Por João Bernardo
2
Por vezes as respostas falham o alvo porque nos esquecemos de virar as perguntas do avesso. Em vez de demonstrarmos, por exemplo, que um certo país não é comunista e que, por conseguinte, estão errados os marxistas que o apoiam, é interessante proceder ao contrário e partir deste apoio para definir o que eles entendem por comunismo. Uma palavra não é senão o sentido que lhe é conferido. O contraste entre aquilo que esses marxistas reivindicam nos seus próprios países e os regimes que promovem como modelo não nos deve espantar. Só falam de liberdade e bem-estar porque sabem que, se não o fizessem, ficariam ainda mais isolados do que já estão. Mas este é apenas um degrau para tentarem implantar o seu ideal de ausência de liberdade e ausência de bem-estar, excepto para a cúpula burocrática.
Para dar dois exemplos caseiros, em 2001, enquanto o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) exteriorizava a sua preocupação com os riscos que Fernando Henrique Cardoso faria correr à democracia brasileira, os militantes da União da Juventude Socialista (UJS), órgão juvenil do PCdoB, cantavam em coro «Picareta de Ramón / Na nuca de Leon», enaltecendo o mais abjecto dos muitos assassinatos políticos encomendados por Stalin. E agora, nos dias em que escrevo estas linhas, ao mesmo tempo que o Partido da Causa Operária (PCO) exalta Lula, mostra-se igualmente admirador dos Talibãs. O que dizem por um lado prepara o caminho ao que gostariam de fazer por outro.
O comunismo, tal como era entendido quando a palavra foi criada, não importa já aos que hoje se proclamam seus defensores. O futuro mudou. Não é a remodelação das relações de produção que lhes interessa nem a liberdade de decisão colectiva, e numa série de seis artigos intitulada Anticapitalismo. Anti o quê? procurei deslindar estes meandros. A noção que têm de comunismo deixa inalteradas as relações de trabalho, o único campo em que, na antiga acepção, seria legítimo afirmar a vigência do comunismo. Isto serve para definir o que agora se entende pela palavra, mas é outro aspecto que me importa aqui abordar, porque em toda a colecção de falências elogiadas como exemplos um único país se destaca pelo seu êxito económico — a China. Então, é a China que a esmagadora maioria dos marxistas evoca quando precisa de gritar: Vitória! O comunismo ficou identificado com o crescimento do Produto Interno Bruto per capita, e é nestes termos que apontam a China como prova de que o futuro, afinal, chegou. Estranho raciocínio, porque se o capitalismo de Estado chinês consegue agora presidir a um desenvolvimento económico, noutros países não foi necessário esperar o tal futuro e bastou para isso o passado do capitalismo privado.
Mas, mesmo que aceitasse os termos em que os marxistas quase unanimemente enaltecem a China, o problema imediato é outro e consiste em saber se o actual modelo chinês conseguirá impor-se de maneira duradoura. No capitalismo o desenvolvimento económico exige, por um lado, a destruição criativa, ou seja, há uma permanente necessidade de crises sectoriais que limpem o terreno para surgirem novas técnicas e novas formas de organização. Por outro lado, a mais-valia relativa só pode crescer acima de certo ponto rentabilizando a criatividade dos trabalhadores, o que requer espaços de discussão e uma vida intelectual suficientemente activa para promover a originalidade. Se assim é, então um regime que pretenda planificar antecipadamente todas as inovações económicas e técnicas e procure circunscrever toda a sociedade a um padrão rígido será derrotado na concorrência pelos regimes que admitem a iniciativa empresarial e permitem aos cidadãos a privacidade e uma margem de liberdade.
É este o dilema, e até há pouco tempo a China foi um bom exemplo, porque o arranque da produtividade e o enorme crescimento económico conseguido com as reformas introduzidas por Deng Xiaoping na sequência da terceira sessão plenária do 11º comité central do Partido Comunista, em Dezembro de 1978, deveu-se, antes de mais, à eliminação do arcaboiço restritivo que fora imposto pelo maoismo. A China parecia ter encontrado uma fórmula para articular o antigo capitalismo de Estado com o novo capitalismo privado, de modo a potencializar as capacidades de ambos.
