Por Fagner Enrique
O coletivo do Passa Palavra, entendendo ser necessário promover um debate o mais amplo e plural possível sobre o restabelecimento dos direitos políticos de Lula e a possibilidade de que volte a disputar a Presidência da República, decidiu pedir a alguns de seus colaboradores frequentes que escrevessem textos sobre o assunto. Esperamos que esses textos e o debate por eles suscitado possam estimular a reflexão em torno dos desafios com que depara a esquerda no momento.
Tem sido assim: o Partido do Lula isola e dispersa, ou incorpora domesticando, tudo o que possa ocupar o seu lugar ou exercer alguma força gravitacional à sua esquerda, para depois apanhar os cacos, amarrá-los todos juntos e arrastá-los consigo para a direita. Como já afirmei noutra ocasião, o mais importante para Lula é que Lula mantenha o controle sobre o Partido do Lula e o Partido do Lula mantenha o controle sobre a esquerda. O pior cenário possível para a classe trabalhadora é, assim, o melhor cenário possível para Lula.
Sim, o Partido do Lula, porque o Partido dos Trabalhadores, coitado dele e coitados de nós, está morto e enterrado faz tempo. Além do mais, Partido do Lula (PL) combina mais com outro PL que aparece por aí de tempos em tempos em muitos lugares, o Partido Liberal, e dizem as más línguas que o PT acabou virando liberal, ou neoliberal, ou passou a misturar o neoliberalismo com um tal de neodesenvolvimentismo, resultando daí uma coisa doida mas funcional. Enfim, Lula é PT e PT é Lula, assim como Haddad é Lula e Lula é Haddad.
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Nos tempos do stalinismo, depois da morte do grande líder, punha-se um retratinho do falecido lá no alto, como uma estrela no topo da árvore de natal, uma seta apontando para o infinito e o além. O grande líder, mitologia fantasmagórica já do lado de lá, pontinho na constelação luminosa dos mensageiros do socialismo, apontava o caminho que o proletariado devia trilhar. Mas era como que um pormenor, um adorno marginal, pois era na base alargada do totem natalino do comunismo, hiperabundante de adereços ricamente decorados, que a questão do quê era substituída pela questão do como. O retratinho, cercado de uma profusão de bandeirinhas e bandeironas vermelhas, perante os quais marchavam exércitos batedores de continência e passavam tanques, mísseis e jatos rasantes, não passava de uma lembrança do que já foi e da memória amarga do que poderia ter sido: era a vitória da burocracia, a supremacia dos novos gestores, daquela coletividade arrogantemente autoritária que ditava o como de cada dia.
O PT, pelo contrário, prefere poluir a nossa visão com imagens do Dom Sebastião, o Desejado, quer dizer, do Lula: novo, barbudão, encorpado e de cabelos escuros, feições rudes e semblante sisudo, ou então aquilo que sobrou. E com muita dificuldade conseguimos ver ali, no meio de tanto messianismo, nalgum canto, uma tímida estrelinha vermelha, perdida e sem brilho: o brilho é todo dele. Por isso o Partido do Lula. O indivíduo, no comunismo, morria para o partido viver… e como morria! Mas no nosso caso o partido abre mão da vida para que o indivíduo, que se aproxima já da morte, pois está velho, possa dar alguma sobrevida, uma ventilada no pulmão de um projeto — de dominação e exploração — que pouco tempo atrás muitos de nós queriam ver sepultado logo de uma vez, enquanto outro mais jovem lutava para sair da UTI neonatal com vida. Quando o velho morrer, talvez leve afinal consigo, para o mausoléu, todos os seus cativos, entre velhos e jovens… ele e todos os seus valorosos utensílios, juntos na escuridão eterna, e a gente buscando uma luz no fim do túnel.
Eu, particularmente, prefiro não abotoar o paletó tão cedo, nem ver o proletariado, com todo o potencial de transformação radical que carrega dentro de si, seguir o mesmo caminho. Vade retro!
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Seria bom para a esquerda hoje não apenas fazer e defender o distanciamento social, a lavagem de mãos, o uso da máscara, de preferência duas, e as vacinas, como também consultar um especialista em distúrbios neurológicos, pois ela parece ter sido acometida — mas veja só! — de uma perda súbita de memória e, aliás, o que é muito curioso, de uma amnésia convenientemente seletiva. Lembra-se apenas de cada uma das injustiças processuais sofridas pelo presidente do “nunca antes na história desse país” — que evidentemente foi tão bom que nunca soube de nada de mau em seu governo, e que a modificação da competência de um tribunal para condená-lo lavou-lhe a alma de qualquer pecado… quanta inocência — e também do golpe de Estado com direito ao contraditório e ampla defesa por vários meses sofrido pela presidenta do coração valente… O resto foi deletado: fizeram formatação do disco rígido sem fazer o backup.
