Por João Bernardo

O FIM DO MAOISMO E A NOVA HEGEMONIA DOS CENTROS

Após o esmagamento do proletariado, o aparelho administrativo foi reconstruído sobre a base inicial de uma mistura de elementos maoistas do Partido, de gestores tecnológicos das indústrias e de chefes militares, em que estes últimos mantinham a preponderância, fortes da coesão repressiva mostrada pelas suas hostes.

Derrotados os liuchistas pelas massas proletárias, esmagada em seguida a revolta proletária, tudo parecia assegurar aos maoistas uma vitória duradoura. No entanto, não venceram. Que lhes faltou?

Faltou-lhes, antes de mais, a possibilidade objectiva de continuar a vigorar o regime que constituía a sua única razão de ser. Fora já o esgotamento das possibilidades de mobilidade social maciça que obrigara os maoistas a desencadear uma repressão generalizada na “revolução cultural”. Essa mesma evolução reforça agora o espírito fechado, de casta, na classe dominante, sublinhando a sua coesão. Primeiro, verificar-se-á o reaparecimento dos elementos tradicionalistas afastados do poder (se bem que não do próprio Liu Shao-ch’i) e os gestores e capitalistas de Estado depressa consolidarão as suas fileiras, tapando a brecha que o conflito interno da “revolução cultural” tinha aberto. Em seguida, o esgotamento dessa mobilidade social acarreta a decadência de todos aqueles que nela assentavam o seu poder, e a derrota do movimento proletário na “revolução cultural” marcará a transformação do mito maoista, de realidade ideológica viva e sentida pelas massas, em formalismo mumificado reservado para certas cerimónias sociais e políticas. A consolidação do capitalismo de Estado na China e o estabelecimento definitivo da sua classe dominante como camada fechada e de reforçada coerência condena o populismo maoista à extinção progressiva e marca a ascensão à condução do regime de um centrismo pragmático que virá a ser, no futuro, colegial. É este o processo que, a nível social, o capitalismo de Estado chinês percorre desde o fim da “revolução cultural” e que tem atravessado, nos últimos meses, um período conturbado.

Chou En-lai fora desde sempre o elemento unificador das novas camadas de gestores e de capitalistas de Estado. Já antes de 1949 era ele o principal elemento de ligação entre o aparelho burocrático e estadual das zonas sob a administração do Partido Comunista e os burocratas e capitalistas particulares das zonas sob a alçada do Kuomintang (Nota 7). Após 1949, sempre que irrompiam os conflitos entre as várias camadas da classe dominante, Chou era o fiel que marcava o ponto de equilíbrio e em seu torno se refazia a unidade posterior. Mas as novas condições sociais objectivas em que se desenvolveu e encerrou a “revolução cultural” reforçaram o papel e a função de Chou En-lai. A diminuição da mobilidade social, acarretada pelo facto de a classe capitalista de Estado poder encarregar-se da gestão e da administração sem precisar de fazer apelo às iniciativas parcelizadas do proletariado, trouxe à classe uma coesão nova e sublinhou-lhe o espírito de casta. Chou En-lai, o homem que consubstanciava essa unificação das várias facções da classe dominante, encontrou o terreno mais propício à sua actuação. No fim da vida, o papel histórico que sempre tivera expandiu-se a todos os campos, sem limites.

O estabelecimento de uma nova coesão na classe capitalista de Estado seguiu inicialmente dois grandes eixos: 1º) Por um lado, a reintegração de todos os gestores, nomeadamente os liuchistas, que as massas proletárias em revolta tinham afastado. Sacrificou-se, é certo, a figura de Liu Shao-ch’i, demasiado odiado pelo proletariado e inimigo figadal da ala maoista. Mas o número dois da facção liuchista, Teng Hsiao-p’ing, regressou para ocupar os mais altos postos. 2º) Por outro lado, o exército, que precisamente por estar sob a direcção maoista pudera constituir o elemento mais coeso durante os tempos conturbados da “revolução cultural”, tornou-se o principal factor de cisão entre os capitalistas de Estado. Era necessário que a direcção do exército exprimisse a nova orientação, que reproduzisse a nova coesão da classe, em vez de reproduzir uma hegemonia maoista que não tinha já razão de ser. Daí o assassinato de Lin Piao e dos principais dirigentes maoistas no exército. Junto com eles foi morto também o principal ideólogo maoista na burocracia civil, Ch’en Po-ta [Chen Boda], o autor das célebres cartas à direcção do Partido Comunista da URSS, que iniciaram a polémica sino-soviética, no princípio dos anos sessenta, marcando o ressurgimento de um radicalismo leninista [Nota: Esta informação corria na época, mas era um boato falso. Ch’en Po-ta foi afastado em 1973 e mais tarde condenado à prisão, sendo libertado pouco depois. Morreu em 1989. JB].

