Por Fagner Enrique

Há pouco tempo a Folha de S.Paulo noticiou que explodiu a quantidade de projetos de lei que buscam restringir o direito de protesto no Brasil desde o início do governo Bolsonaro.[1] Segundo a ONG Artigo 19 Brasil, foram 21 projetos de lei apenas em 2019, batendo o recorde de 2013, ano em que, com o PT à frente do Executivo federal, foram apresentados 12 projetos de lei no mesmo sentido. Trata-se realmente de uma explosão, mas é mais como se as armas desenvolvidas e testadas com o discreto aval do governo social-democrata estivessem sendo agora inescrupulosamente estocadas com o apoio entusiástico do governo fascista: uma mesma tendência repressiva pode ser identificada, uma que remonta ao período anterior ao impeachment de Dilma. Diversos órgãos públicos vêm desde 2013 se articulando[2] para legitimar, preparar e consumar violações ao direito de protesto no país e para criminalizar e conter movimentos e mobilizações da juventude, resultando daí uma sofisticação do aparato repressivo, uma maior cooperação entre os órgãos de repressão e a criação de um verdadeiro Estado de exceção dirigido,[3] sempre com algum tipo de respaldo jurídico. A razão: em 2013 as ruas das cidades brasileiras foram tomadas por uma massa de jovens trabalhadores precarizados — o precariado —, o que alarmou o conjunto das classes exploradoras no país. Só que o mais grave, para além dessa escalada repressiva que tem atravessado sucessivos governos de distintas colorações políticas, é o fato de essa mesma massa de jovens trabalhadores estar sujeita a ser atraída por discursos e práticas neofascistas legitimadores da repressão estatal[4] [5] — sem contar a grande contribuição que poderá ser dada nesse sentido por protomilícias de um lado ao outro do espectro político — e que têm nela mesma seu alvo principal. Nesta série de artigos, tentarei dar algumas contribuições para a compreensão desse paradoxo.

1. O PT no poder: estabilização política

Quando o PT chegou ao poder em 2003, o governo FHC vivia uma dupla crise: os potenciais do projeto neoliberal introduzido pelo PSDB vinham se esgotando — a modernização do Estado encabeçada pelo partido havia já cumprido sua missão histórica — e o governo vivia uma crise política marcada pela incapacidade de contenção dos conflitos sociais no campo, na cidade e no interior das empresas. Nos três últimos anos do governo FHC, tais conflitos vinham sendo violentamente reprimidos, embora para o capital seja mais conveniente que sejam pacificados e assimilados pelos mecanismos da mais-valia relativa.[6] Ao mesmo tempo, alguns setores da classe trabalhadora buscavam retomar um projeto de mudanças sociais potencialmente anticapitalistas desde o final da Ditadura Militar. A chegada do PT ao poder foi nessas condições inevitável para os capitalistas, na medida em que a classe trabalhadora ansiava por ela e na medida em que não seria mais possível repetir a tática manipulatória que assegurou a vitória de Collor sobre Lula em 1989. Parte do capital, então, apoiou e financiou a candidatura petista.[7] [8]

