Por João Bernardo

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Se recordarmos como era o futuro que fugiu, revela-se em toda a sua acuidade a dramática interrogação dos revolucionários de há mais de um século — socialismo ou barbárie? A classe trabalhadora tem a resposta nas mãos.

Desde há muito tempo, na verdade desde que a dissolução interna da revolução portuguesa de 1974-1975 ditou o fim das esperanças surgidas em todo o mundo com o movimento autonomista da década de 1960, eu formulo a mim próprio e aos outros a seguinte interrogação — o que é ser revolucionário numa época não revolucionária? Será simplesmente lutar pela ampliação dos espaços de liberdade autorizados e contidos no interior da vigilância capitalista, brincar à liberdade presos entre quatro muros, afinal, incentivar a mais-valia relativa?

É que o capitalismo não se desenvolve reprimindo as lutas, mas assimilando-as e recuperando-as, convertendo em estímulos da produtividade aquilo que os trabalhadores criaram como esperanças de uma alternativa. Para o capitalismo, a repressão é a estagnação, enquanto o motor do crescimento económico é a transformação da contestação em impulso de produtividade. Sem os grandes sindicatos bem disciplinados não se teriam implantado e generalizado o taylorismo e o fordismo, sem as rupturas da disciplina e a busca de autonomia encetadas no começo da década de 1960 os capitalistas não teriam por todo o mundo adoptado o toyotismo como forma de organização do trabalho e das cadeias de produção, sem a actual insatisfação individualista e a dissolução de antigos laços não se difundiria a uberização do trabalho. Mas será que os trabalhadores estão condenados a reproduzir o capitalismo, sustentando a mais-valia absoluta quando se submetem, impulsionando a mais-valia relativa quando se revoltam?

Escrevi uma vez, aliás, muitas vezes que a vida do trabalhador tem inevitavelmente duas faces. Em termos simples, uma delas consiste em produzir mais-valia para o capital; a outra consiste nos laços de camaradagem que nunca deixam de se tecer, mesmo sem que haja lutas activas, bastando frequentar a cervejaria, o boteco, o café da esquina. Cada trabalhador é uma contradição ambulante, tem um comportamento duplo, e ao mesmo tempo que os administradores de empresa conseguem submeter ou recuperar uma dessas faces, a outra é rebelde e irrecuperável, porque diverge estruturalmente das hierarquias capitalistas. É esta contradição interna que impede o capitalismo de alastrar a todos os poros da sociedade e os dominar inteiramente. Sem isso não existiria sequer pensamento divergente, a aspiração ou o sonho de um futuro diferente, que reflecte outra realidade não menos real, a da solidariedade criada entre companheiros.

Estamos habituados a ver aquilo que por vezes ainda se chama lutas serem apenas manobras de burocracias sindicais ou outras. O capitalismo não ganha muito em recuperá-las, porque desde início não contaram com a iniciativa dos trabalhadores e baseiam-se na sua passividade. Já nascem recuperadas. Existem igualmente multidões estridentes que parecem varrer tudo à frente delas, mas cuja fúria não se dirige para as relações de trabalho e somente para algum objecto de aversão exterior, a propósito de uma certa etnia, de uma certo sexo ou propensão sexual, de um certo estilo de atitudes, em suma, de uma certa identidade. São estes os movimentos mais nocivos, porque as histerias de massas são meramente destrutivas. Afinal, o bom senso e os pés na terra têm sido o principal travão dessas alucinações. Existem também as disputas no plano simbólico, que são uma especialidade universitária muito estimada pelo capitalismo porque, enquanto tudo se resumir à substituição de símbolos, sejam palavras ou estátuas, as relações de trabalho mantêm-se como estão. Por isso ocupam tanto espaço nas notícias.

São outras as lutas a que me refiro, envolvendo a solidariedade entre os trabalhadores nas reivindicações surgidas directamente no âmbito das relações de trabalho, e admitindo o colectivismo que emana desta solidariedade. Na esmagadora maioria dos casos não ultrapassam a fase de gestação, quando se repartem por conflitos que, embora sendo individuais, não podem prosseguir sem o apoio ou pelo menos a complacência dos colegas. Estas formas de conflito estão longe dos olhos das mestrandas em sociologia, porque nenhum trabalhador irá responder a inquéritos de campo explicando os ardis que usa para reduzir a taxa de exploração. Um dos objectivos da administração de empresa é detectar esses conflitos e contorná-los, inserindo-os nas rotinas de trabalho, para que resulte um aumento da produtividade. Parece a condenação de Sísifo, mas quem aqui é Sísifo, o trabalhador que vê os conflitos recuperados ou o administrador de empresa que vê surgirem sempre novas formas de conflito?

