Por Isadora de Andrade Guerreiro
Parecem estar ocorrendo transformações recentes na composição das classes populares, tendo em vista a correlação entre a crise do trabalho na sua forma assalariada-industrial e a ascensão de formas ultraconservadoras na política — mas também de novas formas de organização de novos grupos de trabalhadores. Sei que o terreno de discussão é minado e que são muitos os elementos para analisar o cenário. Gostaria de colocar aqui uma contribuição ao debate, do ponto de vista do processo de urbanização latino-americano em curso — tendo consciência de que ele é apenas uma parte das questões e que, embora não explique tudo, é extremamente relevante de ser considerado.
Tenho em mente a discussão das décadas de 1960/70 sobre as particularidades do desenvolvimento latino-americano, que se basearam muito na observação e descrição da urbanização extensiva, autônoma e precária de nossas metrópoles como índice de que, por aqui, como disse o sociólogo André Gunder Frank, vivíamos estruturalmente um “desenvolvimento do subdesenvolvimento”. As vertentes marxistas desta discussão, com diferenças importantes, convergem na perspectiva de que a autopromoção da moradia pelos trabalhadores é fator relevante — ainda que não único — na formação do fundo de acumulação do capital em toda a região. Este processo seria, portanto, particular dentro do mercado mundial, na medida em que grande parte dos custos de reprodução da força de trabalho assalariada não estaria presente nos seus salários nem diretamente, nem indiretamente (oferecida como serviços pelo Estado, como na Europa). A ocupação de terra com autoconstrução para moradia própria, assim, teria feito parte da formação da nossa classe trabalhadora industrial, para a qual a espoliação urbana conformaria estruturais baixos salários.
No entanto, estamos diante de uma transformação desta dinâmica. Refiro-me especificamente a um fenômeno que está em marcha há cerca de 15 anos, mas que tem se intensificado cada vez mais, de maneira explosiva: o processo de “inquilinização” dos territórios populares, ou seja, o aumento da porcentagem de moradia alugada em relação à moradia própria (independente da legalidade da posse). Dados de diferentes países do subcontinente e regiões brasileiras mostram que a porcentagem de locação residencial tem crescido em todas as faixas de renda — o que acompanha a tendência à concentração de capital e propriedade no capitalismo. Porém, em muitos locais, ela é mais acentuada nas mais baixas, de maneira combinada com três fatores relevantes: informalidades variadas (edilícias, urbanas, contratuais e/ou fiscais), responsáveis de famílias jovens (até 30 anos) e mulheres solo. Compondo o quadro, os locadores destes locais são, na sua maioria (ainda), da própria comunidade. São transformações importantes dentro de um quadro relativamente estável, em toda a região, a partir das décadas de 1950/60, de acesso à moradia por meio da posse ou propriedade privada [1].
Baseio-me aqui em informações colhidas em trabalhos variados apresentados no “Seminário Internacional de Moradia de Aluguel na América Latina”, organizado pelo LabCidade FAUUSP no último mês de setembro, em particular na Mesa 2 (Aluguel em favelas) e na palestra de encerramento feita pelo Prof. Pedro Abramo — que revelou dados e imagens impressionantes deste novo cenário.
De acordo com suas pesquisas, as metrópoles latino-americanas vivem um processo de escassez de novas terras periféricas, o que transforma a dinâmica de disputa por elas — pelo mercado formal ou informal. Isso gera dois processos conjuntos: os loteamentos periféricos e o adensamento, via mercado informal, dos assentamentos já consolidados [2]. A novidade, nos dois casos, é o aparecimento de certa centralização de capitais [3] e de gestão territorial privada — muitas vezes de caráter militarizado, mas não só. Suas pesquisas, como as de outros pesquisadores, indicam certa substituição de população dos assentamentos informais, nos quais há um empobrecimento, feminilização e aumento da rotatividade, devido ao aluguel informal. Trata-se de um submercado de rentabilidade superior às áreas formais das cidades, chegando a ser de três a quatro vezes mais alta.