Ainda durante as eleições, Lula apresentou a Carta aos brasileiros e o PT consolidou-se como partido de esquerda pró-capital.[9] O governo petista buscou enquadrar a classe trabalhadora de todas as maneiras possíveis: suas demandas deviam ser agora realizadas pela via institucional, burocrática. Os movimentos sociais passaram a declarar “apoio crítico” ao governo federal e a considerá-lo um governo “em disputa”. As consequências para as lutas dos trabalhadores foram graves. O primeiro governo FHC foi marcado por um crescimento vertiginoso das ocupações de terra: de 186 em 1995 para 450 em 1996, 500 em 1997, 792 em 1998 e 856 em 1999.[10] Reagindo a esse cenário, FHC buscou, em seu segundo mandato, segundo João Bernardo, “conduzir os aspectos econômicos da reforma agrária, de modo a isolar politicamente” o MST, o que foi feito através do apoio à agricultura familiar por meio do Pronaf, criado em 1995, e da criação do Banco da Terra em 1998. Por meio do crédito, FHC foi logrando a assimilação e a domesticação do movimento, reforçando uma tendência no seu interior de desconfiança com relação à coletivização do trabalho em cooperativas agroindustriais.[11] Assim, em 2000, 2001 e 2002, as ocupações caíram para respectivamente 519, 273 e 269.[12] No início da era Lula, elas tiveram um aumento considerável — 539 em 2003 e 662 em 2004 —, mas em seguida seguiram uma tendência de queda, culminando, ao final do período, em menos de 186 ocupações em 2010, ou seja, num nível inferior ao do primeiro ano da era FHC: 561 em 2005, 545 em 2006, 533 em 2007, 389 em 2008, 391 em 2009 e 184 em 2010; além do mais, durante todo o período em que Dilma esteve à frente do Executivo federal, não foi superado o teto de 256 ocupações de 2013.[13] Segundo Pablo Polese de Queiroz, a diminuição na quantidade de ocupações se intensificou com a denúncia do mensalão: o MST julgou nessa época que um confronto mais radical com a ordem daria mais força à oposição. Além do mais, houve um aumento expressivo na quantidade de assentamentos em 2005 e 2006.[14] Assim, o MST, que antes demonstrava sua combatividade por meio da organização maciça de ocupações de terra e do questionamento direto da propriedade privada, passou a focar definitivamente na luta pela consolidação de assentamentos via crédito agrário e programas sociais, aumentando sua já enraizada dependência perante governos e Estado.

A CUT, por sua vez, além de consolidar-se como central sindical pelega, promotora do sindicalismo de resultados e administradora de fundos de pensão, passou a ter alguns dos seus quadros ocupando cargos governamentais de alto escalão, o que se refletiu na quantidade de greves. Desde a redemocratização, entre o final dos anos 1980 e a primeira metade da década de 1990, com a exceção do período correspondente ao final do governo Collor e ao início do governo Itamar Franco, quando a sociedade brasileira se concentrou na crise política em curso e foi mobilizada pelo processo de impeachment,[15] as greves aumentaram em quantidade ou mantiveram-se em patamares elevados: 621 em 1985, 1.014 em 1986, 996 em 1987, 877 em 1988, 1.962 em 1989, 1.773 em 1990, 1.041 em 1991, 556 em 1992, 644 em 1993 e 1.035 em 1994. E, no início do governo FHC, a tendência se manteve: 1.056 em 1995 e 1.228 em 1996.[16] Nos anos seguintes a quantidade diminuiu, o que não implicou necessariamente num refluxo geral das lutas dos trabalhadores, pois, como vimos, as ocupações de terra no campo vinham se multiplicando; e deve-se ter em mente o impacto da restruturação produtiva e das políticas neoliberais sobre o mundo do trabalho: informalidade, flexibilização, terceirização, todos esses processos impactaram negativamente sobre o movimento sindical.[17] Mas, se isso foi suficiente para que ocorressem apenas 631 greves em 1997, 531 em 1998, 506 em 1999, 525 em 2000, 416 em 2001 e 298 em 2002, a tendência de queda na quantidade de greves a partir do governo Lula foi ainda maior: entre 1998 e 2002, período correspondente ao segundo governo FHC, foram 2.276 greves, mas o primeiro governo Lula, entre 2003 e 2006, produziu apenas 1.261 greves (340 em 2003, 302 em 2004, 299 em 2005 e 320 em 2006). No segundo governo Lula, houve um relativo aumento na quantidade de greves, mas ainda assim em patamares inferiores aos do segundo governo FHC: 316 em 2007, 411 em 2008, 518 em 2009 e 445 em 2010, totalizando 1.690 greves.[18] As demonstrações ou ensaios de combatividade, portanto, contrastavam com um quadro geral de apassivação e tutela.

