Por Manolo
Enquanto escrevo este rápido artigo, todos acompanham atentamente a prisão em flagrante do deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ), bolsonarista, por ordem do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes.
A prisão do bolsonarista se deu depois de um vídeo em que — entre outras coisas — xingou com todos os nomes possíveis vários ministros do STF, chegando a ameaçá-los; elogiou e defendeu o Ato Institucional nº 5 (AI-5), de 1968, que institucionalizou um verdadeiro “golpe dentro do golpe” e inaugurou o período de mais intensa repressão durante a ditadura; e desafiou os ministros do STF, insinuando que eles teriam medo do Exército, a prender o general Eduardo Villas Boas, que em livro recente comentou ter coordenado com o Estado-Maior do Exército a publicação de um tuíte ambíguo que foi interpretado como pressão sobre o STF quando da decisão sobre a prisão do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva.
O bolsonarista já vinha sendo investigado pelo STF em dois inquéritos: um ligado à difusão de notícias falsas pela internet, e outro que investiga a participação dele nos atos que reivindicavam, entre outras pautas antidemocráticas, a chamada “intervenção militar já”. Além disso, o bolsonarista tem um histórico de mau comportamento em sua passagem pela Polícia Militar do Rio de Janeiro, e só conseguiu se eleger à Câmara dos Deputados porque uma sucessão de atestados médicos impediu o curso regular de um processo administrativo disciplinar que poderia tê-lo enquadrado na Lei da Ficha Limpa e tornado-o, portanto, inelegível.
Antes de seguir em qualquer outra discussão sobre o assunto, é preciso analisar alguns elementos interessantes no vídeo que deu origem a tudo isso. A meu ver, o vídeo não passa de mais uma provocação dos bolsonaristas em sua luta pela conquista do Estado — mas preciso qualificar essa afirmação, e para isso preciso de muitas linhas tortas.
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Lá no tal vídeo, o bolsonarista apresenta uma narrativa delirante, comum a muitos de seus correligionários; ao partilhar do mesmo delírio, cada bolsonarista adiciona um elemento novo à narrativa, tornando-a cada vez mais complexa.
Segundo esta narrativa, entre 1979 e 1985 os militares teriam entregue de bom grado o poder aos civis, em especial por pressão da Rede Globo, que teria “manipulado” o povo “ignorante” neste sentido. Colaboraram com esta “manobra” os “terroristas”, “narcoditadores”, “comunistas”, “socialistas”, “petistas”, “esquerdistas”, “corruptos”, “criminosos”, “vagabundos”, “cretinos”, “canalhas” e “filhos da puta” de sempre. Segundo o bolsonarista, os militares teriam “entregado o poder ao povo” com um recado: “se fizer besteirinha, a gente volta”.
Por esta concepção delirante e autoritária da política, a fonte do poder político não é o povo, mas os militares; o “recado” sinaliza essa concepção do poder, e também a concepção de que a democracia em que vivemos no Brasil desde 1985 só existe porque os militares tutelam a sociedade, e podem intervir no poder político quando quiserem.
Ainda segundo a narrativa deste bolsonarista, todo o processo de institucionalização da democracia pós-1985, em especial a circulação de ministros entre o STF e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), teria sido criado para “blindar” esses “de sempre” no poder; a famosa e fantasiosa história de que as urnas eletrônicas seriam “fraudulentas”, mencionada de passagem pelo bolsonarista, se encaixa nessa narrativa, pois se o STF controla o TSE e o TSE controla as eleições, o mesmo grupo que controla o STF agiria para manter a “fraude” nas urnas e perpetuar-se no poder.
Se no vídeo causador da polêmica a narrativa está centrada no STF e nos supostos “mecanismos” usados por seus integrantes para “perpetuar-se no poder”, é porque neste momento é o tribunal o alvo do ataque; quando o alvo é o Congresso Nacional, são destacados outros “mecanismos”, outros sujeitos, outros impropérios.
A narrativa cria uma continuidade entre a ditadura de 1964-1985 e a conjuntura atual, e a cada nova aparição torna-se mais delirante — porque, na prática, nada disso aconteceu. Não há comprovação fática ou documental de nada disso.