Se esquece a esquerda, coitada, das alianças do Partido do Lula com as forças mais conservadoras, reacionárias e desumanas do Brasil e do mundo, gente que fez carreira, por exemplo, conduzindo a transição democrática a lugar nenhum, gente que derrubou uma ditadura para pôr outra no lugar, e por aí vai… Se esquece também da burocratização, da castração, não imposta mas estimulada nos movimentos sociais pelas burocracias petistas ou pró-petistas. E se esquece que a forma castradora da burocratização nos movimentos sociais combinava muito bem com a forma castradora da democracia representativa e do negócio sindical que Lula soube tão bem administrar nos seus tempos de peleguismo, e que tudo isso combinava muito bem com a forma castradora suprema — para a classe trabalhadora, pelo menos — das relações de trabalho sob o capitalismo, um amontoado de potencial humano abortado e o direcionamento de potencial humano desumanizado para a acumulação dum capital desumanizador.
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Há algum tempo atrás, escrevi um artigo que seria publicado com um título muito diferente, mas um amigo sugeriu que fosse chamado de O que ainda podemos aprender com 2013?. O artigo foi publicado neste site e foi bastante lido, mas fico me perguntando se valeu de alguma coisa, porque com uma memória dessas talvez a esquerda não consiga aprender mais nada. Mas retomarei aqui algo do que foi escrito por lá.
Na época analisada no artigo havia uma certa esquerda que tentava dar forma a um campo proletário autônomo, que fizesse oposição tanto às forças da direita quanto aos burocratas da constelação petista, a outros eternos burocratas e aos novos candidatos à burocracia mais moderninhos que sempre dão as caras por aí. Criticávamos e combatíamos, olhe só, até a burocratização desse mesmo campo autônomo. Essa esquerda sentiu, porém, na própria pele, o papel ativo desempenhado pelo governo do Partido do Lula — de mãozinhas dadas com as forças mais direitosas do país — na maior onda de repressão verificada no país desde a redemocratização, ativando todos os mecanismos de controle social então existentes, aprimorando-os e criando outros mais, conformando um verdadeiro Estado de exceção dirigido. Ou seja, esse mesmo partido, que chegando ao poder conseguiu atrelar ou fazer embarcar, numa embarcação política e econômica cheia de fissuras, as mais diversas forças políticas, da esquerda à direita, viu a certa altura a classe trabalhadora meter o pé na porta — cansada de sufocar no porão ou de poder, quando muito, subir para o andar da classe C — e se sentiu obrigado, com a ajuda de duvidosos aliados e temendo que o barco afinal afundasse, a disparar o canhão dentro do navio, fazendo das fissuras um verdadeiro rombo. Recorreu, pois, aos componentes mais reacionários da política e do Estado — uma coisa chamada polícia, outra coisa chamada ABIN e outra ainda chamada Forças Armadas — e ativou os mecanismos mais antidemocráticos, mais totalitários do Estado capitalista, para esmagar uma revolta que apontava para a reconstrução da própria embarcação por quem a mantinha funcionando, para rumar um rumo muito diferente. O diabo é que a embarcação fez água, da revolta se apropriaram os enjeitados da mobilidade social ascendente e os ratos do navio, aqueles aliados duvidosos, correram para longe do partido: reúnem-se hoje, pelo menos por enquanto, em torno do ratinho mor e sua família.
Mas, se a esquerda tem memória curta, não significa que o resto do Brasil e do mundo também tenha. Muitos devem se lembrar da promessa não cumprida que representou o Partido do Lula no poder, e do serviço efetivamente entregue a quem mais necessitava: para a classe trabalhadora, a diminuição da pobreza, emprego, bens de consumo duráveis, uma viagem de vez em quando, estudar numa federal ou financiar uma particular, aquisição da casa própria… Sim, houve tudo isso, mas também houve o endividamento e a precarização, um salário que acabou sendo um salário de merda, serviços públicos sofríveis, crise habitacional e sanitária nas periferias, violência urbana nos morros, encarceramento nos calabouços, uma boa dose de execuções extrajudiciais e torturas, pagar uma passagem cada vez mais cara para o (Inferno) transporte coletivo, uma rotina de trabalho massacrante, um diploma que acabou não sendo grande coisa, a crise mundial que o homem do crescimento econômico com distribuição de renda chamou de “marolinha” mas que arruinou a vida de muita gente, a perda cada vez maior do poder de barganha (para que serve então a porra do sindicato?), a tendência à fragmentação e ao salve-se quem puder, minando as relações de solidariedade, as novas tecnologias remodelando para pior o mundo do trabalho… Enfim, a realidade nua e crua do capitalismo, bem diferente dos mitos que desviam olhares de lugares certos, não era nada fácil. E quando o mito do operário que virou presidente — o self-made man do Sul — já não convencia muito, o mito do velho nacionalismo ocupava seu lugar: Brasil, um país de todos… Eu sou brasileiro e não desisto nunca… e todas essas palhaçadas e conversas para boi dormir.