Os laços de solidariedade que naquele vaivém se tecem entre os trabalhadores têm obrigatoriamente um carácter discreto, porque de início, para se desenvolverem, precisam de não ser detectados. Marx falou da Velha Toupeira, e a comparação é boa. Talvez melhor ainda seja a metáfora empregue por um personagem de Balzac em Modeste Mignon, o marreco Butscha, que, pegando numa frágil erva, explicou a Ernest de La Brière: «Está a ver?… Esta ervinha acha que o homem constrói os seus palácios para que ela os habite, e chega um dia em que derruba até os mármores mais solidamente unidos, tal como o povo, introduzido no edifício do Feudalismo, o deitou por terra. O poder do fraco que pode insinuar-se por todo o lado é maior do que o do forte que confia nos seus canhões». É a estas pequenas movimentações discretas do dia-a-dia que me refiro. E se, na época actual, os computadores e as redes sociais facultam aos patrões e à polícia novos instrumentos de vigilância, põem também à disposição dos trabalhadores novas formas de inter-relacionamento.

Não se trata aqui de consciência, trata-se de situação. Os universitários e os militantes iluminados gostam de evocar a consciência, e para eles a classe trabalhadora só existe quando é portadora de uma dada consciência, idêntica à deles. Ora, a classe trabalhadora tem uma existência permanente no nível económico, enquanto produtora de mais-valia, mas a sua existência no nível sociológico, enquanto modelo de comportamentos, e no nível ideológico, enquanto portadora de uma consciência, é só ocasional. A consciência, se vier, chega depois, se a solidariedade e o colectivismo atingirem dimensões apreciáveis nas lutas e conseguirem prolongar-se de forma duradoura. Este é o mecanismo básico, e nele deve incidir a nossa atenção.

Na década de 1960 e no começo da década seguinte essa solidariedade e esse colectivismo na luta expandiram-se por todo o mundo e nalguns casos extremos atingiram um nível superior, criando novas formas de consciência. Fui testemunha em dois países, vi essa solidariedade remodelar a sociedade. E o facto de serem episódios de curta duração — no curso da História, um ano é um instante — não significa que não sejam reais. Também na física estados da matéria que duram apenas uma fracção de tempo ínfima não deixam por isso de ser reais e contribuir para o conhecimento da totalidade da matéria, servindo de suporte a novas técnicas, que alteraram profundamente a realidade em que vivemos.

Afinal, o futuro fugiu, mas o presente não foge.

Em páginas geniais nas suas Confissões, Agostinho de Hippo, ou Santo Agostinho, defendeu que em cada momento só existe um tempo — o presente. Já Aristóteles, na Física, considerara o presente como o substrato do tempo, mas Agostinho de Hippo colocou a questão numa perspectiva estritamente humana, porque se «o tempo […] não é o movimento de um corpo», então é só para os humanos que o problema do tempo tem significado.

Agostinho de Hippo começou por inquirir «se existem tempos passados e tempos futuros», porque, se existirem, «gostaria de saber onde estão». E continuou: «E se bem que não conheça ainda a resposta, sei, no entanto, que, onde quer que estejam, estão lá não como futuro ou passado, mas como presente. Porque, se também forem futuro nesse lugar onde estiverem, ainda lá não estão; se forem passado, já lá não estão. Portanto, onde quer que estejam e o que quer que sejam, existem apenas como presente».

Em seguida, Agostinho de Hippo reflectiu sobre uma questão que diz directamente respeito ao tema central deste ensaio, o futuro que fugiu. «Ainda que coisas passadas sejam narradas como verdadeiras, elas são extraídas da memória — não as próprias coisas, que já se foram, mas as palavras, que as imagens dessas coisas geraram na mente, tal como pegadas, na sua passagem através dos sentidos. […] Quando […] se diz que são vistas coisas futuras, não são as próprias coisas — que são futuras e, portanto, ainda não existem — mas as suas causas talvez, ou os seus sinais, que já existem. Assim, para aqueles que já os contemplam eles não são futuro, mas presente, e é a partir deles que coisas futuras são concebidas na mente e pressagiadas».

Retomando o tema deste ensaio na perspectiva exposta por Agostinho de Hippo, concluo que do futuro anunciado há um século restam as palavras que o proclamaram. E o futuro que podemos anunciar hoje são «as suas causas talvez, ou os seus sinais, que já existem», e que encontro nos elos de solidariedade, tal como são agora tecidos no quotidiano das lutas actuais. «Estas noções existem no presente e são contempladas como presentes por aqueles que graças a elas pressagiam coisas futuras».