A Profa. Kristine Stiphany (Texas Tech University, EUA), na Mesa 2, com pesquisa nos bairros de Heliópolis e São Francisco (São Paulo), caracterizou este processo de verticalização e consolidação de um submercado informal de alugueis por meio da historicidade incorporada em cinco tipologias encontradas concomitantemente em campo, com as quais ela constrói a hipótese de que as pessoas estão construindo para sair da favela, não para permanecerem ali como local de moradia:
1. Presença no imóvel dos posseiros/proprietários originais ou de longa data que adicionam lajes sobre a casa, sem alteração do uso familiar do térreo (normalmente residencial com comércio na frente) — com valores de cerca de R$550/mês por unidade locada;
2. A família original passa a ocupar o segundo ou o terceiro andar do imóvel, fazendo modificações específicas para o aluguel, com conversão do térreo, intencionando mudar para fora da favela — R$600/mês por unidade locada;
3. Tipologia de “Senhorio” (versões modernas e periféricas do cortiço), nas quais há ausência dos proprietários originais, múltiplas unidades com cozinha e banheiro compartilhados, sem comércio, com circulação externa — R$400 a R$450/mês por unidade locada;
4. Uso misto: espécie de consórcio de investimento, com vários proprietários, que alugam cada um, um andar (podendo o imóvel ser construído cada andar por um proprietário, ou um empreiteiro local constrói tudo e depois os proprietário dividem) — R$550 a R$600/mês por unidade locada;
5. Incorporação: tipologia mais próxima às relações de produção do mercado formal, onde um microempreendedor (agente externo, intermediário) demole imóveis de baixa ocupação para construir do zero, com tipologia verticalizada padrão, de modo que possa ser replicada no bairro. Stiphany chama esta tipologia de “Inversão coação”, pois é um arranjo que “protege” o proprietário original, com o incorporador pagando um auxílio aluguel para a família sair durante a construção e voltar depois, uma ação semelhante à do poder público, porém de caráter privado e muitas vezes, compulsório. Nesta tipologia, o rendimento é de mais de R$700/mês por unidade locada.
O Prof. Alex Magalhães (UFRJ), na mesma mesa, aprofundou a descrição das práticas sociais que estão produzindo tais tipologias. Segundo ele, as ofertas de imóveis nem sempre são públicas, mas muito ligadas às relações pessoais ou dirigidas. A seleção do locatário também não segue as regras do mercado formal, pois as informações que os locadores levam em conta são mais relativas a conhecimento prévio do que a registros oficiais (cadastros, documentações legais). As negociações preliminares são particulares, caso a caso, embora haja regulação — com os locadores ditando, via de regra, suas condições. Um elemento novo deste processo é a intermediação por corretores imobiliários (de dentro ou de fora da favela) — um elemento típico de mercado consolidado. Assim, a forma da locação ainda se dá, majoritariamente, de maneira oral, mas tem apresentado maiores índices da forma escrita — ainda que não necessariamente ela diga tudo ou mesmo prescinda das negociações orais.
Nesta negociação, ainda segundo Magalhães, são acertados vários elementos que são matéria da Lei do Inquilinato, porém, neste formato, extremamente flexibilizadas. Os prazos são mais curtos ou não existentes; são negociados caso a caso o valor, o modo de pagamento, o reajuste e o que fazer em caso de atrasos (existindo casos observados de negociação de dívidas e até mesmo perdão de aluguéis); há ressignificação das contas de luz: elas não são renomeadas aos inquilinos, como no mercado formal; as garantias são diversificadas, em dinheiro ou outras formas (indiretas ou de ordem social). A chamada “denúncia vazia” — quando o locador requer o imóvel de volta sem necessidade de justificação —, inclusive fora de prazo ou sem aviso prévio, é admitida, de maneira geral, de forma maior do que no mercado formal, pois há maior nebulosidade em relação aos “direitos” dos locatários. O locador, neste aspecto, se arroga, por vezes, certos poderes de uso do imóvel (como de quem pode visitar, quando, cláusulas sobre consumo de drogas, etc.), considerados pela legislação como invasivos. Regulando este tipo de situações, agentes locais são acionados: a “autotutela”, bem como o “direito de resistência” são comuns, se utilizando para tanto, dos dois lados, de ameaça de recurso aos “chefes” locais — tendo como consequência um índice quase zero de judicialização de conflitos. Associações de moradores e órgãos públicos intervêm pouco nestes casos, ao contrário do que fazem na compra e venda de imóveis.