A ascensão de Teng e a eliminação de Lin não significou, como interpretaram muitos jornalistas apressados, que a hegemonia tivesse passado dos maoistas para os liuchistas. Significou que a hegemonia se consolidou no centro entre as várias tendências, isto é, que se atenuaram as razões que levavam à constituição de facções ideologicamente bem definidas, reforçando-se assim a coesão da classe dominante. A ascensão de Teng Hsiao-p’ing representa a reintegração no aparelho partidário e estadual de uma facção dos capitalistas de Estado que dele havia sido afastada, o que era uma condição necessária para o restabelecimento da coesão e para a hegemonia dos centros. O assassinato de Lin Piao e dos principais dirigentes maoistas do exército representa a subordinação da direcção militar à nova hegemonia dos centros. Ambos os factos são expressão desta mesma tendência.

A facilidade com que Lin Piao e os seus seguidores foram abatidos, num golpe do palácio, sem que o proletariado tivesse mexido um dedo em sua defesa, revela bem o desprestígio em que a facção maoista caiu após ter encabeçado a repressão à revolta proletária na “revolução cultural”.

Ao longo deste processo a facção maoista, esgotadas as necessidades objectivas que lhe davam a razão de ser e a força histórica, desagrega-se, passando a maior parte dos seus elementos sob a direcção dos centros hegemónicos de Chou En-lai, e só entre certos antigos dirigentes maoistas perduram laços sólidos para a defesa da posição burocrática que têm ocupado. Os comentadores políticos dos jornais chamam-lhes agora, geralmente, “grupo de Shanghai” [Nota: Bando dos Quatro. JB], mostrando por aí a redução da importância de uma tendência que outrora se alargava à dimensão de todo o país. Se, na acepção larga, a facção maoista engloba, como afirmei repetidamente, os baixos quadros e os dirigentes superiores cuja importância política está dependente do processo de mobilidade social, na acepção mais rigorosa de força política organizada o maoismo, hoje, reduz o seu poder a Shanghai. Isto não é um acaso. Sendo o principal centro industrial chinês, é aí que desde 1949 o processo de mobilidade social foi tecendo laços mais estreitos entre os recém-capitalistas de Estado e as massas proletárias. De representante de um vasto movimento social, a facção maoista converteu-se numa mera teia de relações com a finalidade imediata e única de preservar as posições dos seus membros no aparelho de Estado.

Nas nuvens, senil e glorioso, paira Mao Tsé-tung. Aquele que foi um dos maiores chefes militares dos tempos modernos, o dirigente de uma das formas mais originais de inauguração e desenvolvimento do capitalismo de Estado, filósofo de mérito e poeta de génio certo, é hoje, morto em vida e sequestrado, simplesmente o nome que encabeça o repertório das citações e frases convencionais que sempre são proferidas na abertura e no encerramento das sessões oficiais.

A China de ontem acabou. É a de amanhã que começa.

TENG HSIAO-P’ING, HERDEIRO IMPOSSÍVEL

A morte de Chou En-lai, pelos problemas imediatos de sucessão que trouxe, veio agudizar esta passagem de um capitalismo de Estado em desenvolvimento para um capitalismo de Estado já consolidado.

Chou podia consubstanciar a união pragmática das várias facções da classe dominante chinesa porque o seu longo passado de centrismo oportunista, a sua militância no Partido desde os primeiros tempos, as atribulações da sua vida, tudo isso fizera dele um personagem prestigiado nos meios do poder e revestido de atracção pessoal. Não há mais ninguém nas mesmas condições para desempenhar a função que fora a sua. Torna-se por isso necessário caminhar para uma direcção de tipo colegial, onde uma das figuras de topo poderá ser mais relevante do que as outras, mas onde a personalização ideológica do poder não será tão nítida. Isto implica, no entanto, remodelações mais ou menos profundas no aparelho governamental e partidário. A colegialidade de direcção, expressão de uma maior coesão na classe capitalista de Estado e de um estádio mais avançado na consolidação do regime económico, só poderá resultar de um processo relativamente lento.

As primeiras peripécias desse processo desenrolam-se hoje na China e duram ainda.

