Poder operário na Itália (3)

Por Leo Vinícius Liberato

 

Leia também a primeira e a segunda parte do artigo

Em 1974 o movimento operário do centro e norte da Itália ainda demonstrava força. O caráter espontâneo das contínuas lutas de fábrica fizeram as grandes fábricas da Fiat serem consideradas ingovernáveis por volta desse ano. Além das greves selvagens, e a intimidação a supervisores, o absenteísmo chegava a 28% em certas semanas [1].

Também em 1974, quando o governo anunciou um aumento substancial dos preços dos combustíveis e dos alimentos, trabalhadores de várias fábricas fizeram passeatas espontaneamente, durante uma semana. Nesse mesmo ano as chamadas autorreduções se difundem. Prática que ocorria esporadicamente em 1968 e 1969 entre estudantes e trabalhadores através da recusa em pagar as tarifas de transporte. Em 1971 jovens em Milão forçaram a redução de preços de apresentações musicais ameaçando sabotá-las. Contudo, foi somente com a participação de delegados de conselhos de fábrica, de comitês de bairro e de sindicatos que as autorreduções se tornaram uma prática de resistência viável e difundida entre 1974 e 1975. Tiveram início em Turim quando grupos de trabalhadores da Fiat de Rivolta se recusaram a pagar o aumento de 25 a 50% para as empresas de ônibus que os levavam ao trabalho. O sindicato dos metalúrgicos organizou “delegados de ônibus” para recolher o dinheiro à tarifa antiga e enviá-lo para as empresas. As autorreduções também foram feitas sobre as tarifas de energia elétrica. Cerca de 150 mil contas de energia elétrica foram autorreduzidas em Piemonte. As autorreduções se espalharam por outras cidades italianas, especialmente em Roma, e atingiram também as contas de telefone e os aluguéis. Note-se que elas se centravam nas tarifas de serviços prestados pelo Estado, mais fáceis de resistir do que as de serviços privados [2].

Poder operário na Itália (3)

Em 1975 começam a surgir os chamados círculos da juventude proletária, precursores dos Centros Sociais [3], formados por jovens trabalhadores de pequenas empresas para articular lutas em diferentes firmas, mas que se engajaram também em autorreduções, através da entrada em massa em cinemas, em apresentações musicais e em outras atividades culturais [4]. Em 1975-1976, na visão de Steve Wright, só as práticas de autorredução forneciam alguma ligação entre os setores cada vez mais diferenciados da classe trabalhadora italiana [5].

Em 1974 eclodiu também um movimento de estudantes secundaristas contra os cortes no orçamento da educação, realizando manifestações e ocupações. Uma nova onda de ocupações de moradias também teve início, se espalhando de Roma a Turim [6]. Em 1976, em Milão, havia 1500 ocupações de unidades de moradias públicas e 37 de moradias privadas [7].

Nápoles, no sul da Itália, foi palco de diversas lutas coletivas em 1975 e 1976, sendo o movimento de desempregados o mais significativo, mobilizando milhares de pessoas e se tornando referência para a atividade militante na região. As autorreduções e ocupações de moradias também se tornaram práticas expressivas em Nápoles [8].

A resposta dada durante os anos 1970 às lutas nas fábricas foi a reestruturação produtiva, a automatização e descentralização do processo produtivo, com o aumento do setor informal da economia [9]. Em 1980 a Fiat impõe uma derrota marcante aos operários, mudando a correlação de forças na fábrica. A retomada do pleno poder da Fiat nas suas fábricas foi um marco do fim de uma era de lutas que durava dez anos. Em outubro de 1979 a Fiat demitia 60 trabalhadores, todos lideranças operárias. No ano seguinte demitiria milhares de operários, entre eles aqueles com participação política mais ativa. Após 34 dias de greve, uma marcha composta por supervisores, gerentes, técnicos e trabalhadores de escritório atravessou as ruas de Turim, demandando o direito de trabalhar, contra os operários em greve e os piquetes. Tal marcha teve grande impacto e determinou a derrota dos operários e a vitória política da direção da empresa, que havia calculado sua ofensiva contra os trabalhadores em termos políticos mais que econômicos.

