Wendy’s: luta armada no fim do mundo (3)

Por Anônimos

O trato com pistoleiros

Os Estados Unidos são aquela terra estranha onde os ‘boomers‘ são mais rápidos em ignorar policiais levando tiros do que janelas quebradas: a primeira situação apresenta uma forma legítima de autodefesa, e a segunda é um ataque à propriedade. É um pensamento ingênuo acreditar que as manifestações nos EUA vão deixar de envolver armas no futuro, e por esta razão é importante deliberar sobre a melhor maneira de se envolver com elas. O problema é difícil. Se o fatalismo aponta para um problema estratégico de escalada sem um horizonte claro, então as armas são a contraparte tática para esta estratégia no contexto americano.

Ainda que as armas estivessem presentes desde a primeira noite no Wendy’s, logo após a morte de Rayshard, elas se tornaram uma característica proeminente da ocupação após o tiroteio de 10 de junho. Este primeiro tiroteio teve duas consequências notáveis: os brancos foram temporariamente banidos do espaço e as pessoas começaram a estocar armas no estacionamento do Wendy’s. Independentemente de ser ou não a coisa certa a fazer, deve ser dito que a estratégia da ala direitista depende da polarização das tensões em torno precisamente destes dois eixos: a polarização do conflito segundo linhas étnicas e a incitação do conflito armado.

Uma vez que os bloqueios de trânsito acabaram levando a um confronto armado, podemos encontrar alguma função estratégica específica que eles possam ter desempenhado? Nos dias seguintes a 10 de junho, bloqueios de estradas feitos com pequenas fogueiras nas quais se queimava restos de lixo foram instalados nas ruas e reforçados por jovens com armas de grande porte. O bloqueio não foi apenas em qualquer rua aleatória do bairro – foi no primeiro cruzamento da rodovia fora da rampa. Para falar sem rodeios, eles bloquearam a entrada de todo o bairro. Carros de negros que mostravam solidariedade ou davam uma saudação com o punho foram autorizados a passar, enquanto os brancos, na maioria das vezes, se viravam muito antes de se aproximarem dos bloqueios. Se tivesse sido mantido por tempo suficiente, tal bloqueio é o tipo de coisa que poderia provocar um fluxo de brancos da área, forçando as pessoas a abandonarem seus planos de “limpar o bairro”.

Embora tenha sido o poder dos atiradores de pedras e incendiários que reivindicaram o território, foi sem dúvida a presença dessas armas que manteve a polícia afastada por três semanas. Os esquerdistas ficam frequentemente chocados quando a polícia se aproxima sem brutalidade de manifestantes armados de direita que tentam bloquear ou ocupar espaço, mas a ocupação do Wendy’s mostrou que isto poderia ter mais a ver com a presença de armas do que muitos esquerdistas gostariam de acreditar. A exibição visível de armas fez com que os policiais não ousassem se aproximar do local por medo de entrar em um tiroteio. Dada a baixa moral do Departamento de Polícia de Atlanta – muitos policiais haviam abandonado o trabalho naquela semana por causa das acusações apresentadas contra o policial assassino – ficou claro que eles estavam sobrecarregados e não tinham forças para se envolver neste tipo de batalha armada. E ainda assim, em um total estimado de sete tiroteios que ocorreram em três semanas, nenhum fascista ou policial foi baleado, e nenhum dos mortos foi adversário da ocupação.

Wendy’s: luta armada no fim do mundo (3)

Qual foi o efeito das armas na ocupação? Eventualmente, elas se tornaram um substituto para pensar em como manter o espaço seguro – e um substituto para uma estratégia de poder coletivo. Por mais que contribuíssem para manter a polícia afastada, tornaram-se uma substituição para outros tipos de atividades que poderiam ter fortalecido a ocupação: ter mais pessoas lá ao invés de menos, construir barricadas físicas reais na rua ao invés de deixar para os pistoleiros pararem os carros, etc. O aumento das armas contribuiu para uma pegada militar regimentada que dominava o campo. Assim, em vez de dormir à noite, a equipe de segurança foi encarregada de “patrulhar” o espaço para ficar atenta às ameaças, uma receita para um rápido esgotamento. Não tenho dúvidas de que a razão pela qual mais pessoas não vieram ao espaço é porque tinham medo das armas. Não eram apenas pessoas brancas. Vizinhos negros que convivem com armas o tempo todo também não apareciam, porque não viam as armas como algo que impressionasse particularmente; aos seus olhos, as armas sinalizavam algo mais parecido com a atividade de gangues profissionais que eram perigosas de deixar seus filhos perto. Portanto, não teve o mesmo efeito sedutor que teve para muitos militantes. Em outras palavras, a dependência das armas criou um ambiente hostil que acabou por limitar o alcance dos atores envolvidos no campo, o que o tornou ainda mais vulnerável à violência e aos ataques.