Mas parece que Xi Jinping pretende agora impor um estatismo de outra ordem, substituindo em grande parte o mercado privado pelo Estado, ou seja, encarregando o Estado de certas funções até aqui executadas pela livre actividade das empresas no mercado. Isto é especialmente visível, para já, no âmbito da informática. «As autoridades chinesas», escreveu The Economist em 14 de Agosto de 2021, «dizem que estão a limitar o poder das grandes plataformas tecnológicas de modo a tornar a economia mais competitiva e, portanto, mais produtiva». Mas o que caracteriza o mercado, tanto o mercado entre empresas como o mercado de trabalho, é a capacidade de improvisação e a flexibilidade, precisamente os dois factores que o estatismo económico é incapaz de reproduzir. Ora, as notícias provenientes da China parecem indicar que o objectivo de Xi Jinping não é apenas usar o poder de Estado para estimular a concorrência entre as grandes plataformas tecnológicas e arbitrar eventuais conflitos de interesses, mas atribuir ao Estado as funções da concorrência, ou seja, obter os resultados da concorrência, sem a concorrência. Será isto possível? A pergunta remete para uma questão mais fundamental. Será possível que o Estado obtenha os resultados da liberdade dos trabalhadores, sem a liberdade dos trabalhadores?
Convém esclarecer que o grau de vigilância mediante os vídeos e a internet não depende do eventual autoritarismo de um governo, mas da sua sofisticação tecnológica. Uma ditadura tecnologicamente retardatária submete a população a uma fiscalização incomparavelmente inferior à de uma democracia tecnologicamente evoluída. Desde que ocupem o mesmo patamar tecnológico, porém, as ditaduras e as democracias exercem o mesmo grau de vigilância. O reconhecimento facial que na China contribui para enviar os uyghurs para campos de concentração, perdão, de reeducação é o mesmo que ajuda as grandes empresas ocidentais na prospecção de mercado e as modernas polícias ocidentais na captura de quem viole a lei. A diferença é que no capitalismo de Estado a vigilância tem como irmãs gémeas a formatação consoante um modelo político e social único e as restrições à mobilidade individual, enquanto nas democracias capitalistas a vigilância destina-se a marcar um espaço de liberdade e actua só quando os limites deste espaço são violados.
A diferença é fundamental, porque nesses espaços de liberdade de expressão e de organização geram-se ideias e práticas que as empresas podem recuperar e assimilar nos processos de trabalho e em novas tecnologias, e é este o motor da mais-valia relativa. A história do capitalismo tem mostrado que sem isso não existe um crescimento económico continuado. Ora, sob a direcção de Xi Jinping as autoridades chinesas, além de usarem a vigilância através dos vídeos e dos telemóveis (celulares) para formatar não só a sociedade como os comportamentos individuais, estão a sobrepor as hierarquias partidárias às hierarquias nas relações de trabalho.
Xi Jinping e os seus porta-vozes têm propagandeado como modelo de organização o Grupo Hodo, uma empresa industrial de direcção familiar, activa nos ramos do têxtil e das confecções, que emprega 30.000 pessoas na província de Jiangsu. Cerca de mil são membros do Partido Comunista, distribuídos por mais de cem células. O director-geral da empresa, Zhou Haijiang, acumula com as funções de secretário do Partido, e outros altos gestores detêm igualmente cargos de direcção no comité que superintende a actividade do conjunto das células do Partido na empresa. Assim, não espanta que o director do departamento de recursos humanos seja o encarregado das questões de organização do Partido, que o responsável pelo desenvolvimento de marca chefie a secção de propaganda do Partido e que o presidente do conselho de supervisão da empresa se encarregue no Partido das questões de disciplina. Este modelo, em que a hierarquia partidária duplica a hierarquia na empresa, é promovido sob a interessante denominação de «sistema empresarial moderno com características chinesas». No fascismo clássico, apesar da ausência das «características chinesas», a situação não era diferente.
Apregoado pelas autoridades e correspondendo aos anseios disciplinares dos empresários, o modelo Hodo difundiu-se e actualmente em cerca de metade das firmas privadas onde existem secções do Partido Comunista o dono é também membro do Partido. «Para ele», comentou The Economist em 26 de Junho de 2021, «não é difícil assumir as funções adicionais de secretário do Partido». E já que a China está a gerar o imperialismo mais dinâmico, graças à estratégia de investimentos correntemente denominada Nova Rota da Seda, o modelo Hodo ultrapassou as fronteiras e os embaixadores chineses são também secretários do Partido, com autoridade sobre os seus correligionários expatriados, nomeadamente os que trabalham em filiais de empresas chinesas nos países onde os embaixadores estão estabelecidos.