Sem contar que a pequena burguesia acabou sacando que no capitalismo existem vencedores e perdedores e ela não tem assento reservado no camarote no sucesso, e que o governo da transnacionalização do capital estava mais afim de garantir estabilidade para gente graúda: os lá de cima, bem de cima. Por sua vez, os subgestores frustrados perceberam que era preciso lutar com unhas e dentes por um lugar ao Sol, entre as elites das elites: uns resolveram sair esbravejando por aí que o Estado tinha sido ocupado pelos “comunistas”, outros resolveram apostar nas credenciais identitárias eventualmente à disposição, turbinadas por uma trajetória de militância. E o grande capital, por fim, acabou percebendo também que aquele modelo de desenvolvimento, promovido por aqueles gestores de esquerda muito competentes, dava origem a uma nova geração de trabalhadores avessos às velhas formas de cooptação, melhor manobrados, nos caquinhos multicoloridos de um mosaico de contradições, pela política das identidades, de um lado, e pela do fascismo de outro. Estavam dadas as condições para quem soubesse explorá-las, e um representante da mais velha política possível, tão megalômano e messiânico quanto seu espelho, soube fazê-lo, mas não sem ajuda.
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E onde estamos agora?
Aquele Estado de exceção vai se cristalizando e se expandindo e, infelizmente para o Partido do Lula, voltou-se também contra ele: para isso o lavajatismo deu sua valiosa contribuição, mas foi também já enterrado, junto do homem dos grampos telefônicos presidenciais e do coordenador de grupos de Telegram; veio então o bolsonarismo, pegando carona no lavajatismo, e empreendeu o cerco às instituições, fustigando-as dia e noite, noite e dia, a ponto de elas resolverem que bom mesmo é reagir usando as armas do autoritarismo, a exemplo do Supremo Tribunal Federal, que tem feito uso da mesma Lei de Segurança Nacional da ditadura que o Capitão e o bando de lunáticos ao seu redor usam para prender, investigar e processar críticos e opositores. Jogo bem jogado…
Ah, mas o golpe mesmo começou lá atrás! Bolsonaro é só o golpe dentro do golpe! — devem dizer — Só a volta da normalidade democrática pode nos salvar, com o Lula pondo ordem na casa.
A mesma esquerda que foi pulverizada pela última vaga de repressão, com o Partido do Lula à frente do governo federal, e comandando a polícia militar que em muitos estados desceu-lhe o cacete, e que comeu o pão que o Diabo amassou vivendo as contradições do modelo lulista de gestão dos conflitos e desenvolvimento capitalista, aposta hoje no grande líder do PT — o único que sobrou — para recolocar o Brasil no rumo da normalidade, como se a exceção não tivesse começado, para ela, sob a batuta de Dilma/Lula, ou Lula/Dilma, e como se a própria normalidade não tivesse de ser, nem tivesse sido efetivamente criticada e combatida. Não quero com isso dizer que não haja governos melhores e governos piores: certamente estaríamos hoje numa situação infinitamente melhor, pelo menos em se tratando do combate à pandemia, se o 13 tivesse vencido o 17. E não há dúvidas de que, optando uma vez mais pelo mal menor, só nos resta uma opção em 2022: qualquer um que não seja Bolsonaro. Mas a questão não é essa: a questão é que a extrema-esquerda não pode ficar voluntariamente presa ao calendário eleitoral, nem à lógica e ao tempo da democracia representativa (aquela que corre o risco de desaparecer), da burocracia, nem muito menos a promessas de eventuais programas de desenvolvimento das esquerdas capitalistas. Digo “das esquerdas” porque não há somente o Partido do Lula: não faltam certamente lideranças de movimentos sociais Brasil afora com muita vontade de sentar na cadeira do chefe da nação para usar a caneta BIC.
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A questão é, e sempre será, a de encontrar saídas, explorar as brechas existentes, desarticular o poder, desafiar a exploração, dividir os exploradores, não a nós mesmos, e nesse processo, descobrindo soluções enquanto defrontamos os problemas, ir construindo alternativas, um poder que não é poder, um socialismo que não é miséria, uma cultura que não nega a cultura. Essa possibilidade existirá enquanto não formos negacionistas da sua necessidade, que bate na nossa cara como que tentando nos acordar para a vida, e percebermos que não há caminho possível no capitalismo que não implique render-se à barbárie.