Chou morreu a 8 de Janeiro deste ano. Rei morto, rei posto, e em geral é o discurso fúnebre que sagra o sucessor. O elogio do morto é como que a apropriação das suas virtudes. Uma semana depois o elogio fúnebre de Chou é pronunciado por Teng Hsiao-p’ing. Teng tinha desaparecido da cena pública em 1967, quando a facção maoista conseguiu a liquidação de Liu Shao-ch’i, em cuja tendência Teng ocupava, como disse, o segundo lugar. Mas, para o centrismo pragmático que Chou En-lai representava, Teng era uma figura de grande utilidade futura, importante para a reconciliação das facções da classe dominante. Chou conseguiu, por isso, poupar Teng aos ataques públicos dos maoistas e em 1973 reintroduziu-o na vida política, nos escalões máximos da hierarquia governamental (vice-primeiro-ministro). De então em diante, Teng será o mais conhecido chefe de fila da facção tradicionalista.

É evidente, pois, que entre Chou e Teng não havia continuidade. O primeiro-ministro que acabara de morrer fora o conciliador das facções, o homem cuja linha se definia pelo ponto médio do equilíbrio entre as várias tendências. Teng Hsiao-p’ing era o representante de uma dessas tendências. Para que pudesse ter o papel de Chou seria necessário que a facção que representava obtivesse a hegemonia sobre as restantes. Mas as condições objectivas impunham, como disse já, uma diferente evolução da classe social dominante na China; não se tratava para nenhuma das facções de conquistar a hegemonia, mas sim de prosseguir a coesão e, quanto possível, a fusão das facções. O destino de Teng estava marcado desde o início. A sua ascensão fora um erro histórico e a História só permite que lhe sejam infiéis durante espaços de tempo muito curtos. Ai de quem a não sabe ler!

A prova da impossibilidade da ascensão de Teng pôde de imediato ser obtida quando a facção maoista impôs como condição da não-ruptura a eliminação de Li Hsien-nien [Li Xiannian], vice-primeiro-ministro encarregado dos assuntos económicos, que desapareceu da cena pública logo após os funerais de Chou En-lai. Politicamente, Li não era propriamente um elemento da facção de Teng e dos antigos liuchistas, e talvez seja melhor definido dizendo-se que ocupa, entre os conciliadores pragmáticos do grupo de Chou En-lai, o lugar oscilante que unia esse centro com a facção de Teng. No entanto, a estratégia económica definida por Li Hsien-nien (de facto, pelo grupo de Chou em geral) englobava completamente os interesses da facção tradicionalista.

Essa estratégia económica distingue-se da defendida pela facção maoista sobretudo pela insistência nas relações com o capitalismo estrangeiro. A linha económica de Chou En-lai e de Li Hsien-nien, prevalecente desde o fim da “revolução cultural”, pretende proceder de novo a uma rápida concentração do capital e a um salto em frente na industrialização. Para isso, além sem dúvida de um reforço na exploração dos proletários, procede, no campo do comércio externo, a compras maciças de meios de produção e bens de equipamento e, também, de processos tecnológicos de fabrico.

Foram essas compras, aliás, que provocaram o enorme desequilíbrio na balança comercial chinesa:

volume global (em milhares de milhões de dólares) saldo (em milhares de milhões de dólares)
1966 4,24 + 0,18
1970 4,29 – 0,19
1971 4,71 + 0,11
1972 5,91 + 0,25
1973 9,86 – 0,08
1974 13,71 – 1,11
1975 – 0,15

(Fontes: Encyclopaedia Universalis, Universalia 1976, p. 200, segundo o Centro Francês do Comércio Externo; Le Monde, 17 de Abril de 1976, segundo a JETRO, Organização Japonesa do Comércio Externo.)

Segundo a Organização Japonesa do Comércio Externo, a balança comercial chinesa será excedentária em 1976 e 1977. Este reequilíbrio da balança comerciai deve-se unicamente a uma diminuição das compras ao estrangeiro, de tal modo que os países visados estão a baixar a taxa de juro sobre o pagamento das fábricas que vendem à China inteiramente prontas. Os países da OCDE decidiram, em 1974, praticar nesses casos, e relativamente à China, uma taxa de juro de 7,5%. O Japão baixou-a já, perante a ameaça da diminuição das importações chinesas, para 6,5%, e consta que a Itália e a França farão o mesmo em breve.