Tudo somado, segundo o Hurun Report, sediado em Shanghai e citado por The Economist de 26 de Junho de 2021, dos cerca de 5.100 membros do parlamento chinês e do seu órgão consultivo, mais de 140 são possuidores de fortunas superiores a 2 biliões* de yuans (320 milhões de dólares). Desde 2013, ano em que Xi Jinping foi nomeado presidente, até 2018 duplicou a fortuna combinada dos 100 deputados mais ricos, avaliada em cerca de 3,9 triliões de yuans. Significa isto que a burocracia dominante poderá prescindir do totalitarismo político porque se confundirá com a oligarquia económica ou, pelo contrário, que pretenderá confirmar-se como oligarquia económica mediante a manipulação do totalitarismo político?
A fusão entre a teia empresarial e a teia partidária e a sobreposição das hierarquias empresariais às hierarquias partidárias encerram a classe trabalhadora chinesa num quadro de controle social e político sem falhas. Assim como, aparentemente, Xi Jinping pretende que o Estado execute os mesmos mecanismos executados pela concorrência entre empresas privadas, parece que também pretende obter os resultados da mais-valia relativa mantendo os trabalhadores num sistema disciplinar que até agora só tem conduzido à mais-valia absoluta. Porém, não creio possível que o Estado consiga alcançar os resultados da liberdade de organização dos trabalhadores, sem a liberdade de organização dos trabalhadores.
É certo que a divisão em capitalismo de Estado e capitalismo de livre mercado, apesar de útil ou mesmo indispensável, é demasiado radical, porque o capitalismo de livre mercado nunca prescinde da intervenção económica do Estado, não só como árbitro, mas igualmente como promotor de algumas das principais Condições Gerais de Produção. Reciprocamente, nem os capitalismos de Estado mais estritos conseguiram eliminar a iniciativa privada, que persiste sob a forma de economia paralela e mercado negro. A grande questão consiste em saber qual é o principal motor da economia, se o livre mercado, se a centralização estatal. Se houver um sistema da fiscalização que no seu interior mantenha espaços de liberdade, então os mecanismos da mais-valia relativa poderão funcionar e a produtividade continuará a aumentar. Se os espaços de liberdade desaparecerem e a fiscalização se confundir com a formatação, os mecanismos da mais-valia relativa serão interrompidos e, embora por vias diferentes das seguidas pelo nacional-socialismo, aproximar-nos-emos de um metacapitalismo que inverterá os processos da produtividade.
É neste ponto que se joga o futuro da classe dos gestores, como classe capitalista ou como classe destinada a superar o capitalismo, gerando um novo modo de produção fundado na repressão e na estagnação.
* Emprego aqui bilião no sentido brasileiro e americano, de milhar de milhões, e não no sentido português e inglês, de milhão de milhões.
As ilustrações desta segunda parte de O Futuro Fugiu reproduzem obras de Olga Rozanova (1886-1918).
Este ensaio compõe-se de três partes, podendo ser lidas aqui a Primeira Parte e a Terceira Parte.
Se vivos, Mussolini e Hitler, contemplando a China, exultariam proclamando: VENCEMOS!!!
O futuro fugiu!?
Para onde teria ido? Prá China!
Não. Com certeza, não.
《A fusão entre a teia empresarial e a teia partidária e a sobreposição das hierarquias empresariais às hierarquias partidárias encerram a classe trabalhadora chinesa num quadro de controle social e político sem falhas. 》
Há um imenso passado no futuro da China.
Contudo, também e principalmente lá, as velhas toupeiras cavam suas passagens abaixo da superfície. E o que se pretende sem falhas sucumbirá às rachaduras inexoráveis.
O futuro há muito já não é mais como costumava ser. Nem tornará a sê-lo.
Mas nem por isto o futuro deixou de estar onde sempre esteve.