Se a essência do ser humano é a liberdade, ou seja, se o ser humano, deparando com condições alheias à sua vontade, tanto na natureza quanto na sociedade, não se submete, reage, luta contra elas, reúne forças e busca alternativas, usando a inteligência e a criatividade, é de perda de humanidade — e de capacidade mental — que tem padecido a esquerda, pois quem é humano não se contenta com mais do mesmo, não quando mais do mesmo é mais do mesmo lixo. Ela, a esquerda, tem sido verdadeiramente incapaz de evitar caminhar por uma estrada cheia de armadilhas já conhecidas. Não será a hora de começar a voltar a tentar?
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Ilustram este artigo: uma cena de The Amazing Spider-Man (vol. 1, # 89, 1970), por Gil Kane e John Romita Sr., uma das ilustrações das Vinte mil léguas submarinas de Júlio Verne, de uma das edições ilustradas de Pierre-Jules Hetzel e, em destaque, The Kraken, as seen by the eye of imagination, pág. 83 do livro Monsters of the sea: legendary and authentic, de John Gibson (Londres: Thomas Nelson and Sons, 1887).
Lula-lá… de novo, mais uma vez e sempre
Em 1972, Lula já entra como Diretor no Sindicato de Metalúrgicos de São Bernardo pela porta da burocracia e através das mãos de um agente policial, o então presidente Paulo Vidal.
Nessa eleição de 1972 as duas chapas de oposição tiveram integrantes presos e torturados. Vidal indica Lula como seu sucessor nas eleições de 1975.
O mito Lula nasce na greve de 1979. Quando foi decretada a intervenção, Lula pegou seu paletó e resignado abandonou o Sindicato, pronto a retomar seu trabalho na Villares.
Mas a greve continuou.
Após 2 dias ausente, Lula retorna numa assembléia massiva. Propõe a suspensão da greve para abrir um período de negociação, durante o qual um acordo satisfatório acabou sendo assinado.
Lula é produto da Luta de Classes no Brasil, com todas as contradições desta.
Até 1989 o movimento de massas no Brasil viveu um poderoso período. Lula foi arrastado. De novo, mais uma vez e sempre, oportunista e carreirista.
Recusou-se a convocar uma Greve Geral em apoio à campanha das Diretas Já, quando milhões ocupavam as ruas. Fez oposição protocolar ao Plano Cruzado, em 1986.
o PT não participou da farsa do colégio eleitoral (1985) que ungiu Tancredo como o último ditador. Também não assinou a Constituição “Cidadã” de 1988.
A cada vez que o processo histórico desemboca numa crise, impondo a necessidade de mudanças, se restabelece no Brasil um acordo de cúpula, pactuado pelas elites, e a mudança se reduz a um rearranjo que tudo muda para que nada fique diferente.
No fundo, no fundo, bem lá no fundo, a gente gostaria de ver nossos problemas resolvidos por decreto. Extinto por lei todo o nosso problema, maldito seja quem olhar pra trás, lá pra trás não há nada, e nada mais.
De “pacto civilizatório” em “pacto civilizatório”, os mortos e desaparecidos se amontoam em algum porão renegado de nossas memórias.
Mas tem dias, como hoje, todos eles, os mortos e desaparecidos e os seus entes queridos, também mortos e desaparecidos, saem juntos a passear. Voltam para nos assombrar. E agora eles atingem o número sinistro de 4 mil a cada dia.
Frente à catástrofe em curso, o banho de sangue que liberais, social-democratas e reformistas tanto temiam que fosse provocado pelos revolucionários, não podemos nos dar ao horror de repetir o passado.
Com o ultraliberalismo e a pandemia geridos por militares ligados aos Porões da Ditadura, fica obscenamente exposta, de modo brutal e inequívoco, a principal característica do setor dominante no Brasil: sempre foram genocidas.
Bolsonaro não passa do feroz retorno daquilo que nunca nos dispusemos a enfrentar: a característica genocida intrínseca à classe dominante no Brasil.
O extermínio dos povos originários, as milhares de viagens dos navios negreiros, o massacre interminável das revoltas populares, a urbanização forçada, o cotidiano de execuções nas favelas e periferias.
Se para estes o Estado de Exceção sempre foi a regra, agora o genocídio histórico brasileiro chutou a porta dos setores médios e invadiu seus condomínios fechados. Ninguém está a salvo.
