Por Alan Fernandes

Dia 31 de maio era confirmada no Brasil a Copa das Américas, evento que havia sido recém-recusado pela Argentina e Colômbia. Em tempo recorde, o Planalto multiplicou forças onde elas não existiam para propagandear o evento. No mesmo dia, o país obtinha mais 874 mortes em consequência da Covid-19, número que se somaria à soma vergonhosa de mais de 400 mil mortes em decorrência da política sanitária do Executivo. Em um passado não tão distante, o Governo Bolsonaro demorou não 3 horas, mas meses, para atender a oferta da Pfizer sobre fornecimento de vacinas. Foram 53 emails confirmados pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia que alertavam para a possibilidade de o Brasil ser uma “vitrine de vacinação” na América Latina.

Não podíamos esperar prioridades diferentes. Desde aqueles primórdios de 2020, apesar de um inicial consenso sanitário em interromper a propagação do vírus Sars-CoV-2, o Governo Federal já amenizava, senão subestimava o perigo da pandemia, sendo histórico seu discurso de 24 de março onde quebra esse consenso e acusa de “alarmistas” os governadores e prefeitos que efetuaram políticas de isolamento social, das mais amenas às mais rígidas.

No que pesa a recepção do campeonato, é evidente o mal-estar social que o compromisso com a Conmebol assumiu perante parte da sociedade. De primeira mão, por parte da própria seleção brasileira.

Os jogadores brasileiros por alguns dias foram a esperança de muitos ao alimentar animosidade com a CBF e manifestar críticas à realização do evento. Com episódios desde o escracho do treinador da seleção (favorável ao boicote) a denúncias de assédio sexual por parte do presidente da CBF, o desfecho foi uma seleção tecendo críticas à organização da Copa, mas afirmando em carta-aberta que jogariam no evento. Essa foi, talvez, uma das grandes esperanças em barrar o evento impedindo a escalada autoritária de Bolsonaro e o vexame brasileiro perante a política internacional. Outra manifestação parecida ocorreu no ano passado, nos Estados Unidos, quando jogadores da NBA boicotaram jogos em apoio aos protestos Black Lives Matter que sucederam do assassinato de George Floyd. Fica a reflexão se protesto semelhante não teria potencial para acontecer no Brasil. Mas, ao que parece, a seleção brasileira não se compromete com política da mesma forma que os jogadores da NBA. Na verdade, o deixaram claro em sua carta-aberta, que não fariam o jogo dos “interesses políticos”.

Ainda, na mesma semana em que é confirmada a celebração do evento em discurso oficial do Presidente Jair Bolsonaro (sem partido), ocorre uma assembleia de forças de oposição ao governo nos movimentos e centrais sindicais para mobilizar um calendário de luta. A assembleia foi convocada para o dia primeiro de junho pela Frente Fora Bolsonaro.

Na reunião, que marcou ato para o dia 19, houve um consenso indiscutível sobre pautas como “Auxílio Emergencial”, “Vacinação em massa” e, é claro, “Fora Bolsonaro”. Companheiros que foram como ouvintes — vale ressaltar, foi uma assembleia transmitida pelo Youtube com forças majoritárias já pré-estabelecidas — relataram que houve uma discordância, se não um boicote, ao “Não vai ter copa”. Ora, barrar a Copa das Américas não estaria no calendário de obstrução da política anti-sanitária de Bolsonaro?

Nos bastidores daquela assembleia foi percebido um rechaço por parte de setores da esquerda tradicional com a associação ao “Não vai ter Copa” de 2014, que deve ter sido o motivo mais evidente para o boicote da pauta. Só que naquele ano a realização do evento teve sinal verde de Dilma Rousseff (Partido dos Trabalhadores), então Presidente da República, para a Copa do Mundo acontecer no Brasil, com direito a obras superfaturadas, remoções violentas, sufocamento de movimentos sociais, entre outras coisas, e por consequência movimentos sociais contra a sua realização, portanto questionando o Governo Federal. Outro fenômeno da época foram os protestos pelo impeachment de Dilma, que disputavam já há um tempo a explosão de contestações que se iniciou em junho de 2013.