Pelo contrário: quem estudou o processo de institucionalização da democracia naquele período tende para o entendimento de que ele foi o resultado de muitos fatores: (1) crise da dívida externa, somada à incapacidade do regime de encontrar soluções estabilizadoras; (2) pressão política da classe trabalhadora e da “sociedade civil organizada” sobre o regime; (3) desgaste do regime e de suas bases de sustentação entre as classes dominantes brasileiras; (4) um pacto difícil entre parlamentares do “sim” e do “sim senhor” (como eram conhecidos jocosamente o Movimento Democrático Brasileiro — MDB e a Aliança Renovadora Nacional — ARENA) para encontrar uma “saída honrosa” para o regime; (5) mobilização intensa de empresários e setores conservadores para controlar o processo de transição (muito bem documentada no clássico O jogo da direita, de René Dreifuss); e (6) um acordo com os militares sobre a responsabilização pelos crimes contra a humanidade cometidos durante o regime, para evitar a “argentinização” da transição.
Vê o mesmo quem estudou (mesmo que só um pouco) o processo constituinte brasileiro entre 1985 e 1990 (ano em que foram promulgadas as últimas constituições estaduais e leis orgânicas municipais).
Chama também a atenção o fato de que o bolsonarista fala em “Suprema Corte” várias vezes no vídeo, como se trocasse o STF pela Suprema Corte dos EUA, que tem atribuições parecidas. Além disso, o bolsonarista reivindica para si e para suas ações um tipo de “liberdade de expressão” à moda estadunidense: lá, para ficar em termos muito esquemáticos e não entrar em detalhes de teoria jurídica, cada Estado pode estabelecer tal ou qual limite para a liberdade de expressão (p. ex.: calúnia, difamação, injúria etc.), mas via de regra vale o princípio de que pode se falar de quase tudo, inclusive fazer discurso de ódio, desde que não se incite passar do discurso à prática. Diz o bolsonarista: “O que é que você vai falar, que eu estou fomentando a violência? Não, eu só imaginei”. É esta compreensão de uma “liberdade de expressão à estadunidense” que leva o bolsonarista a dizer a todo o tempo, por exemplo, que está “imaginando” ministros do STF “na rua tomando uma surra”, que qualquer cidadão pode “conjecturar uma surra bem dada nessa sua cara com gato morto até ele miar, de preferência após cada refeição”…
Isto evidencia, como sintoma, o enorme impacto que o conteúdo e as práticas da extrema-direita estadunidense têm sobre o campo bolsonarista, porque a argumentação vai no mesmo sentido de figuras expressivas deste campo que, por lá, estão sendo responsabilizadas pela intolerância e pelos absurdos que defendem.
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Feitas essas observações, posso passar ao que mais interessa.
O fato de um bolsonarista de destaque eleger o STF como seu inimigo de momento — há muitos outros — e defender publicamente a destituição de todos os atuais ministros apenas confirma o que desenhei de forma muito geral no ensaio Um governo contra o governo: os bolsonaristas julgam que é preciso erradicar do Estado elementos contrários à sua posição política. Nisto, não são diferentes de qualquer outro grupo político que objetive a conquista do poder de Estado, e não deveria espantar a ninguém que assim o fosse. O que estamos vendo diante de nós não é nada além do desenvolvimento prático dessa luta entre os bolsonaristas e “tudo isso que está aí”. Por este objetivo, vale tudo — inclusive provocar crises institucionais.
Aliás, o bolsonarista sabia que seria preso: por todo o vídeo foi apresentando argumentos defendendo que o que estava ali fazendo “não é crime”, disse textualmente que “eu sei que vocês vão querer armar uma para mim”… O vídeo tem todo o jeito de uma provocação gratuita, e o STF, ao votar unanimemente em favor da prisão em flagrante do bolsonarista, não somente cumpriu seu dever institucional de defender os organismos do Estado — difícil seria esperar, como quer certa esquerda e certos liberais, que não o fizesse — como também caiu na provocação. Outro vídeo, feito quando o bolsonarista já estava preso, mostra sua atitude provocatória: instado a colocar máscara no rosto por uma policial funcionária do Instituto Médico Legal (IML) antes de fazer o exame de corpo de delito exigido por lei antes de qualquer prisão, o bolsonarista não somente se negou como passou a ofender a policial e a desafiá-la, cedendo depois de ter feito seu espetáculo para a câmera; e em novo vídeo, já preso, comunica-se com apoiadores por entre as grades e diz que “vai mostrar quem é esse STF”. Pior: este mesmo bolsonarista já é alvo de inquéritos junto ao STF por motivos muito parecidos. Sabia estar mexendo em vespeiro, mas foi lá, e mexeu.