《Os processos revolucionários podem considerar-se vitoriosos na medida apenas em que demonstram praticamente a possibilidade de um novo modo de produção, coletivista e igualitário. São eles que mantêm o comunismo como algo do presente, e não como um vago projeto futuro. 》
O futuro só pode se atualizar no cotidiano das lutas concretas, aqui e agora.
《Para espanto de todos aqueles que, como o autor deste livro, foram educados no marxismo ortodoxo, é nas empresas produtoras de bens de consumo corrente, por vezes pequenos estabelecimentos com escassas dezenas de trabalhadores, se tanto, que mais longe têm sido levadas, na atual fase, as novas relações sociais.》
Qual o básico bem de consumo corrente, sem o qual nem presente ou futuro são possíveis?
Soberania alimentar é condição fundamental para a auto-defesa e para a autonomia das lutas.
Quais as pequenas unidades de produção capazes de engendrar as novas relações sociais baseadas na soberania alimentar?
Terra e Território, Comunidades em luta e articuladas em rede, como a vanguarda de um novo modo de produção.
Esse é o futuro que fugiu ao único lugar que lhe cabe: o presente.
OTTO RÜHLE NA VEIA ou BEamongTWEEN
Se o futuro não se apresenta, o presente não passa. Se o presente não passa, o futuro não se apresenta.
Subsunção e suprassunção intromisturadas, em meio a temporalidades incôngruas: TEMPO OUROBOROS.
Devora-me ou te decifro: caosmose meta-histórica do círculo vicioso em espiral virtuosa.
Segundo Elias Jabbour, o principal propagandista do “modelo chinês de socialismo”, a China é socialista porque, dentre outras coisas, o Estado controla o mercado privado e porque o PC está no poder. É isso.
https://www.youtube.com/watch?v=Y7-ubwuEQtw
Paulo, posso ter visto apressadamente o vídeo que compartilhaste, mas não vi o Elias Jabbour tecer essas considerações que afirmaste.
A única definição de Socialismo que Elias apresenta (ao fim do vídeo) é a de que o Socialismo melhora a vida do povo mais rapidamente (e cita o exemplo do metrô de Xangai).
Aqui neste vídeo (https://youtu.be/hqeD_CGHUTg) sim ele afirma 1) que capitalismo de estado é pleonasmo (e portanto inútil enquanto categoria de análise social), 2) que a China é socialista pq os principais setores da economia são propriedade pública controlados pelo Estado que é comandado pelo PC – representante real da sociedade chinesa.
Bem… Mesmo que seja um vídeo de pouca profundidade teórica, parece ser uma análise coerente com o leninismo.
Se para Elias Jabbour não existe a classe dos gestores, socialismo é propriedade pública dos meios de produção – uma visão jurídica do socialismo.
Faz tempo que João Bernardo escreveu um ensaio sobre Lucien Laurat. Vale a pena rememorar aquele ensaio.
*Em tempo: não concordo com o Elias Jabour – apenas compartilhando os argumentos usados no vídeo.
breno modesto, acho que eu me enganei no vídeo postado. Era esse que você elencou. Abraços.
João Bernardo,
A pergunta pode parecer desconexa com o artigo, mas gostaria de entender melhor a diferenciação do regime de mais-valia absoluta para o regime de mais-valia relativa. A diferenciação entre elas, da forma como é apresentada é como se a mais-valia absoluta estivesse fundamentada mais na brutalidade exploração da mais-valia. Nesse sentido, o desenvolvimento tecnológico (as maquinas, etc) tendem a diminuir essa intensidade de brutalidade no processo de exploração da mais-valia.
Mas, dentro dessa ótica, é possível também enquadrar essa diferenciação entre uma coisa e outra através de uma “ideologia progressista” dos gestores? Aqueles trabalhos onde oferecem maiores liberdades aos trabalhadores e, portanto, eles se sentem “mais satisfeitos” sem o advento de qualquer maquinário que auxilie no processo produtivo, poderiam ser enquandrados dentro da idéia do regime de mais-valia relativa, em oposição à brutalidade e à “falta de liberdade” de outras empresas – que seriam enquadradas na idéia do regime de mais-valia absoluta?