O problema não era a presença de armas em si, mas o fato de que carregar uma arma se tornava um trabalho especializado. Esta especialização foi mais visível na chegada da coalizão Not Fucking Around Coalition (NFAC), no dia 4 de julho. Sua estranha presença, pouco mais do que uma sessão fotográfica, não levava em conta a situação, militarizava o clima e definitivamente não tornava ninguém mais seguro. No momento que a milícia foi chamada para defender o espaço das ameaças de um linchamento do KKK no dia 4 de julho, sua presença foi simplesmente dominante, e criou uma situação pela qual eles não estavam realmente lá para assumir a responsabilidade. Mesmo que sejam negros, eles apresentavam um polo de antagonismo que se agrava muito rapidamente e cai em uma armadilha de guerra simétrica. Quanto mais os atores armados se tornam os líderes da luta, menos espaço de manobra será deixado para as pessoas jogarem Molotovs, invadirem edifícios para cortar a eletricidade ou cortarem cercas para roubar equipamentos.

A ideia de que a melhor maneira de responder à violência armada pelo Estado é através de mais violência armada é uma falácia histórica. Um debate semelhante aconteceu nos anos 60 entre Eldridge Cleaver e Huey Newton: enquanto o primeiro defendia uma vanguarda armada de lumpemproletários para liderar a luta, Newton veio a ver os efeitos do isolamento que a militância atrevida tinha sobre a luta e assim propunha programas de sobrevivência em seu lugar. Uma abordagem mais centrada na comunidade da ocupação do Wendy’s poderia ter criado o espaço para que o poder material realmente autônomo crescesse, e ampliar o escopo dos atores pode ter tornado o espaço menos vulnerável a ataques armados, reduzindo o número de armas necessárias.

As armas no Wendy’s não iriam fazer aparecer magicamente um Centro de Paz. Além de substituir qualquer estratégia real, as armas não ajudaram a liderança da ocupação do Wendy’s a se aproximar de seu verdadeiro objetivo e, no final, eles ainda estavam dependentes de negociações com o Estado para conseguir o que queriam. Ao mesmo tempo, é claro que não haveria como lançar uma crítica das armas a partir de uma posição desarmada. Qualquer apelo à não-violência teria sido ridicularizado e escamoteado. Em retrospectiva, se quiséssemos tornar o espaço mais seguro e mais hospitaleiro, teríamos que assumir papéis na equipe de segurança e neutralizar a crescente militarização a partir desse papel – uma autoabolição do guerrilheiro armado, se algo assim for concebível.

A questão da violência será decisiva para o futuro dos movimentos revolucionários na América. Não há dúvida de que tais movimentos precisarão se armar para a autodefesa. No entanto, como também aconteceu na CHAZ em Seattle, a violência dentro das zonas livres de polícia muitas vezes resulta diretamente na perda do apoio político. Quando este é o caso, a polícia não precisa sequer se preocupar em seguir uma estratégia de repressão direta. Em vez disso, eles podem simplesmente esperar até que sua ausência da área permita que aconteça violência suficiente que eventualmente faça sua presença parecer novamente justificada. Em contraste à estratégia composta de facções minoritárias de atiradores armados, o legado do movimento de ação direta não violenta fornece algo capaz de manter um amplo apoio. Apontar isto não é defender a não-violência moralista, mas sim sugerir que a força de nossos movimentos dependerá mais de um amplo apoio social do que de vitórias puramente militares.

Wendy’s: luta armada no fim do mundo (3)

Conclusão

Os principais problemas na ocupação do Wendy’s foram que o espaço era controlado por uma liderança hierárquica que, por sua própria conta, “privatizou” o protesto, a ponto de recusar qualquer ajuda de várias dezenas de pessoas que estavam interessadas em contribuir com o espaço de forma real. Estes fatores tornaram o espaço cada vez mais isolado, e os líderes cada vez mais paranoicos. Como resultado, a ocupação contou com uma perigosa estratégia de escalada armada para fortalecer o Estado, que terminou previsivelmente com violência armada que tornou o espaço facilmente reprimível e, francamente, difícil de ser defendido, depois que uma criança de 8 anos foi assassinada no fogo cruzado de um tiroteio no dia 4 de julho. Enquanto a ocupação catalisou uma demonstração impressionante de militância e coragem, terminou com um dilema semelhante ao de muitas outras rebeliões em todo o país: não foi capaz de esclarecer o que havia para construir ou afirmar, uma vez terminado o saque, no incêndio e na destruição.

O que nos diz a ocupação do Wendy’s sobre uma estratégia de intensificação? O que devemos pensar do fato de que as armas tanto tornaram possível a ocupação como levaram ao seu colapso? Se foi nossa tarefa em lutas passadas agravar as coisas até seu horizonte insurrecional, isto deve ser diferenciado da intensificação como mero aumento de uma capacidade de violência. Kenosha é mais uma situação na qual a violência rapidamente escalou para além de um ponto em que os atores emancipatórios foram capazes de ser eficazes. Nessas situações, o ritmo acelerado da intensificação é insustentável e, no final, apenas acelera a restauração da lei e da ordem. A atividade revolucionária deve ser medida em termos de sua capacidade de defender sua sustentabilidade com o maior número possível de participantes. Quando a violência revolucionária tende a isolar os participantes em vez de defendê-los, ela faz mais mal do que bem.

