuo-feng será um verdadeiro maoista ou mais um capitalista disfarçado? Porque maoista há só um: Mao Tsé-tung [Mao Zedong] (e mesmo aí…). Para Nuno Pereira da Silva o maoismo é o produto de uma cabeça iluminada, não a expressão ideológica de um processo real em curso na China (sublinhado meu), um processo de acumulação do capital num país subdesenvolvido marcado por constantes lutas entre facções rivais do grupo dirigente (Partido/Estado). Como tal não tem nada a ver com o fim do capitalismo, da produção mercantil, do trabalho assalariado. Com a construção da “sociedade onde o livre desenvolvimento de cada um é a condição do livre desenvolvimento de todos”» (Gazeta da Semana, 22 de Abril de 1976, p. 13). Ao dizer isto, o autor da carta vai muito mais longe do que a mera referência à situação chinesa e indica a única possibilidade de desenvolver a teoria revolucionária: proceder à análise marxista das correntes ditas marxistas, ou seja, aplicar o marxismo a ele próprio, analisar de modo marxista o marxismo. Os nossos marxistas-capitalistas de Estado reservam o método crítico e dialéctico para a análise da burguesia de propriedade particular e caem nas formas mais gritantes de idealismo quando se referem ao “socialismo” dos países de capitalismo de Estado integral.

Trata-se em suma, para o maoismo — e aqui reside a sua originalidade — de organizar um sistema em que fossem os próprios proletários a encarregar-se da aplicação prática do plano económico global e dos estudos e sugestões prévios à sua elaboração, ao nível de cada unidade de produção, mantendo os gestores e os capitalistas de Estado o controle de todo o processo mediante o seu domínio dos aspectos centrais da elaboração e da execução do plano. É esta a função económica do conhecido sistema maoista que pretende fomentar a iniciativa de base ao mesmo tempo que impede a unificação dessas iniciativas. Para o maoismo, o proletariado deve ter uma certa amplitude de acção — aquela de que os capitalistas de Estado precisam para suprir as suas próprias deficiências. Mas a amplitude dessas iniciativas é, em primeiro lugar, sempre circunscrita aos locais de produção, não podendo unificar-se com outras iniciativas localizadas, e não se convertendo assim num movimento autónomo; em segundo lugar, têm por função o reforço do capitalismo de Estado. Trata-se, ainda aqui, de uma forma de trabalho gratuito: os proletários fazem gratuitamente as funções de gestores, os explorados procedem gratuitamente à execução de um certo número de tarefas necessárias à sua própria exploração. É este o sentido real da “linha de massas” maoista e o segredo da diferença entre o sistema staliniano de planificação e o sistema maoista. Essa diferença não se explica pela cabeça dos dirigentes, não é o resultado de uma diferença ideológica com efeitos reais, como pretendem os idealistas arautos do maoismo, mas é o resultado de uma diferença real com efeitos ideológicos. As particularidades do maoismo relativamente ao modelo staliniano de capitalismo de Estado explicam-se pelo passado do capitalismo em cada um dos países e pelo tipo de desenvolvimento que o capitalismo de Estado neles tem de prosseguir hoje. Não pretendi aqui, como é evidente, esgotar o assunto, mas somente introduzir a questão mediante a elaboração de alguns pontos sintéticos.

As particularidades da situação económica e social que o maoismo reflecte e encabeça tiveram efeitos muito importantes nas lutas da classe operária na China, nomeadamente no grande desenvolvimento que por vezes apresentam e na maneira aparentemente súbita como eclodem, bem como na forma como são recuperadas pela classe dominante. Mas trata-se sempre de uma expansão da luta do proletariado contra o maoismo ou, no pior dos casos, apesar do maoismo, e não por causa dele.

NOTAS

Nota 1 Para uma visão global, consultar Ch. REEVE, O Tigre de papel. Sobre o desenvolvimento do capitalismo de Estado na China, 1949-1971, Spartacus, Lisboa, 1975. Num livro da minha autoria (Para uma teoria do modo de produção comunista, Afrontamento, Porto 1975) dediquei parte de um capítulo a uma análise detalhada da “revolução cultural”. Mais recentemente, foi publicado China, País capitalista ou socialista?, Assírio e Alvim, Lisboa 1975; trata-se de uma antologia em que o texto mais extenso, «24 Teses…» é da minha autoria, o que o antologiador, José Mariano Gago (assinando sob os seus outros nomes de José P. Rebelo), embora o não ignorasse, entendeu, por razões que só ele saberá, dever ocultar. Algumas dessas Teses serviram de base para o capítulo que dediquei à “revolução cultural” em Para uma teoria…, o que será evidente para quem leia ambos os textos, sofrendo, no entanto, um certo número de alterações importantes sob o aspecto teórico. O mais grave é que o referido antologiador, não indicando a autoria das «24 Teses…» que publica, não mencionou, pois, as correcções teóricas que me pareceu necessário ter-lhes introduzido. Por isso, o principal interesse das «24 Teses…», tal como foram editadas, reside sobretudo nos dados que fornecem sobre a política externa chinesa.

Esta primeira parte do livro está ilustrada com obras de Li Shan (1944-       ).

 

Leia aqui a Apresentação, a 2ª Parte, a 3ª Parte, a 4ª Parte e a 5ª Parte.

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