Dom Quixote,
Na sua forma pura, os conceitos de mais-valia absoluta e mais-valia relativa referem-se a situações extremas. Ora, como ninguém consegue trabalhar vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, sem nunca comer, fica definido um limite físico que a mais-valia absoluta não pode atingir. Para aquém deste limite, no entanto, as formas extremas de mais-valia absoluta dependem de dois factores: 1) a capacidade de luta dos trabalhadores e 2) as condições físicas e psíquicas mínimas exigidas por cada processo de trabalho. É a partir daí que a mais-valia absoluta pode tender a assumir características de mais-valia relativa.
Portanto, para a compreensão dos processos económicos no seu conjunto e sobretudo no seu dinamismo, as duas formas da mais-valia devem ser consideradas como pólos de um campo, ordenando inumeráveis modalidades de articulação entre eles. Nomeadamente, numa perspectiva dinâmica, é essencial considerar que, assim como o limite físico da mais-valia absoluta a pressiona a assumir progressivamente algumas características de mais-valia relativa, também sucede que sistemas de trabalho surgidos como formas de mais-valia relativa se transformem, em comparação com o progresso entretanto verificado noutros sistemas de trabalho, em novos patamares de mais-valia absoluta. Pretendi analisar mais extensamente este campo complexo de inter-relações no livro Economia dos Conflitos Socias, por isso limito-me agora a esboçar as principais linhas de raciocínio.
No capitalismo a maquinaria surgiu sempre aos trabalhadores como uma libertação, fazendo, assim, parte intrínseca da mais-valia relativa. Foi o que sucedeu quando as máquinas a vapor dispensaram ou reduziram o esforço muscular. A etapa seguinte foi preenchida pelas máquinas eléctricas, que diminuíram mais ainda o esforço muscular e outros incómodos físicos. Vivemos hoje numa terceira etapa, em que a electrónica aboliu qualquer esforço muscular, concentrando a actividade física nos dedos e nos olhos, a tal ponto que tiveram de se generalizar os ginásios (ou academias, como dizem os brasileiros) para que a população não fique demasiado obesa.
Os ludittes activos na Inglaterra do início do século XIX não se opunham a todas as máquinas, mas só às novas máquinas que simplificavam o trabalho e, por isso, dispensavam as suas aptidões de artesãos formados no sistema corporativo. Não foi um conflito dos trabalhadores contra as máquinas, mas um conflito entre os trabalhadores decorrentes das corporações pré-capitalistas e os trabalhadores formados no capitalismo. Estes conflitos e fricções entre os trabalhadores ligados às formas pré-capitalistas de produção e os trabalhadores formados pelo capitalismo podem observar-se de modo directo, sem a intervenção das máquinas, na história do movimento sindical americano.
A crítica à maquinaria — não a certo tipo de máquinas, mas às máquinas em geral — restringe-se hoje aos universitários de extrema-esquerda, que, evidentemente, não precisam de manejar enxadas e picaretas nem de trabalhar como serventes de pedreiro. Essa apologia do mundo rural de outrora é feita confortavelmente no teclado do computador. E vejam uma coisa curiosa. Eles bramam contra a maquinaria, mas não prescindem do computador e muito menos do telemóvel (celular, no Brasil), que são igualmente máquinas. Falam contra a maquinaria, mas ignoram a tabuada e, quando precisam de fazer contas, não as fazem de cabeça, mas no querido telemóvel. E quando usam o copy & paste nos trabalhos académicos, não se trata também de um recurso à maquinaria?
A extrema-esquerda, tal como está constituída hoje, faz-me lembrar os recreios das escolas, para as criancinhas poderem brincar à vontade nos intervalos das aulas. É o recreio indispensável à modalidade de mais-valia relativa assente na electrónica, que exige um grande esforço mental. Por isso duvido que as novas medidas de contenção individual, social e ideológica impostas por Xi Jinping, se se generalizarem, sejam compatíveis com o surto de mais-valia relativa que caracterizou a China nas últimas décadas.
Caro João Bernardo, você poderia falar mais sobre a última parte do último parágrafo do seu comentário? Muito obrigado. Forte abraço!