Em suma, a linha de desenvolvimento económico seguida pelos centros pragmáticos dominantes reforça as ligações entre os gestores tecnocráticos chineses e a tecnocracia mundial. Porque é que os gestores maoistas se opõem a esta via de desenvolvimento económico? Não esqueçamos que a base de apoio da facção maoista são os quadros que ascenderam à classe dominante em virtude da grande mobilidade social que até há anos era possível. Trata-se de baixos quadros técnicos, desprovidos em geral de grandes conhecimentos no que respeita a processos tecnológicos capitalistas mais complexos, ou de quadros burocráticos e administrativos regionais e provinciais, afastados de Pequim. Não só as relações com a tecnocracia estrangeira lhes escapam das mãos, porque se processam mediante o poder central onde a facção maoista está fracamente representada, como sobretudo originam o desenvolvimento de sistemas tecnológicos que estes gestores de fresca promoção ignoram. O semanário conservador americano Time escrevia argutamente: «A China tem uma grave solução de continuidade nas gerações. A maior parte dos dirigentes da facção moderada, como Li Hsien-nien e o ministro da Defesa, Yeh Chien-ying [Ye Jianying], são veneráveis burocratas do partido. A generalidade dos radicais são quadros jovens, que conseguiram aumentar o seu poder pessoal durante a Revolução Cultural, e esses ganhos são agora ameaçados pela reabilitação da velha guarda de Chou. Diz um analista americano: “Há uma quantidade de jovens com fraca preparação que foram promovidos apesar da sua falta de habilitações. Estes, ditos ‘promovidos de helicóptero’ porque subiram rapidamente na vertical, procuram permanecer a elevada altitude”» (19 de Abril de 1976, pp. 15-16). A base material da existência dos gestores como classe é o preenchimento da barreira de conhecimento que separa os proletários dos meios de produção. É a própria tecnologia capitalista que exige os gestores — por isso toda a luta contra o capitalismo terá de ser também uma luta pela remodelação da tecnologia, como atrás escrevi; e os gestores variarão consoante as exigências dessa tecnologia. Daí que os gestores da facção maoista defendam sobretudo um tipo de desenvolvimento baseado nas técnicas tradicionais, aquelas que conhecem e a que têm mais fácil acesso. É este o segredo da tão falada “independência nacional” no desenvolvimento industrial da China, mera utopia numa época em que o capitalismo é um modo de produção inteiramente internacionalizado, mas que sintetiza o programa económico e social da facção maoista — bem como as suas limitações e a sua impossibilidade última de realização.

Esta fraqueza da facção maoista reflectiu-se perfeitamente nas peripécias da sucessão de Chou En-lai. Se os maoistas foram suficientemente fortes para impor o desaparecimento de Li Hsien-nien, foram demasiado fracos para obter qualquer mudança na política económica, que permaneceu absolutamente inalterada, bem como para conseguir a ascensão do seu principal representante actual, Wang Hong-wen [Wang Hongwen]. Este, que apareceu durante algum tempo (semanas? dias?), após o X congresso, como o “número três”, logo a seguir a Mao e a Chou En-lai, no aparelho do Partido, isto é, no aparelho propriamente ideológico do capitalismo de Estado, é um militar encarregado de funções de controle e de organização do trabalho em Shanghai, quartel-general do maoismo actual.

Em suma, nos dias que se sucederam à morte de Chou En-lai vemos o representante máximo da facção tradicionalista ascender a primeiro plano, sem que a facção maoista consiga que o seu candidato ganhe a sucessão ou sequer que passe a dominar qualquer lugar importante, e tudo o que obtém é o afastamento do principal dirigente da economia, mantendo-se no entanto inalterada a política por este seguida. Situação provisória e instável, porque Teng só poderia manter a força política de que até então gozara se não procurasse ultrapassar os limites da facção que encabeçava, mas não poderia nunca, enquanto chefe de facção, constituir o centro da unificação actual da classe dominante. O desenlace não poderia esperar, e era previsível também que os maoistas tivessem nele um papel secundário, tão fracos tinham sido os trunfos por eles obtidos na luta pela sucessão de Chou.

NOTAS

Nota 7 Partido de Chiang Kai-shek, que controlou até 1949 o governo oficial chinês e que, após a vitória do Partido Comunista, reduz o seu domínio à ilha Formosa (T’ai-wan).

Esta terceira parte do livro está ilustrada com obras de Fang Lijun (1964-      ).

 

Leia aqui a Apresentação, a 1ª Parte, a 2ª Parte, a 4ª Parte e a 5ª Parte.

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