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A esta altura haverá ainda quem se choque quando digo que, em seu modus operandi, os bolsonaristas “não são diferentes de qualquer outro grupo político que objetive a conquista do poder de Estado”. Algumas pessoas já me abordaram sobre o assunto; para elas, ao dizê-lo, eu apago qualquer diferença entre esquerda e direita, entre democratas e fascistas. Esse raciocínio equalizador pretende apenas demarcar diferenças, nunca entender as semelhanças — quando é precisamente nas semelhanças que mora o perigo. Mas, já que insistiram, vou falar das diferenças.
Quando falo dos métodos para a conquista do poder de Estado, a diferença é que enquanto o bolsonarismo age por meio da cizânia, intriga, provocação e agitação de massas por meio de factoides, a esquerda brasileira atuou desde a segunda metade dos anos 1970 sob a influência de forças fortíssimas, que a condicionaram a atuar dentro dos limites das “regras do jogo” da democracia parlamentar representativa: a burocratização e a autocrítica quanto à luta armada.
A burocratização das organizações de esquerda já foi exposta, denunciada e explicada em vários lugares, inclusive aqui no Passa Palavra (ver, por exemplo, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui…), então não preciso me estender muito: basta dizer, de modo muitíssimo esquemático, que as organizações da esquerda viveram em sua estrutura interna a constante pressão entre integrar-se ao capitalismo para obter resultados imediatos para os trabalhadores e romper com o capitalismo para acabar com a necessidade dos resultados imediatos, e que a burocratização acontece quando seus quadros dirigentes seguem a primeira via e suas bases não têm a força ou a vontade suficientes para impor-lhes a segunda.
Já a autocrítica da esquerda quanto à luta armada é menos conhecida, à exceção do público especializado formado em sua maioria por historiadores interessados no tema, e pede um parêntese.
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Já é possível encontrar na internet transcrições de muitos documentos fundantes da resistência armada à ditadura, mas pouco se avançou no sentido inverso. Os documentos que mostram a autocrítica de setores significativos da esquerda brasileira à luta armada como forma de resistência ao regime de 1964-1985 seguem guardados em arquivos e coleções particulares, são pouco debatidos em público, e servem para mostrar que, ao contrário do que pretende a narrativa dos bolsonaristas, a esquerda escolheu desde há muito alcançar o poder de Estado por vias pacíficas, “jogando o jogo”, seja por meio de lutas políticas de massas, seja por meio das regras democráticas.
São raríssimas as cópias sobreviventes de publicações da esquerda brasileira no exílio como Debate (1970-1982), ligada a um grupo dissidente da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), e Brasil Socialista (1975-1977), produzida pelo Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), Organização Comunista Marxista-Leninista Política Operária (OCML-PO) e Ação Popular Marxista-Leninista (APML), três organizações que tentaram aglutinar-se numa Tendência Proletária a partir de tênues afinidades programáticas. Nestas revistas, setores significativos da esquerda brasileira debateram intensamente a opção pela luta armada e seus problemas, buscando reorientar sua prática em função dos movimentos de massas contra o regime que já aconteciam no Brasil sem sua participação.
São ainda mais raros exemplares de documentos como Orientação para a prática, do MR-8 (jan. 1971); Caminho e caráter da revolução brasileira, da OCML-PO (1971); Uma autocrítica necessária, da Tendência Leninista da Ação Libertadora Nacional (TL-ALN) (1971); Informe do interior, do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) (1972); Autocrítica 1967-1974, do Partido Comunista do Brasil -Ala Vermelha (PCdoB-AV) (1974), e também sua “Carta política” de julho de 1973; Pela união dos comunistas brasileiros, do grupo que editava a revista Debate (1975); e Gloriosa jornada de luta e o informe divergente de Pedro Pomar, ambos do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) (1976). Em cada um deles, as organizações olhavam para si próprias e para suas práticas, buscando fazer um balanço da derrota — repito: derrota — em sua luta contra o regime de 1964-1985 e encontrar novos caminhos de ação junto ao movimento de massas.