Caro Fernando,
Os computadores são, em toda a história da humanidade, as únicas máquinas capazes de cumprir três tipos de funções: 1) instrumentos de trabalho, 2) instrumentos de vigilância e fiscalização e 3) instrumentos de lazer. Isto faz com que — também pela primeira vez na história da humanidade — o ócio constitua uma oportunidade de adestramento da força de trabalho e, portanto, de desenvolvimento da mais-valia relativa. Digitar a alta velocidade em teclados minúsculos, ser capaz de prestar atenção a vários estímulos simultâneos, reagir muito rapidamente a situações imprevistas, tudo isto, que constitui o quotidiano (sim, em Portugal é assim que se escreve) das redes sociais e dos jogos de computador, é ócio ou é melhoria da qualificação profissional? Ambas as coisas. Por isso é do interesse do patrão que o trabalhador despenda no computador as horas em que não está a trabalhar, e qualquer restrição governamental a este tipo de ócios constitui um obstáculo à mais-valia relativa.
Ora, uma parte muito considerável da extrema-esquerda actual confunde a actividade política com a troca de mensagens de meia dúzia de palavras nas redes sociais. Neste contexto, o conteúdo das mensagens é indiferente para o capitalismo, e tanto melhor para ele se as pessoas julgarem que a política se resume a isso. Foi o que eu quis dizer quando comparei com os recreios das escolas, e um governo que pretenda converter os ócios numa oportunidade de doutrinamento político está a criar obstáculos à mais-valia relativa.
O problema, porém, é mais vasto. Se você vir a estatística das abstenções nos países em que o voto não é obrigatório constatará que uma parte considerável do eleitorado, por vezes mais de metade, não se interessa em votar. Para essas pessoas é indiferente o partido que esteja no governo ou mesmo a democracia representativa, mas ficarão muito descontentes com tudo o que lhes limite a privacidade. A palavra liberdade significa hoje a possibilidade fazer o que quiser durante os ócios na vida privada. Se as pessoas passarem assim os lazeres e se se sentirem livres, irão trabalhar, não digo com mais entusiasmo, mas com menos aborrecimento, o que lhes aumentará a intensidade no trabalho e até, eventualmente, a criatividade no trabalho, ambas componentes da mais-valia relativa. Portanto, um governo que procure restringir a privacidade está a dificultar o desenvolvimento da mais-valia relativa.
Por isso escrevi nesta segunda parte do ensaio: «Assim como, aparentemente, Xi Jinping pretende que o Estado execute os mesmos mecanismos executados pela concorrência entre empresas privadas, parece que também pretende obter os resultados da mais-valia relativa mantendo os trabalhadores num sistema disciplinar que até agora só tem conduzido à mais-valia absoluta. Porém, não creio possível que o Estado consiga alcançar os resultados da liberdade de organização dos trabalhadores, sem a liberdade de organização dos trabalhadores».
Obrigado, João!
Caro João Bernardo,
Embora me pareça correta a perspectiva de que Xi Jinping busca criar um regime de controle da liberdade de iniciativa dos trabalhadores e que isso implicará em limitações para a economia chinesa, não me parece que a restrição do tempo de uso das redes caminhe no sentido de restrição da mais-valia relativa.
Tenho a impressão que essa restrição vem do diagnóstico, corroborado por alguns gestores do Vale do Silício, de que o uso das redes na modalidade de economia de atenção que retém o usuário o maior tempo possível na tela, termina tornando esse trabalhador mais apático do que seria desejável. Por isso que surgem filmes críticos como o Dilema das Redes, que tem como proposta uma revisão desse modelo de negócios, pois eles seriam prejudiciais a própria economia capitalista.
Caro LL,
Mas o problema aqui consiste em saber a partir de que momento a utilização das redes sociais e dos jogos de computador pelos trabalhadores se converte, para os capitalistas, de benéfica em nociva. Quantas horas e quantos segundos? Nos regimes que asseguram um espaço de privacidade mais amplo há discussões neste sentido, em que todos podem participar. Lembro-me de um exemplo recente no Brasil. As próprias empresas de telemóveis (celulares) enviam periodicamente aos utentes (usuários) relatórios contabilizando a evolução do tempo de utilização. E os psicólogos e terapeutas, evidentemente, não iriam desprezar o filão e inauguraram-se consultas médicas nos hospitais para curar as pessoas daquele novo vício. Mas as medidas que Xi Jinping começou agora a tomar pretendem substituir essa liberdade de discussão e essa flexibilidade de decisões por uma norma governamental única, fixando limites de horas e minutos. Volto ao refrão: será possível que o Estado obtenha os resultados da liberdade dos trabalhadores, sem a liberdade dos trabalhadores?