A partir destas análises, percebe-se que a informalidade na produção do espaço, já antiga entre nós, tem adquirido novas dinâmicas. Uma das consequências é o aprofundamento de uma divisão interna nas classes populares, com outra dimensão do rentismo popular, que acaba ocupando um lugar de gestão das intermediações necessárias à reprodução da vida nas quebradas. Parece-me que, do ponto de vista da intervenção estatal no tema, é muito claro o intuito de incentivar a consolidação desta subclasse rentista popular, por um lado, e, por outro, manter a precariedade e a insegurança habitacional dos estratos de renda inferiores, mais jovens e de vulnerabilidades diversas. Faz isso com duas políticas combinadas: por um lado, há uma enorme disseminação de políticas e aluguel temporário em todo o subcontinente, acompanhando remoções em massa; por outro, vemos o exemplo do governo brasileiro, de promover a regularização fundiária dos assentamentos informais. Tal medida, tendo em vista o cenário anteriormente descrito, não tem como objetivo dar mais segurança habitacional às mais baixas faixas de renda — em cuja dinâmica de aluguel informal a regularização não conta em nada, a não ser para, talvez, aumentar seu valor. Seu objetivo é consolidar a classe rentista popular, sua intermediária política e gestora desta população, cuja proximidade voluntária ou não com as redes criminais são extensas.
Gostaria, assim, de deixar aqui algumas questões em aberto: o crescimento de diferentes rendimentos rentistas de maneira desigual internamente às classes populares estaria sendo um dos fatores de sua desagregação e dispersão de interesses? O surgimento de uma classe rentista popular consolidada altera o conflito capital-trabalho? De que maneira? A tendência à predominância do acesso à moradia pela locação informal para a nova geração (com rendimentos de até 2 salários mínimos) — cuja metade gasta acima (ou muito acima) de 30% de sua renda neste quesito fundamental de reprodução da vida — pode significar uma maior disponibilidade para o trabalho precário, porém com maiores retribuições financeiras imediatas? Isso altera a correlação de forças das lutas?
Por fim, quero deixar claro que não acredito que tais transformações sejam saídas para a crise. Parece-me muito mais um conjunto de elementos que caracterizam a particularidade de como a América Latina a tem vivido, cuja consequência política mais relevante tem sido o processo de “milicialização” de todo o espectro social — cujo centro é a privatização e precarização da vida. Tenho certeza de que há outras pessoas mais gabaritadas no assunto para dizer se há elementos “fascistizantes” neste processo, assunto que me interessa, porém acho sempre importante trazer nossas particularidades — que podem apontar outras faces da barbárie, mas também, em alguns momentos, potencialidades únicas.
Notas
[1] Em toda a América Latina (AL), este processo que combinou a fase de industrialização pesada com a predominância do acesso à moradia pela posse levou à situação atual de que a média da região para a locação residencial seja de cerca de apenas 20% (e do Brasil, 17%), enquanto na Europa esse número seja de cerca de 30% e nos EUA e Canadá 33%. Outro dado relevante é que a porcentagem restante, nestas últimas regiões, é totalmente de propriedade privada, enquanto na AL é alto (15%) o índice da denominação “outros” — que pode significar posse precária, cohabitação, favor, etc. Dados do BID.
[2] Segundo a rede de pesquisadores de Pedro Abramo, no Rio de Janeiro, 45% dos domicílios das favelas estudadas têm mais de 3 andares. Segundo Suzana Pasternak e Camila D’Ottaviano, há 10 anos (Censo de 2010) as favelas da Região Metropolitana de São Paulo já tinham 62,3% de seus domicílios com mais de dois pavimentos e 85,2% sem espaçamento entre edificações.
[3] Ainda segundo a mesma rede de pesquisadores de Pedro Abramo, 44% dos locadores das favelas estudadas no Rio de Janeiro têm mais de um imóvel, enquanto em São Paulo, em Paraisópolis, esse número chega a 75%.