Menos raros são os romances e biografias de ex-guerrilheiros como Renato Tapajós (Em câmera lenta, 1977), Fernando Gabeira (O que é isso, companheiro?, 1979) e Alfredo Sirkis (Os carbonários, 1981), fáceis de encontrar em sebos a preços acessíveis. As narrativas ficcionalizadas, as alusões e as metáforas ocultam sutilmente fatos históricos; se não se encontra nessas obras o gênio literário capaz de construir o panorama completo de sua época, seu caráter as mais das vezes autobiográfico supre tal deficiência, e permite tê-las como alguma iniciação aos dilemas do período.
Em todas estas revistas, documentos e livros fica evidente uma avaliação: a esquerda brasileira julgou ter errado ao lançar-se na luta armada. Alguns viram o erro na falta de preparação prévia. Outros viram o erro na falta de ligação entre a luta armada, de um lado, e as lutas dos trabalhadores e os movimentos de massa, de outro, como resultado da preponderância do aspecto militar sobre o aspecto político, de massas, em meio às organizações guerrilheiras. Houve quem se aferrasse à “falta de um partido revolucionário” como causa para o fracasso da luta armada. Houve ainda quem se esquivasse de qualquer responsabilidade, transformando numa simples “luta de posseiros” a base de guerra popular que haviam trabalhado por muitos anos para implementar no interior do país, dando-se ainda ao trabalho de clamar vitória frente a uma das maiores derrotas da esquerda brasileira em todos os tempos. (Não vou dizer quem foi; quem quiser, pesquise os documentos citados.) Avaliação por avaliação, todos concordavam em dizer que as organizações guerrilheiras haviam sido derrotadas — repito: derrotadas — em sua luta contra o regime, que a luta armada havia sido um fracasso, e que deveriam abandoná-la em favor das lutas políticas pelo fim do regime, da participação nos movimentos de trabalhadores.
Esta avaliação, às vezes duríssima, parte da experiência conjugada dos “de dentro” e dos “de fora”. Nem todas as autocríticas desembocaram no caminho da “democracia como valor universal”, mas todas concordaram com o fim da luta armada e com a participação em lutas “pacíficas”, desarmadas, de massas.
Quem entrou nestas discussões? Principalmente os exilados. Formou-se deles a imagem de “privilegiados” que tinham como sair do país e viver no exterior. Sim, houve desses. Mas a maioria dos milhares de exilados, sem recursos familiares ou apoio financeiro das organizações em que militavam, passou por penúrias de todo o tipo. Vários viveram no limite da marginalidade. Muitos pegaram qualquer trabalho que aparecesse, por mais precário. Alguns chegaram a organizar assaltos. A situação só melhorou um pouco quando, em meados da década de 1970, organizações sindicais europeias hegemonizadas pelos partidos comunistas passaram a contratar ex-guerrilheiros para trabalhar em suas estruturas administrativas. Não foram feitas, portanto, por diletantes, por candidatos a “intelectuais orgânicos” ou “intelectuais públicos”, mas por gente que participou de ações armadas e viveu a clandestinidade, a repressão e a tortura antes de deixar para trás toda uma vida e partir para o exílio como último recurso. Isso, ao menos, se deve respeitar.
Muitas das organizações envolvidas neste debate, e também suas “herdeiras”, viveram a chamada “Nova República” (1985-1988) ressabiadas. Seus documentos e publicações, embora elogiassem os movimentos de trabalhadores como greves, ocupações de terras no campo e na cidade etc., mencionavam sempre a necessidade de evitar “provocações”. Seus militantes eram constantemente relembrados da necessidade de “construir a Assembleia Nacional Constituinte” de modo “pacífico”. Alguns chegavam a creditar esta postura a uma espécie de “pacto” que teria sido firmado em algum momento de 1981 entre o então presidente João Baptista Figueiredo e o então secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro (PCB), Giocondo Dias. Qualquer militante, grupo ou organização política que apoiasse ações além desse espectro recebia quase de imediato as acusações de “fazer o jogo da direita”, de promover o “divisionismo” e de ser um “instrumento da ditadura militar”.
Esta pesada herança histórica não explica, sozinha, o verdadeiro fetichismo da esquerda brasileira pela institucionalidade, mas ajuda a entender algo do seu modus operandi. Diria mais: estes fatos podem inclusive ajudar a entender algo do que houve em 2013. Seria interessante retirar estes debates dos arquivos e trazê-los ao público. Ou será que o mito losurdiano da “autofobia” — esse suposto “medo de si próprios” que dizem afetar a esquerda, em que tantos hoje acreditam como antes talvez tivessem acreditado em coelho da Páscoa e em Papai Noel — só vale para as supostas “vitórias”?