Poder operário na Itália (3)

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No final da década de 1970, a nova geração de trabalhadores apresentava uma subjetividade diferente da geração precedente. Socializados numa Itália já industrializada, com meios de comunicação como a TV, e permanecendo mais tempo na escola – até os 16 ou 18 anos – , que constituía um espaço-tempo para o florescimento de uma cultura juvenil. Para esses jovens o local de trabalho não era mais o centro de sua existência (havia de fato uma rejeição ou desgosto pelo trabalho); a própria identidade como trabalhador se enfraquecia. Ao mesmo tempo portavam um anti-autoritarismo e uma desilusão com o sistema político, com o Partido Comunista Italiano (PCI) ou mesmo com os grupos da esquerda extraparlamentar. Os antigos trabalhadores viam a nova geração que chegava no final dos anos 1970 como preguiçosos e irresponsáveis [10].

No final dos anos 1960 surgiram os primeiros grupos feministas da esquerda italiana. Mas seria nos anos 1970 que o movimento feminista se desenvolveria e acabaria se tornando o mais influente na sociedade italiana, na esquerda italiana e mesmo nas práticas e na teoria dos grupos da esquerda extraparlamentar. Do final de 1975 em diante o movimento feminista ganhou proporções nacionais, alcançando seu auge em 1976. Além de colocar o pessoal como político, a ênfase em formas não autoritárias e não hierárquicas de organização foram características do movimento feminista italiano que exerceram grande influência na esquerda italiana, embora não sem conflitos com suas organizações políticas.

Junto a campanhas nacionais e vitoriosas pelo direito ao divórcio e pela descriminalização do aborto, os grupos feministas estabeleceram uma série de espaços para mulheres, de clínicas médicas a locais para troca de informações e encontros. Mais do que outro movimento, as feministas enfatizavam a importância da organização em pequenos grupos autônomos, ligados horizontalmente, ao contrário da organização em comitês centrais, frequentes na esquerda [11].

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Em 1977 irrompeu um processo de lutas, ou de acirramento delas, tendo como ponto de partida a ocupação da Universidade de Roma pelos estudantes. Embora os conflitos nas fábricas não estivessem de todo ausentes, as lutas que caracterizaram a segunda metade dos anos 1970 na Itália, e que ficou genericamente conhecido por ‘movimento de 77’, foram protagonizadas principalmente por uma juventude que, diferentemente da de outros países, unia a contracultura a um imaginário comunista e proletário. Ao contrário, por exemplo, da Inglaterra, onde no mesmo período a depressão econômica e o desemprego resultaram em expressões culturais como o punk, na Itália a resposta dessa juventude teve vieses bem mais políticos. Embora tardia, a contracultura na Itália era muito mais politizada [12].

O heterogêneo movimento de 77 teve características de movimento de massa, e, à diferença de 1969, que havia sido fruto de um boom econômico, 1977 foi conseqüência de uma crise econômica e de elevado desemprego juvenil [13]. Para muitos, se tivesse havido uma revolta operária como em 1969 ou 1973, uma situação revolucionária teria ocorrido em 1977 [14]. Os principais palcos de confrontos e conflitos sociais em 1977 foram Roma e Bologna (governada pelo PCI): cidades sem muitas indústrias e caracterizadas por uma produção descentralizada.

O espírito anti-hierárquico e antissexista era típico também do movimento de 77. No período, as autorreduções não visavam contas de energia elétrica, mas tarifas de transporte, entradas para cinema e apresentações musicais. Inúmeras rádios livres foram postas no ar, e as ocupações de imóveis visavam não apenas moradia, mas um local para atividades políticas e culturais. Era o surgimento dos chamados Centros Sociais. Em Milão, por exemplo, havia 55 deles em 1977, envolvendo milhares de pessoas, sobretudo jovens [15]. Dezenas de milhares se envolveram em manifestações e batalhas de rua pelo país, com uma forte resposta repressiva chegando a fazer vítimas fatais, o que levou a uma espiral de violência que acabou deixando pouco espaço para intervenções não-violentas e facilitou a estratégia repressiva e de criminalização estatal.

A “desafecção do trabalho” por parte da juventude era tema debatido na imprensa. O comportamento da juventude autônoma e comunista que formava o ‘movimento’ expressava um repúdio ao trabalho [16]. Sua subjetividade e prática se orientavam para a satisfação de desejos e necessidades sem passar pelo mundo do trabalho que, como vimos anteriormente, era encarado por essa geração como espaço-tempo roubado da vida. Essa expressão antitrabalho, no entanto, vinha acompanhada em geral de elevada politização, de um desejo comunista explícito, e até mesmo de uma identidade proletária.

