Por Coelho com Relógio
O recente episódio do incêndio da estátua do Borba Gato, na capital paulista, atraiu a atenção de muita gente. Como seria de esperar quando o fogo está envolvido, as opiniões foram fortes, contra e a favor.
Longe de precisar ser aberto, o debate a respeito de que fazer com os produtos artísticos das classes dominantes foi rapidamente trazido à baila. No feed do Facebook vemos as gravuras, as fotos já gastadas de homens e mulheres posando junto a restos de estátuas derrubadas.
Será difícil de entender, para a atual geração, que estes homens e mulheres efetivamente tomavam o controle de cidades inteiras? Que estas memoráveis situações, parteiras dos debates profundos a respeito do destino da nossa classe, eram efetivamente momentos projetados em direção ao futuro, e não ao passado? Quem dentre eles arriscaria sua liberdade por um ato puramente simbólico durante a plena vigência dos poderes instituídos?
Se algo sabe bem toda uma camada de trabalhadores com títulos universitários formados em cursos de humanidades, é que a enorme maioria da população brasileira ignora a arte e a história por detrás dos monumentos públicos. Em uma sociedade cada vez mais mediada pelas telas dos vários tipos de computadores, certo grupo escolhe atacar fisicamente um dos elementos mais mortos e ignorados da cidade: a arte no espaço público (digo, aquela que escapa ao conceito de marketing).
Mas não se enganam de alvo. A estátua e o fogo são apenas insumos para a câmera. O significado dinâmico da escolha desta estátua está nas redes sociais e na troca compulsiva de informação. Tal como um carro inteligente de última geração, o usuário emite constantemente sinais e se alimenta dessa emissão desenfreada. Se trata de um ciclo de feedback com períodos cada vez menores.
Vejam bem, a questão aqui é, no fundo, estética. Se as vanguardas musicais chegaram a propor a experiência do ruído, a indústria cultural lhes contrapôs um fundo musical eterno, que pudesse calar o ruído. Enquanto o ruído nos permite perceber estranhas formas e objetos que estão no meio do caminho entre o eu e o resto do mundo, o fundo musical eterno confunde eu e mundo num só movimento, que pode ir do êxtase à depressão de forma ritimada, em uma identidade chapada entre sujeito e objeto.
O que falar então do silêncio, guardar o silêncio, como quem guarda algo importante, protegendo-o. O horror vacui que caracteriza tanto nosso tempo é essa incapacidade do carro inteligente de funcionar sem um intenso fluxo informativo. Foram-se os tempos das panes secas, os mecânicos estão hoje ocupados com os ataques de pânico. Podemos compará-los com a energia que não chega a ser emitida como onda de radiofrequência pela antena, e retorna ao aparelho transmissor, danificando-o. A compulsão a emitir e receber sinais se aferra ao nosso corpo e o domina.
Essa abstinência, o horror ao vazio informativo, ao silêncio e ao ruído das coisas, é o mesmo que leva alguns a ver uma identidade entre uma estátua e seu referente. O modernismo passa longe, como se pode ver, de uma esquerda que pretende travar a “batalha cultural”. Botar fogo na estátua que se encontra na avenida Santo Amaro se identifica assim com combater o racismo e toda a herança da barbárie colonial brasileira. Mas no fundo, foi apenas abrir um debate…
Haverá interesse num artista “periférico” que possa desafiar a estátua do Borba Gato de Júlio Guerra, com uma estátua melhor, de um personagem mais interessante? Se alguém souber de um tal projeto, será importante difundi-lo e apoiá-lo! Por hora, temos uma vergonhosa derrota da arte performática, despida de toda sua efemeridade pelas câmeras esfomeadas, enquanto o Borba Gato, impávido colosso, segue erguido em sua longa morte.
Quantas ironias se escondem debaixo do bigode deste Gato?