Uma narrativa muito forte que existe desde então é a leitura de que as jornadas de junho marcaram as “guerras híbridas” no Brasil, leitura que não entra no mérito da legitimidade dos protestos contra o aumento da passagem. A quem quiser conhecer o surgimento do conceito, vale ler outro artigo publicado neste site sobre o assunto aqui. A nós, no momento, interessa explicar como o conceito se disseminou na esquerda dos círculos petistas. A narrativa que se cria é que aquelas revoltas explosivas e sem capacidade de domesticação por parte das estruturas sindicais serviu de empoderamento involuntário de setores fascistas da sociedade que encontravam na esquerda um inimigo da classe trabalhadora.

Essa mesma abordagem oportunista volta a dividir a esquerda no momento em que mais precisamos da unidade para reverter a agenda de morticínio do Governo Federal. Setores do PSOL, das oposições sindicais e sobretudo autonomistas são rechaçados novamente por esses setores ressentidos da esquerda com o desfecho do impeachment de 2016. Editoriais como esse, do Partido da Causa Operária, voltam a defender que o “Não vai ter Copa” é política exclusiva da direita. O artigo foi conseguido através de uma cópia armazenada no Internet Archive. Ou seja, foi excluído pelos seus editores. Mas não as três colunas no site publicadas sobre o assunto (aqui, aqui e aqui). Aliás, vale se perguntar por que escolheram apagar o editorial ao invés de fazer a devida autocrítica (se é que há alguma) e mantiveram um artigo de título “Obrigado, Trump”.

Há quem diga, “Ah, mas o PCO coleciona essas baboseiras. Não dá para levar muito a sério”. Mas também o Brasil247 fez uma matéria no ano passado acusando o Guilherme Boulos e setores do PSOL de contribuírem com o “golpe” em sua luta contra a Copa.

No site do PT, há matérias favoráveis ao ato do dia 19 de junho (por exemplo, aqui), data consensual na assembleia do dia 1º. Apesar disso, silêncio do Partido sobre a Copa América.

Em meio a esse silêncio, ou boicote deliberado, ocorre um chamado para o dia 13 de natureza mais espontânea e “autônoma” no Rio de Janeiro, com a expectativa de protesto no Maracanã. A intenção é que se continue essa agenda de lutas sem para isso deixar a abertura da Copa em branco. Como já foi dito, há setores por parte da esquerda interessados em desarticular essa luta. Na avaliação destes, o caminho para a oposição é abrir o caminho para a derrota eleitoral de Bolsonaro, ainda que suas políticas concretas sejam colocadas sem resistência a curto prazo. Só que a consequência disso são cada vez mais derrotas para todos nós.

Pretendemos com esse ato do dia 13 aglutinar e abrir um espaço para diálogo de outras pautas e outras táticas de luta. No entanto, além do boicote deliberado daqueles setores já mencionados por este artigo, o objetivo da mobilização pode ser frustrado pela intenção de uns e outros em focar nos chamados para os ditos “Blocos Autônomos”, tendência de construção de luta nos meios autonomistas. Se nosso objetivo é agregar e multiplicar forças, cabe a reflexão se faz sentido uma prática sectária que há um bom tempo já tem dividido lutadores independente de suas práticas concretas no cotidiano. Apesar dessas contradições internas ou públicas, podemos e devemos construir uma agenda de articulações visando cobrir o vácuo da esquerda tradicional, sempre com cuidado coletivo e responsabilidade, indo de máscaras PFF2 e assegurando distanciamento físico sempre que possível.

A primeira imagem que ilustra este artigo é de Rafaela Biazi. Em seguida, uma das imagens que remonta ao chamado para a manifestação do dia 13.