As raízes dessa evolução, na verdade, remontam ao início dos anos 1990, mais particularmente ao 3º CONCUT, quando a Articulação conquistou a maioria na central, o que coincidiu com o fim da fase mais combativa da CUT. A partir de então, a combatividade deu lugar a uma ação sindical mais pragmática e negocial.[19] No entanto, essa tendência, que nessa época não era ainda a predominante, “aprofundou-se ainda mais com vitória eleitoral do Partido dos Trabalhadores”, pois “a nova pragmática sindical […] defrontava-se, agora, com um governo cujos membros eram, em boa medida, recolhidos também dentro da própria CUT”. Além do mais, a CUT passou a convergir com a Força Sindical, que já nasceu defendendo um sindicalismo negocial afinado com as políticas neoliberais. Segundo Ricardo Antunes e Jair Batista da Silva, a CUT e a Força Sindical “tornaram-se partícipes do governo Lula. Atuaram conjuntamente, durante vários anos, como parceiras de governo, por certo com disputas pelos espaços existentes, mas exercitando uma convivência bastante diferente da década de 1990”. Passou a haver, inclusive, uma convergência programática e ideológica entre as duas centrais: a CUT abandonou um programa socialista centrado na autonomia da classe trabalhadora e aderiu a um sindicalismo centrado na luta pela “cidadania”, repercutindo, a partir da esquerda do movimento sindical, um tipo de discurso que a Força Sindical buscava difundir a partir da direita.[20]

2. O PT no poder: desenvolvimento capitalista

De um ponto de vista econômico, os gestores petistas desfrutaram de um cenário nacional e internacionalmente favorável ao crescimento e desenvolvimento do capitalismo brasileiro. Condições favoráveis no mercado internacional potencializaram o crescimento, a integração e a internacionalização econômica do país, especialmente no que se refere ao superciclo de valorização das commodities dessa época. O Brasil passou, então, a aproximar-se da China e de países de fora do eixo Estados Unidos-Europa. De um lado, o controle exercido pelos gestores petistas sobre as principais organizações da classe trabalhadora impunha a estabilidade política necessária para o desenvolvimento endógeno, enquanto que, de outro, seus laços de amizade com movimentos terceiro-mundistas que chegaram ao poder favoreciam o desenvolvimento exógeno, o imperialismo brasileiro. Outras características do período são, por um lado, a atração de investimentos estrangeiros lastreados por altas taxas de juros e o comprometimento do Estado com o financiamento e a garantia dos lucros de grandes empresas, de diversas formas: isenções tributárias, financiamentos (com especial ênfase para a atuação do BNDES), concessões, encomenda de megaprojetos no âmbito do PAC. E, para as pequenas e médias empresas, o governo proporcionava financiamentos por intermédio da Caixa e do Banco do Brasil. O Brasil tornava-se, assim, um lugar extremamente atrativo, o que culminou na escolha do país para sediar megaeventos — a Copa do Mundo e as Olimpíadas — que impulsionariam ainda mais os lucros em diversos setores, especialmente no da construção civil. E, com a descoberta do pré-sal, a Petrobras consolidou-se como uma das maiores empresas do mundo.[21]