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Retomando o fio da meada, tanto o bolsonarismo quanto a esquerda querem tomar para si o poder de Estado. Sempre que o fazem, depuram-no de adversários instalados em postos-chave. Mas ao fazê-lo valem-se de métodos diferentes, por razões diferentes. Aí está a diferença em meio à aparente semelhança.
A burocratização das organizações da esquerda e a crítica da luta armada condicionaram a ação da esquerda brasileira ao respeito às “regras do jogo”. Para chegar ao mesmo resultado de “depurar” o Estado de seus adversários, a esquerda ateve-se com bastante firmeza às regras e processos da democracia parlamentar representativa, usando-as com extrema habilidade para conseguir seus objetivos. Evidencia esta habilidade recente declaração de São Sebasti — digo, do ex-presidente Lula, sobre o assunto: “Acho que não é o papel da Suprema Corte mandar prender pessoas, sobretudo um deputado, porque tem foro especializado. […] E nem ela pode se rebaixar a isso. […] Esse cidadão tem de ser punido pelo Congresso Nacional. A Câmara que o julgue, tire o passaporte dele, a imunidade dele, e ele vai aprender a lição”. Com isso, não somente se mostra uma posição sobre o assunto, como se mantém a imagem de defesa da independência entre os poderes republicanos, de defesa das “regras do jogo”.
É a essa habilidade de lidar com as instituições do Estado dentro das regras por elas mesmas estabelecidas, ao mesmo tempo em que se mobiliza a classe trabalhadora para pressionar tais instituições estatais desde o “lado de fora” usando, também, mecanismos institucionais, é a essa habilidade que certos bolsonaristas chamam de “gramscismo”, e que muitos petistas chamaram — talvez alguns ainda chamem — de “estratégia da pinça”: atuar “por dentro” e “por fora” do Estado, manter a presença tanto nos governos quanto nas lutas sociais, para assim dirigir ambos na medida das próprias forças.
O bolsonarismo não tem a mesma sutileza. Despreza as regras e processos da democracia parlamentar representativa porque, como disse em outra oportunidade, há em suas bases número significativos daqueles que “ficaram pelo meio do caminho” na luta para “subir na vida”, daqueles que são os enjeitados da mobilidade social ascendente. O desprezo a estas regras é seu elemento constituinte. Quem se criou na raiva e no ressentimento, é só a eles que sabe recorrer. A raiva e o ressentimento, na política como na vida, são capazes de criar cizânia, discórdia e instabilidade — e são estas as armas do bolsonarismo na sua luta pela conquista do Estado. Basta procurar por qualquer influenciador bolsonarista com um discurso que vá além dos impropérios e a estratégia estará lá, bem desenhada, de alguma forma: todos dizem que o bolsonarismo está fazendo uma “revolução dentro da legalidade”, que “estão entrando no Estado para livrá-lo do comunismo” ou algo nesta linha. (Não vou trazer links para cá, não quero dar audiência a quem não merece.) A discussão estritamente jurídica sobre os limites da liberdade de expressão desencadeadas pelo “caso Daniel Silveira” perde de vista precisamente este fato.
Outro fato, para o qual também já havia chamado a atenção anteriormente, demarca o campo bolsonarista: desprovidos de um movimento de massas, os bolsonaristas promovem todo tipo de disputa com os setores do Estado que se lhes opõem, mesmo quando sabem que a derrota é certa, para criar factoides capazes de agitar massas em seu favor. Uma edição tosca e um enquadramento narrativo simples são o suficiente para “demonstrar” a seus seguidores como são “autoritários”, “ditatoriais” e “perigosos” seus adversários, e isto tem se demonstrado suficiente para fazer a agitação de que precisam no seu constante apelo às massas.
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O espetáculo da prisão do bolsonarista Daniel Silveira parece seguir exatamente este roteiro de provocações, intrigas, cizânia, instabilização institucional e factoides para agitação de massas. O fim da tolerância dos ministros do STF com as estripulias do bolsonarismo militante desenha um limite que, se ultrapassado, coloca em xeque a posição do presidente; por outro lado, não será isso mesmo, não será esse endurecimento do STF o que deseja o bolsonarismo? O bolsonarismo vive de provocações e cizânia, mas até que ponto sua militância está disposta a esticar a corda?