Além da questão da violência, surge a questão de como criar uma perspectiva comum sobre quais formas de ação são possíveis na ausência de estruturas de liderança ou de procedimento democrático. Como movimentos como a rebelião de George Floyd continuam a aparecer, “militantes organizados” podem se ver ultrapassados e marginalizados por proletários que têm pouco interesse ou consideração por objetivos estratégicos ou revolucionários a longo prazo, e em vez disso são enfeitiçados exclusivamente pelo saque e pelo choque com a polícia. Se quisermos evitar um resultado facilmente previsível, é importante estabelecer um conjunto mensurável de objetivos revolucionários além do de combater batalhas cada vez mais militarizadas com o Estado e com os fascistas, ou ficar deprimido ou exausto quando estes se esgotam ou não são mais possíveis. Sem nenhum objetivo em mente, a escalada da violência corre o risco de ultrapassar a capacidade dos movimentos de produzir afirmações coletivas além das dos inimigos que têm em comum. Como opor-se a esta intensificação, avançando ainda ao longo de uma trajetória revolucionária?

As insurreições e revoltas são uma peça importante de um processo revolucionário prolongado, não necessariamente seu auge. Todos os movimentos, sendo em sua essência organismos vivos, estão fadados a se extinguir. Por mais que desejemos repudiar este final inevitável de nossos movimentos, aquelas estruturas que permitem um sentimento de alegria e celebração para acompanhar o fim dos movimentos estão melhor posicionadas para fomentar o crescimento de uma força revolucionária sustentável a longo prazo. É necessária uma enorme quantidade de energia para resistir às consequências negativas de rupturas tão grandes, e para evitar um sentimento de desespero que nos obrigue a nos engajarmos em ações que simplesmente imitem os sentimentos evocados durante o movimento (a alegria da destruição, agora empreendida de forma individual sem uma massa de pessoas), mas que não contenham o potencial de abrir significativamente novos caminhos de luta. Para evitar ações fatalistas, devemos cultivar a capacidade de lançar tudo nestas revoltas, para dar a estas batalhas o nosso todo, reconhecendo ao mesmo tempo quando seu potencial se esgota, ou quando os movimentos estão “mortos”. Esta capacidade de reconhecer quando o terreno não está mais sendo determinado por nós é uma parte essencial do que significa “ser água” [expressão de Bruce Lee usada como lema pelos manifestantes de Hong Kong, que significa “ser maleável”].

Como os recentes debates em torno da conveniência da guerra civil deixam claro, não existe hoje um conceito significativo de revolução [1]. No século XX, a revolução proletária foi imaginada como um processo pelo qual a classe trabalhadora cresceria exponencialmente até um limiar crítico, e a partir daí se tornaria politicamente hegemônica, tomaria o poder e produziria um novo mundo a partir dos escombros do velho. Hoje, isto já não é mais concebível: estamos entrando em colapso sob os escombros do velho mundo, em vez de encontrar maneiras significativas de salvá-lo. Consequentemente, os militantes de hoje terão que ser muito mais flexíveis em suas expectativas sobre o que é desejável e possível nos próximos anos.

Além do conflito interno que nossa espécie enfrenta, enfrentamos a ameaça de extinção sob uma catástrofe planetária de proporções impensáveis. Isto nos convida a pensar, como Günther Anders o disse, um “apocalipse que consiste em uma mera queda, que não representa a abertura de um novo e positivo estado de coisas” – um “apocalipse sem reino”. Felizmente, não somos os únicos a enfrentar a dificuldade de fundar um novo modo de vida. Nos próximos tempos, as elites governantes também encontrarão cada vez mais desafios para estabelecer e manter a lei e a ordem. À medida que o horizonte da governabilidade recua, mais e mais espaço se abrirá para nós, permitindo que experimentemos regiões cada vez maiores de território fora de seu controle. O Wendy’s nos deu um vislumbre muito real desta desagregação que se avizinha. Nossa tarefa agora é transformar os desafios que ela enfrentou em uma referência para nos guiar através do abismo que se aproxima.

O artigo em questão foi publicado originalmente em novembro de 2020 e sua tradução, realizada pelo Passa Palavra, foi publicada em três partes (Parte 1 e Parte 2). Sua versão em inglês pode ser lida aqui.

Notas

[1] Para duas interpretações que aparentam ser completamente diferentes entre si da guerra civil e conclusões sobre sua conveniência, ver Idris Robinson, Letter to Michael Reinoehl, e CrimethInc, Between Electoral Politics and Civil War.

As fotos que ilustram este artigo são de lutas da medalhista de ouro olímpica e campeã mundial de boxe, Claressa Shields.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here