João,
Será que o encarreiramento por modalidades da mais-valia absoluta pelo Estado chinês se relaciona com algum tipo de esgotamento/abrandamento do modelo de mais-valia relativa que orientaram nas últimas décadas? Isto terá alguma relação com a bancarrota da Evergrande (problemas no mercado) ou com o reavivar dos instintos militaristas sobre Taiwan (usando meios extra-económicos, no sentido estrito, para tentar obter ganhos económicos que não os estaria a arrecadar pelas vias “normais” da mais-valia relativa)?
João Aguiar,
A nova orientação que Xi Jinping começou a impor deve-se a pressões económicas ou a necessidades políticas, ou a ambas as coisas, e em que medida? A esta distância e com a falta de informações, é impossível dar neste momento uma resposta cabal. Eu inclino-me a pensar que Xi Jinping está a recorrer à velha ilusão que pretende dar uma resposta política aos problemas económicos. Foram os fascistas, e especialmente os nacionais-socialistas, quem primeiro experimentou na prática esse método, e é instrutivo verificar que hoje a generalidade da extrema-esquerda proclama o mesmo. Num artigo recente, The Economist analisou a situação da Evergrande, e em geral do mercado imobiliário na China, no contexto do sistema de relações estabelecido entre o governo central e as autoridades locais, e parece-me promissor este tipo de análises, combinando o político, neste caso o administrativo, com o económico.
O inescapável acerto de contas dos bilionários chineses com a bolha imobiliária
Evergrande:
• Dívida total: US$ 309 bilhões
• Dívida internacional: US$ 20 bilhões
• Maiores credores vcmto. em 2022: fundo Ashmore (EUA) 3%, UBS 1,37%, HSBC 1,33%.
• Maiores credores vcmto. em 2023: BlackRock 4,4%, HSBC 3,26%, Ashmore 2,62%, UBS 1,66%.
China – Reservas Internacionais: US$ 3,22 trilhões
As enormes reservas internacionais da China garantem uma posição de força bastante favorável na negociação com os credores externos.
Por sua vez, estes estão pulverizados com participação no total do passivo de no máximo 5%, o que indica pouca possibilidade de um efeito de contágio nas proporções do Lehman, em 2008.
“Sem uma boa política de reforma e abertura do país, Evergrande não teria o que tem hoje. Portanto, tudo o que Evergrande e eu temos, tudo é dado pelo Partido, pelo país e pela sociedade.”
Hui Ka Yan – fundador, presidente e maior acionista (76,8%) da Evergrande, no China Charity Awards 2018, como vencedor pelo 8º ano consecutivo
Em 1998 a China promoveu uma contra-reforma de cunho capitalista no setor habitacional, liberando-o para o capital privado.
A Evergrande abriu seu capital em 2008, em Hong-Kong. Tornou-se a maior empresa imobiliária da China em 2017.
Investimentos na construção civil somam 15% do PIB Chinês, porém o conjunto da cadeia de produção envolvida atinje cerca de 29%. O setor imobiliário chinês consome 1/5 da produção mundial de cobre e aço.
Os investimentos a fundo perdido em infraestrutura viária e imobiliária, sem a contraparte de geração de postos de trabalho permanentes, alteram a composição orgânica do Capital (c/v), limitando proporcionalmente a criação de novo valor.
Atualmente a quantidade de residências desocupadas na China são suficientes par abrigar mais de 90 milhões de pessoas.
A grande questão é que, de alguma forma, o Estado terá que assumir a Evergrande, e talvez outras empresas do setor imobiliário. Com isto se aprofunda o Capitalismo de Estado, que na China se encontra sob o controle de uma classe de gestores tecno-burocratas.
Como o investimento imobiliário tem sido um grande propulsor do PIB chinês, como garantir a continuidade da expansão econômica por outras bases?
A crise da Evergrande é um dos reflexos na China da crise do Capitalismo global. Só resta a tecno-burocracia do PC da China avançar com o Capitalismo de Estado, mas isto não os livrará de seu próprio acerto de contas com o modelo e o regime.
Pois seja ou não sob estrito controle estatal, a crise do Capitalismo continuará se agravando.