Mas também para a classe trabalhadora os governos petistas foram economicamente sedutores: de um lado, o Bolsa Família; de outro, a ampliação do acesso a bens de consumo duráveis através de linhas de crédito; de outro ainda, financiamentos e ações afirmativas no ensino superior. Os índices de desemprego melhoraram e o salário mínimo era reajustado acima da inflação. O PT estimulava, então, a noção de que se estava formando uma “nova classe média”, mas ocultava o fato de que ela era composta sobretudo por pessoas que ganhavam até 1,5 salário mínimo, além do fato de que o trabalho dessa “nova classe média”, apesar de mais formalizado, estava sujeito a piores condições. E, além disso, o endividamento dos trabalhadores crescia rapidamente por conta da facilitação do acesso ao crédito e da inserção maciça da classe trabalhadora no sistema bancário e creditício formal. Seja como for, foi de fato suavizada a dura tradição brasileira de repressão política dos trabalhadores e de restrição do seu acesso ao mercado consumidor e ao ensino superior. Se houve um efetivo processo de desconcentração de renda, aí é outra história. Apesar de Lula e seus aliados gostarem de se gabar pela redução da pobreza e da desigualdade, o legado desse período, nesse sentido, ainda é motivo de controvérsias: embora a análise restrita dos dados do IBGE/PNAD mostre que a renda nacional apropriada pelos 10% mais ricos encolheu de 46% para 41% e que a dos 50% mais pobres cresceu de 14% para 18%, acompanhada por um crescimento da fatia da classe média, de 40% para 41%, estudos recentes, como o de Marc Morgan, indicam que a renda dos 50% mais pobres só aumentou de 11% para 12%, que uma camada média que representa 40% da população viu sua parcela diminuir de 34% para 32% e que 1% da população abocanha 28% da renda nacional, ao passo a fatia dos 10% mais ricos representa mais de 50% dessa renda. O que de fato diminuiu foi a desigualdade no mercado de trabalho: a experiência passou a contar cada vez menos para a remuneração, de modo que os jovens recém-chegados ao mercado de trabalho tiveram a distância que os separava dos mais velhos reduzida; além disso, as diferenças existentes nos rendimentos de homens e mulheres, brancos e negros, trabalhadores rurais e urbanos e trabalhadores com registro formal e trabalhadores sem carteira assinada também diminuíram. Mas a desigualdade em termos gerais parece não ter realmente diminuído; pelo contrário, parecem ter aumentado as fatias abocanhadas pelos mais ricos e pelos mais pobres (no caso destes últimos, o aumento parece ter sido quase irrisório), às custas de uma grande camada média pressionada pelos dois lados; ou seja, trata-se de uma expansão da proletarização.[22] Seja como for, foram abertas possibilidades — diminutas, é claro — de ascensão social para a classe trabalhadora. Aliás, parece ter sido justamente o caráter exíguo dessa ascensão social em potencial que produziu um comportamento altamente individualista e fragmentário no seio da classe trabalhadora, varrendo do horizonte alternativas de luta coletiva por conquistas tendentes à ruptura com o capitalismo: foram substituídas pelo empreendedorismo de si e pela meritocracia.[23]

3. Rompendo as amarras: os trabalhadores resolvem apostar

Por trás do crescimento econômico e da falácia da “nova classe média”, no entanto, “há uma realidade profundamente crítica em todas as esferas da vida cotidiana dos assalariados”, escreveu Ricardo Antunes. Uma saúde pública vilipendiada e um ensino público depauperado, uma vida absurda em cidades entulhadas de automóveis, o problema da violência, o alto custo e a precariedade do transporte público, o racismo e a exclusão social, o endividamento, um fosso colossal entre as representações políticas tradicionais e o clamor das ruas, a brutalidade da polícia militar: era essa a realidade que desafiava a visão do Brasil na qual o PT investia, realidade esta que necessariamente colocou a classe trabalhadora em movimento e em rota de colisão com o governo.[24]