A luIz que se acende no final do túnel é de novo, mais uma vez e sempre, uma maldita composição de classes vindo a toda força contra nós, para de novo, mais uma vez e sempre, tentar asfixiar o ímpeto rebelde, impedir a organização autônoma e cooptar a luta.
CONTUDO, nosso descomunal sofrimento atual é diminuto, comparado ao que será causado pela insistência na repetição dos mesmos erros anteriores.
Quanto mais se alucina Lulinha Paz e Amor como o Salvador da Pátria, mais a realidade dos fatos responde com sua completa inapetência para tal.
Pois “o cara” não tem nem o vigor físico, nem o perfil psicológico, nem a postura política e muito menos a estatura ética para liderar uma guerra de libertação.
Já não há como de novo, mais uma vez e sempre, ressuscitar o falso milagre da pacificação. Até mesmo nos cemitérios não sobrou espaço para este tipo de “paz”.
“trazer os mortos à vida
não é nenhuma grande mágica.
poucos estão completamente mortos:
sopre as brasas de um homem morto
e uma chama viva se levantará.
então conceda-lhe a vida, mas considere
que o túmulo que o abrigou
agora não pode ficar vazio:
você com suas roupas manchadas
nele você deve se aconchegar deitado.”
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UFA! Que alívio. Salvo um reparo aqui e outro acolá – entre os quais eu incluiria um estilo de linguagem pouco sóbrio para a pertinência do assunto e o erro imperdoável de chamar os regimes de Capitalismo de Estado de Comunismo – este texto tem o mérito de tocar no ponto fundamental do que me parece ser a tarefa central que todos nós, apoiadores do Passa Palavra, deveríamos fazer: articular um terceiro campo para enfrentar tanto a direita quanto a esquerda do capital. Mas, para isso, serão necessárias certas separações no entorno do próprio Passa Palavra. Explico: a quantidade de comentários que se valeram de argumentos desviantes (deboche, formalismo, espírito de seita, dogmatismo, purismo, entre outros), que eu interpreto como um sintoma de algo muito preocupante que mereceria um comentário específico, para não tocar no ponto nevrálgico: nem todos que gravitam em torno do Passa Palavra querem este terceiro campo. Alguns explicitaram isso de forma límpida, outros se dedicam a fazer um sofisticado trabalho de ideólogo para criar legitimidade/justificativa para ficar no campo da social-democracia e ser a “ala autônoma” do petismo. Pelo menos desde 2016, no debate sobre o “golpe”, isso ficou claro para mim. Passo então a fazer um esforço de síntese para identificar as correntes de pensamento e prática compatíveis e incompatíveis com este tão necessário quanto inexistente terceiro campo. Compatíveis: anarquistas proletários, esquerda comunista, marxistas heterodoxos, conselhistas, entre outros. Incompatíveis: anarco-individualistas, marxistas e anarquistas acadêmicos, anti-intelectualistas, autonomistas anti-organização, identitaristas de esquerda, libertários, entre outros. Para os primeiros um encontro para troca de opiniões seria para ontem. Para os segundos o PSOL e, pasmem!, até o PT está de bom tamanho. E para encerrar este comentário que está grande demais, inspira-me o já cantado por Arnaldo Antunes: “o pulso ainda pulsa”. Obrigado Fágner Henrique.
Pois é, caros editores do site, basta agora vocês seguirem a cartilha e política editorial do Zé, que, pelo visto, é mais passapalavrista que os passapalavrianos.
Pergunta: segundo os critérios do Zé, o meu comentário é compatível com a política editorial do Passa Palavra que o Zé nos elucidou?
Meu artigo não propõe a articulação de um “terceiro campo”, e também considero contraproducente qualquer fatiamento da esquerda e da extrema-esquerda nas categorias propostas acima ou em outras semelhantes, em “compatíveis” e “incompatíveis”. O critério para a colaboração deve ser sempre apenas um: estar disposto a combater o capitalismo. Aliás, deixei bastante claro em outro artigo publicado neste site (https://passapalavra.info/2021/04/137447/) que, a meu ver, é preciso lutar “no contexto de amplas e plurais mobilizações de esquerda, contra a burocratização e a apassivação dessas mobilizações, pressionando por sua radicalização”; um tal fatiamento, para separar o joio do trigo, inviabilizaria a ação política tal como a entendo e a defendo. A única linha, o único limite que, a meu ver, deve ser traçado é entre esquerda/extrema-esquerda e direita/extrema-direita e entre esquerda/extrema-esquerda e fascismo/identitarismo. Mas ainda assim tomando cuidado para não alienar pessoas sob influência moderada do identitarismo.