4 COMENTÁRIOS

  1. Aparentemente eu fui otimista ao pensar que haveria força para levar adiante a pauta por fora das burocracias sindicais ou que ao menos alguém teria o ímpeto de interagir com o artigo a fim de debater. Mas àqueles ainda curiosos com a questão podem ver aqui [https://www.metropoles.com/esportes/conmebol-divulga-boletim-com-140-casos-de-covid-19-na-copa-america] que a Conmebol já anunciou 140 casos de Covid-19 em decorrência do campeonato, mas que “está tudo sob controle”, pois não foram os jogadores que se infectaram, mas operários e terceirizados que garantem que o evento aconteça. Vida que segue, né.

  2. Provavelmente o artigo antigo do PCO sumiu do site porque eles sofreram um ataque hacker que apagou mais de 4000 artigos do site: https://www.brasil247.com/midia/pco-tem-site-hackeado-e-perde-4-mil-artigos

    O articulista escreveu, escreveu, escreveu e não disse por que cargas d’água boicotar um evento que já está praticamente sendo boicotado espontaneamente pelo povo é relevante pra situação política. E ainda defendeu as manifestações antipetistas que culminaram no golpe de Estado e em Temer e Bolsonaro.

    Esse PSOL é uma vergonha…

  3. Vermelho, em primeiro lugar, é muito curioso que um artigo seja chamado de “antigo” se ele foi escrito logo após o anúncio da Copa América, no início deste mês, e o hackeamento ao qual se refere se deu no ano passado.

    Não expliquei “por que cargas d’água boicotar um evento que já está praticamente sendo boicotado espontaneamente pelo povo é relevante pra situação política” justamente porque não é o boicote passivo que defendo. O Presidente da República procura com a Copa América duas coisas 1) retomar o apelo popular que ainda lhe resta com um evento que mexe com os ânimos dos brasileiros: o futebol; 2) passar mais uma vez a impressão que o caminho está dado para retomar a normalidade econômica e realizar ativamente a imunidade coletiva através da contaminação, fato que está sendo atualmente investigado pela Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia. A Copa América deve, a meu ver, ser combatida como uma política de morte, como a ausência de lockdowns, como o atraso na vacinação, etc. etc. Retomo o link que postei acima, https://www.metropoles.com/esportes/conmebol-divulga-boletim-com-140-casos-de-covid-19-na-copa-america. Se não há “relevância política” em interromper 140 casos de Covid entre trabalhadores terceirizados e operários, não sei mais onde há.

    Também não “Defendi manifestações antipetistas(…)”, mas confrontei (e abomino) a tese de que junho de 2013 foi pura e simplesmente um levante proto-fascista. Se um gérmen fascista se expandiu naquele ano e no seguinte, é porque o Partido dos Trabalhadores, até então no governo, abriu espaço para o entendimento que a direita e a esquerda sabiam governar contra os trabalhadores (https://passapalavra.info/2019/01/125118/). O bolsonarismo deve ser estudado como algo que bebe desse fenômeno.

    Eu não tenho relação alguma com o PSOL, além de amizade com alguns de seus filiados, mas sou capaz de abrir mão da pureza ideológica para identificar quais são os coletivos agindo com sensatez em processos de luta.

  4. Apenas para registro: as 3 colunas no Diário da Causa Operária que foram mencionadas por este artigo foram postumamente removidas de sua página. Aliado que sou da luta de classes salvei novamente as 3 cópias.

    https://web.archive.org/web/20210602211932/https://www.causaoperaria.org.br/meu-deus-e-a-copa-america/
    https://web.archive.org/web/20210614171114/https://www.causaoperaria.org.br/web/20210614171114oe_/https://www.causaoperaria.org.br/a-carta-da-selecao-brasileira-e-a-desorientacao-da-esquerda/
    https://web.archive.org/web/20210609231151/https://www.causaoperaria.org.br/copa-america-globo-se-tornou-a-maior-defensora-do-povo/

    Além disso, um egresso do partido fez uma acusação um tanto curiosa sobre esses ataques hackers que o partido diz sofrer: https://www.diariodocentrodomundo.com.br/quatro-ex-pco-abrem-o-jogo/. Espero ter sido útil para restabelecimento da memória. Sabemos a quem serve a memória seletiva e a ocultação de fatos.

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