Com efeito, a quantidade de greves registradas no Brasil em 2013 chegou a um recorde desde a virada para os anos 1990. Em 2013 o DIEESE registrou 2.050 greves e 111.000 horas paradas, um crescimento, em comparação com o ano anterior, de 134% na quantidade de greves e 28% na quantidade de horas paradas. No âmbito privado foram vários os setores afetados, principalmente a indústria: metalurgia, construção, química, alimentação, transportes, turismo, saúde, o setor bancário, os setores de segurança e vigilância, educação, comunicação, estabelecimentos esportivos. E ocorreram também greves no setor público. Para o Dieese, num período de expansão salarial e de crescimento do poder de barganha dos sindicatos, os trabalhadores começaram a retomar reivindicações de longa data, principalmente aquelas relativas às condições de trabalho, que nesse contexto deixavam de ser simplesmente toleradas.[25] Imagino que foi necessária uma boa dose de pressão dos trabalhadores sobre as cúpulas sindicais para que isso ocorresse. Enfim, para Rodrigo Linhares, a escolha do Brasil como sede da Copa do Mundo de 2014 significou, para determinadas categorias de trabalhadores, um imenso reforço do seu poder de barganha, tanto na negociação com empresários quanto em negociações com o governo: a Copa, segundo o autor, fez com que as greves e as ameaças de greve, especialmente entre os trabalhadores diretamente envolvidos na preparação e organização do evento, se revestissem de uma gravidade muito maior do que a habitual.[26]

Vendo seu poder de barganha aumentar, os trabalhadores decidiram apostar e no geral ganharam: 90% das greves na indústria e 82% das greves nos serviços resultaram no atendimento integral ou parcial das exigências dos grevistas. Esse processo de luta, na verdade, decorreu das próprias consequências das políticas petistas: crescimento econômico, redução do desemprego, maior estabilidade no emprego, elevação de rendimentos, escassez de mão de obra, etc.[27] Além do mais, o ano de 2012 havia sido já um prenúncio nesse sentido, o que favoreceu a evolução da situação rumo ao ápice observado no ano seguinte: dezenas, centenas de milhares de trabalhadores entraram em greve em diversos setores. Foram 100.000 servidores das universidades federais em greve por 73 dias, 100.000 docentes de universidades federais por 124 dias, 72.000 trabalhadores dos Correios por 9 dias, 59.000 trabalhadores da construção civil de Fortaleza por 29 dias, 50.000 trabalhadores da Refinaria Abreu e Lima por 15 dias, 50.000 trabalhadores do Polo Petroquímico de Suape por 24 dias, 56.000 trabalhadores durante a advertência da Campanha Salarial dos Metalúrgicos do ABC, que durou um dia, e 280.000 bancários por 10 dias.[28] Enfim, milhares de trabalhadores começavam a romper as amarras.

4. O fermento do antipetismo

“O ascenso de lutas e greves sob o governo Dilma, em especial depois de junho de 2013”, escreveu Pablo Polese de Queiroz, “tornaram esse governo um dos menos queridos pelos capitalistas, ao menos nos últimos vinte ou trinta anos”. Os capitalistas passaram, assim, a ter “motivos políticos razoáveis” para almejarem a saída do PT do poder, constatado o considerável esgotamento de sua capacidade de apassivamento da classe trabalhadora.[29] E era natural que, diante do vácuo criado pela crise da hegemonia petista, os exploradores recorressem a mais repressão, regredindo a um estágio anterior ao da chegada do PT ao poder. O fato é que nem os capitalistas nem os trabalhadores estavam mais satisfeitos com o partido: ambos viam no PT um instrumento para a sua luta de classe, mas agora ambos começavam a questionar a utilidade do instrumento.