E Agostinho de Hippo resumiu: «[…] é agora patente e claro que não existem coisas futuras nem passadas. Nem é correcto dizer que “há três tempos, passado, presente e futuro”. Talvez seja preferível dizer que “há três tempos: um presente de coisas passadas, um presente de coisas presentes e um presente de coisas futuras”. Porque, com efeito, estes três tempos existem na mente, senão eu não os veria. O presente de coisas passadas é a memória; o presente de coisas presentes é a visão; o presente de coisas futuras é a expectativa». Algumas páginas adiante, Agostinho esclareceu de novo: «[…] na mente […] efectuam-se três coisas: a mente antecipa, observa e recorda […] na mente há já a antecipação de coisas futuras. […] na mente há ainda a memória de coisas passadas. […] a nossa observação perdura, e através dela aquilo que é presente torna-se ausente. Assim, não é o tempo futuro que é longo: um “longo futuro” é simplesmente uma longa antecipação do futuro. Nem o tempo passado, que já não existe, é longo; um “longo passado” é simplesmente uma longa memória do passado» (traduzi estas citações a partir de St Augustine, Confessions, Londres: The Folio Society, 1993, págs. 220-222, 225 e 228-229, versão baseada na tradução de J. G. Pilkington).

À luz destas passagens seria possível edificar uma teologia da eternidade enquanto ausência de tempo, que serviria para destruir a abominação calvinista, apesar de ela, paradoxalmente, se reivindicar de Santo Agostinho. Mas creio que os leitores deste site preferirão manter os pés na terra. E assim estamos nós hoje, entre um «longo passado» que «é simplesmente uma longa memória do passado» e um «longo futuro» que «é simplesmente uma longa antecipação do futuro». Karl Marx não nos legou uma bola de cristal, mas um método de análise crítica. A nossa matéria-prima é o presente.

As ilustrações desta terceira parte de O Futuro Fugiu reproduzem obras de Natalia Gontcharova (1881-1962).

Este ensaio compõe-se de três partes, podendo ser lidas aqui a Primeira Parte e a Segunda Parte.

1 COMENTÁRIO

  1. Nos foi legado um método de análise, não uma bola de cristal.

    Embora quase sempre a vidência seja compreendida como a capacidade de se antever o futuro, deste nada há para se ver, a não ser uma nuvem fugidia de possibilidades em incessante alteração.

    Longe de ter a ver com o futuro, a vidência é “a visão do que está tomando forma” aqui e agora. Ver neste exato instante aquilo que apenas tarde demais todos acabarão também por perceber.

    E para a vidência assim se manifestar, o principal meio é justamente o método de análise.

    Qual futuro está prestes a se materializar no presente? Socalismo ou barbárie? Comunismo ou extinção?

    Houve um tempo passado, e hoje poucos dele querem saber, ou dele desejam recordar, quando estivemos à beira de vencer.

    Por exemplo, quando a Revolução Cultural propôs a transformação da China numa federação de comunas, com dirigentes livremente eleitos e com mandatos revogáveis.

    Para aqueles hoje sem rumo nas águas turvas que sucederam a derrota, onde julgam verem ilhéus perdidos estão os cumes de cordilheiras submersas.

    O que restou, senão se indagar: o que é ser revolucionário numa época não revolucionária? 

    《Num movimento, tanto pela terra como por teto, transporte ou por qualquer outro objetivo, a vida das pessoas tem de ser diferente desde o início, elas têm de se organizar de uma maneira que rompa com a sociedade dominante; em todas as dimensões de sua vida tem de haver mais autonomia e mais coletividade. Ou seja, as formas de organização coletiva têm desde o início de ser distintas das que vigoram no capitalismo.》

    Onde encontrar no presente as aparentemente frágeis e diminutas ervas, entretanto poderosas a ponto de trincar e por abaixo as mais sólidas muralhas?

    Nos trabalhadores precarizados e sem qualificação, mas peritos em manusear os sofisticados meios de comunicação contemporâneos?

    Nos analfabetos funcionais, porém esbanjando criatividade?

    Na juventude dos subúrbios da periferia, com sua insubmissa rejeição a um mundo que os trata como refugo e dotados da fúria incontrolável para destruí-lo?

    Sendo o tempo a própria substância do modo de produção capitalista, e o presente a matéria-prima com a qual se deve engendrar a Revolução, entre um “longo passado” e um “longo futuro” agora toma forma um intervalo de dramática aceleração da História.

    Quem a ele pode ver?

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