A provocação, agora, colocou frente a frente as duas instituições tidas pelo bolsonarismo como suas maiores adversárias dentro do Estado: o Congresso e o STF, aquele entre os tribunais superiores que mais se lhe opõe. O STF colocou-se unanimemente a favor da prisão em flagrante do bolsonarista que, por ser além disso deputado federal, goza de imunidade parlamentar quanto aos atos típicos do exercício de seu mandato; isto coloca pressão adicional sobre a Câmara dos Deputados, que precisa, agora, decidir quanto ao futuro do bolsonarista.
No momento em que concluo a redação deste ensaio, o recém-eleito presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), já se reuniu com o presidente Jair Bolsonaro, cujo silêncio sobre o caso até o momento parece mais ser resultado de aconselhamento político para fazer tramitar tranquilamente no Congresso pautas polêmicas como a MP das Armas, o novo auxílio emergencial e as reformas administrativa e tributária. Ao não se meter numa briga entre o STF e o Legislativo, evita desgastar-se com ambos, mas pode perder pontos entre seus apoiadores mais fiéis, desejosos de uma intermediação — ou intervenção — presidencial no caso.
Não vou me arriscar a fazer previsões, porque análise política não é exercício de futurologia, nem adivinhação mágica. O que fiz até o momento foi tratar de tendências, que o “caso Daniel Silveira” confirma. Esta tendência do bolsonarismo de depurar o Estado de seus adversários por meio do tensionamentos aos limites das “regras do jogo democrático” poderá ser um elemento-chave de sua vitória. Ou não. Tudo dependerá do que fizermos enquanto isso.
O artigo vai ilustrado com representações de monstros de H. P. Lovecraft. O autor da ilustração em destaque é Stephan Bersier. As outras obras são de Safdarnama.
Bom ensaio. Valeu. A democracia burguesa é o limite, para a esquerda eleitoreira; para o bolsonarismo, não. O que ajuda a explicar porque este está em vantagem sobre aquela.
J, é verdade, “a democracia burguesa é o limite, para a esquerda eleitoreira”. Mas a que custo! Não é, digamos, apenas uma questão de consciência e de vontade. Não é por causa de “gente má” — ao menos não somente. É o resultado de décadas de conflito dentro da da própria esquerda, seja ela eleitoreira ou não. Fosse isso, digamos, uma questão de consciência e de vontade, a revolução já teria sido feita pelas menores organizações dentro da esquerda, aquelas mesmas que mantém a pureza do ideal revolucionário em seus veículos de imprensa. A revolução já teria acontecido, e sua “vanguarda” teria sido gente da nobre linhagem da Escola de Agitadores e Instrutores — Universidade e Diversidade Jakob M. Sverdlov, que há pelo menos vinte e dois anos mantém seu infatigável labor propagandístico e doutrinário na internet, ou da Fundação Encyclopedia Dialectica. Para a esquerda, o eleitoralismo é a face distorcida de sua relação com as amplas massas, com as multidões de trabalhadores de cujos interesses se dizem intérpretes legítimos.
J, é verdade, “para o bolsonarismo, não”, a democracia burguesa não é o limite. Mas a que custo! Não é, digamos, apenas uma questão de forças sociais anônimas. Não é por causa de “gente má” — talvez principalmente, mas não somente. É o resultado de décadas de expectativas frustradas de mobilidade social ascendente, de gente querendo “chegar lá” sem conseguir, de ressentimento transformado em método de ação política. Fosse isso, digamos, uma questão de forças sociais anônimas, haveria bolsonarismo (que é uma espécie muito particular, historicamente situada e conjunturalmente efêmera de fascismo) onde quer que houvesse capitalismo. Mas não, o bolsonarismo é esse amálgama de enjeitados sociais que surfaram no descontentamento das massas com os limites da esquerda eleitoreira, fizeram do ressentimento uma identidade (“olha lá, ele está revoltado com esses corruptos, é como nós!”) e agora vivem do apelo às mesmas massas que desprezam. Para o bolsonarismo, o desprezo à democracia burguesa é a face distorcida de sua relação com as amplas massas, essas mesmas massas que guardam um profundo desprezo à “ordem” mas sentem-se incapazes de derrubá-la, nas poucas vezes em que sonham em fazê-lo.
A meu ver são esses os limites, não outros. Limites que, gostemos ou não, também são nossos. Que tragédia!