Além disso, as políticas dos governos petistas na área social, principalmente com a perda de fôlego da economia no início dos anos 2010, estimularam conflitos entre as camadas médias tradicionais — a pequena burguesia, os profissionais liberais, enfim, a chamada “classe média” tradicional — e a classe trabalhadora. Por um lado, houve uma diminuição na distância entre os dois grupos. Por outro, a base da pirâmide ocupacional progrediu num ritmo mais acelerado para a classe trabalhadora do que para as camadas médias tradicionais. Além disso, uma massa plebeia passou a invadir espaços antes exclusivamente ocupados pelas camadas mais privilegiadas da sociedade. É nesse quadro que se situou, por exemplo, o fenômeno dos rolezinhos. Os trabalhadores subalternos também passaram a demonstrar uma maior disposição de resistência perante situações aviltantes de trabalho: é aí que se insere, por exemplo, o chamado “desassossego na cozinha”, termo que denota um maior nível de contestação social por parte dos empregados domésticos. E a inflação dos serviços superou, durante os governos petistas, a da cesta básica em 35%, prejudicando as camadas médias tradicionais, mais acostumadas a pagar por uma série de serviços com relação aos quais os trabalhadores preferem economizar. Entretanto, o fator mais importante foi o aumento da concorrência no mercado de trabalho, por empregos que pagam mais que 5 salários mínimos: as ações afirmativas no sistema universitário e o financiamento do ensino superior privado pelo FIES fizeram com que os filhos da “classe média” tradicional deparassem com uma competição cada vez mais acirrada, um dos principais fermentos do antipetismo.[30] Perante esse quadro fazem sentido as observações de Marc Morgan e outros economistas sobre a evolução da desigualdade de renda na era petista, como vimos acima.

Desse modo, não apenas os grandes capitalistas e os trabalhadores passavam a estar cada vez mais insatisfeitos com o PT: também as camadas médias tradicionais começavam a engrossar a oposição. Não é nosso objetivo entrar nesse debate agora mas, a propósito, é interessante como, mesmo diante de uma oposição tão diversa e abrangente, permeando mais de uma classe social e os mais distintos e antagônicos grupos sociais, ainda se fale hoje no “golpe” contra Dilma. Mas, enfim, o diferencial das camadas médias tradicionais era — e continua a ser — o fato de elas exteriorizarem uma insatisfação nitidamente conservadora, reacionária, eivada de preconceitos políticos, sociais, raciais e de gênero. Mas aí a “classe média” tradicional passava a convergir com a dita “nova classe média”, os trabalhadores que aderiam àquele comportamento individualista e fragmentário mencionado acima, apoiadores da meritocracia e do empreendedorismo. Para estes não há de se falar em políticas sociais compensatórias, por exemplo. Essa é certamente uma das razões que ajudam a explicar por que uma parte muito considerável do eleitorado petista aderiu posteriormente à candidatura antipetista de Bolsonaro: o bolsonarismo, com seu discurso de ódio, representa para muitas pessoas um instrumento na acirrada competição por um lugar ao sol. O neofascismo hoje em voga tem, portanto, um imenso potencial de atração para uma parcela muito considerável da classe trabalhadora.

Leia as demais partes desta série: parte 2, parte 3 e parte 4.

Notas

[1] Thaiza Pauluze, “Explode número de projetos de lei que restringem direito a protesto”, Folha de S.Paulo, 10 de janeiro de 2020. Disponível aqui.
[2] Artigo 19 Brasil, “5 anos de junho de 2013 – restrições ao direito de protesto”, Artigo 19 Brasil, 9 de abril de 2019. Disponível aqui.
[3] Passa Palavra, “Estado de exceção dirigido – quando as regras mudam no meio do jogo”, Passa Palavra, 18 de fevereiro de 2014. Disponível aqui.
[4] Leandro Machado, “Por que 60% dos eleitores de Bolsonaro são jovens?”, BBC News Brasil, 16 de novembro de 2017. Disponível aqui.
[5] Bruno Lupion e Esther Solano, “Por que há ex-eleitores de Lula que votam em Bolsonaro?”, DW, 3 de novembro de 2018. Disponível aqui.
[6] Conferir João Bernardo, Economia dos conflitos sociais, 2ª ed., São Paulo, Expressão Popular, 2009. Disponível aqui.
[7] Pablo Polese de Queiroz, Neodesenvolvimentismo e contrarrevolução no Brasil (2003-2016): crítica à economia política do campo democrático-popular, Doutorado em Serviço Social, Rio de Janeiro, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2016, p. 542. Disponível aqui.
[8] Para uma discussão sobre as divergências entre diferentes setores do capital quanto ao apoio ao PT, conferir a série de artigos de Pablo Polese de Queiroz: Pablo Polese de Queiroz, “Tempestade perfeita? A oposição de direita e os desafios para a extrema esquerda (1)”, Passa Palavra, 10 de julho de 2015. Disponível aqui. Pablo Polese de Queiroz, “Tempestade perfeita? A oposição de direita e os desafios para a extrema esquerda (2)”, Passa Palavra, 17 de julho de 2015. Disponível aqui. Pablo Polese de Queiroz, “Tempestade perfeita? A oposição de direita e os desafios para a extrema esquerda (3)”, Passa Palavra, 23 de julho de 2015. Disponível aqui.
[9] Pablo Polese de Queiroz, 2016, p. 537.
[10] Eduardo Paulon Girardi (coord.), DATALUTA. Banco de dados da luta pela terra. Relatório Brasil 2016, Presidente Prudente, NERA – Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária – FCT/UNESP, dezembro de 2017, p. 14. Disponível aqui.
[11] Conferir João Bernardo, “MST e agroecologia: uma mutação decisiva. 2) 1995-2012”, Passa Palavra, 27 de março de 2012. Disponível aqui. Conferir também os demais artigos da série: João Bernardo, “MST e agroecologia: uma mutação decisiva. 1) 1984-1995”, Passa Palavra, 20 de março de 2012. Disponível aqui. João Bernardo, “MST e agroecologia: uma mutação decisiva. 3) hoje”, Passa Palavra, 3 de abril de 2012. Disponível aqui.
[12] Eduardo Paulon Girardi (coord.), ibidem, p. 14.
[13] Eduardo Paulon Girardi (coord.), ibidem, p. 14.
[14] Pablo Polese de Queiroz, 2016, pp. 542-543.
[15] Carlindo Rodrigues de Oliveira, “Greves no Brasil, de 1978 a 2018: grandes ciclos, configurações diversas”, Revista Ciências do Trabalho, nº 15, 2019, p. 11. Disponível aqui.
[16] Carlindo Rodrigues de Oliveira, ibidem, pp. 12-13.
[17] Ricardo Antunes e Jair Batista da Silva, “Para onde foram os sindicatos? Do sindicalismo de confronto ao sindicalismo negocial”, Caderno CRH, vol. 28, nº 75, setembro/dezembro de 2015, pp. 512 e 515. Disponível aqui.
[18] Carlindo Rodrigues de Oliveira, ibidem, pp. 13 e 16.
[19] Ricardo Antunes e Jair Batista da Silva, ibidem, p. 516.
[20] Ricardo Antunes e Jair Batista da Silva, ibidem, p. 524.
[21] Pablo Polese de Queiroz, ibidem, pp. 545-547.
[22] Ricardo Balthazar, “Desigualdade no Brasil é maior do que se pensava, apontam novos estudos”, Folha de S.Paulo, 1º de outubro de 2017. Disponível aqui.
[23] Pablo Polese de Queiroz, 2016, pp. 548-549.
[24] Ricardo Antunes, “Fim da letargia”, Folha de S.Paulo, 20 de junho de 2013. Disponível aqui.
[25] Pablo Polese de Queiroz, ibidem, pp. 561 e 564.
[26] Rodrigo Linhares, “As greves de 2011 a 2013”, Ciências do Trabalho, nº 5, dezembro de 2015, p. 110. Disponível aqui.
[27] Idem, ibidem, pp. 108-110.
[28] Pablo Polese de Queiroz, ibidem, p. 559.
[29] Idem, ibidem, p. 564.
[30] Alvaro Bianchi e Ruy Braga, “Hegemonia e crise: noções básicas para entender a situação brasileira”, Blog Junho, 28 de junho de 2015. Disponível aqui.

As ilustrações apresentam pormenores de obras de Hieronymus Bosch.

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