Poder operário na Itália (3)

Cesare Battisti é um personagem típico da juventude militante que protagonizou os conflitos sociais na segunda metade da década de 1970 na Itália. De família de tradição comunista, entretanto rompeu com o stalinismo da geração anterior. Envolveu-se com “expropriações” (assaltos e furtos) em meados dos anos 1970, lhe rendendo dois anos de prisão. Foi então morar em um prédio ocupado por outros jovens do ‘movimento’. A ocupação era espaço de discussão política, mas também de socialização e de relações afetivas [17]. Em 1977 entra para o Proletários Armados pelo Comunismo (PAC), uma das centenas de grupos da extrema-esquerda italiana da época, e que fazia parte do arquipélago que compunha o campo da Autonomia. O PAC, como muitos grupos formados por ativistas anticapitalistas e ambientalistas que surgiram na Europa e EUA nas décadas seguintes, era na verdade um nome, uma bandeira, que poderia ser usado por qualquer um que se identificasse com certos propósitos e princípios. Antes do PAC, Battisti costumava ir a manifestações da Lotta Continua, o maior grupo da esquerda extraparlamentar daquela década, nascido nas lutas operárias de 1969 [18] (que se dissolveu em 1976 em parte pelo choque entre sua estrutura ainda por demais hierárquica e não-participativa com a subjetividade que emergia através do feminismo e da nova geração).

O movimento de 77 se caracterizou também por um antagonismo explícito, direto e até mesmo inevitável com o PCI, como partido da ordem, e pela condenação e repressão ao movimento por parte do PCI (o que só aumentava a percepção de ser o PCI partido da ordem vigente). O PCI na década de 1970 seguiu o caminho de acordo com a Democracia Cristã (DC), que ficou conhecido como Compromisso Histórico. Nele, teoricamente tentando evitar um golpe à direita como acontecido no Chile, o PCI compartilharia o governo com a DC, no que isso implicava também em ter um papel de repressão aos movimentos sociais e manutenção da ordem, isto é, da normalidade econômica, social e política estabelecidas. O PCI e os sindicatos, representantes de uma classe trabalhadora formalmente empregada, se opunham aos estudantes, desempregados e “marginalizados” que protagonizavam o movimento de 77, fazendo uso de um discurso, entre outros, que apontava uma oposição entre os que seriam os produtores, o trabalho produtivo, ou seja, os operários (aqueles os quais o partido e os sindicatos representariam politicamente) e os setores parasitários. A separação explicitava um apego a uma ética do trabalho, determinando a oposição entre aqueles que participariam conscientemente do processo de produção e aqueles que se oporiam ao processo produtivo. Ou seja, o discurso da circunscrição de classe produtiva aos operários representados institucionalmente pelo PCI e pelos sindicatos, e a conseqüente extensão das classes parasitárias a todos os demais, incluindo os sujeitos que davam vida ao movimento de 77, com todo seu caráter subversivo e proposição anticapitalista, era, nessas circunstâncias, um discurso conservador, que buscava legitimar a existência do partido e das burocracias sindicais e cumprir o papel de combater ideologicamente o movimento [19].

A derrota do movimento autônomo no final dos anos 1970 levou à sobrevivência residual e marginal, ou subterrânea, de suas experiências e práticas.

Poder operário na Itália (3)

Notas

[1] Cf. KATSIAFICAS, George (1997). The Subversion of Politics: European Autonomous Social Movements and the Decolonization of Everyday Life. New Jersey: Humanity Press, p.41.
[2] Sobre as autorreduções, particularmente em Turim, ver CHERKI, Eddy; WLEVIORKA, Michel (1980). Autoreduction Movements in Turin. In: LOTRINGER, Sylvere; MARAZZI, Christian (eds). Autonomia: post political politics. New York: Semiotext.
[3] Os Centros Sociais, base dos movimentos autônomos que deram origem à fração do “movimento antiglobalização” italiana, consistem em casas, prédios ou fábricas abandonados que foram ocupados e transformados em centros políticos e culturais autônomos e autogeridos. Existem mais de cem por toda a Itália. Formados desde o início da década de 1980, o maior e mais antigo deles, Leoncavallo, em Milão, têm capacidade para abrigar milhares de pessoas em eventos.
[4] Cf. WRIGHT, Steve (2002). Storming Heaven: Class Composition and Struggle in Italian Autonomist Marxism. Londres: Pluto Press, p.165.
[5] Cf. Wright (1996).
[6] Cf. Wright, op. cit.
[7] Cf. LUMLEY, Robert (1990b). State of Emergency: cultures of revolt in Italy from 1968 to 1978. New York: Verso.
[8] Cf. GINSBORG, Paul (1990),. A History of Contemporary Italy: Society and Politics 1943-1988. London: Penguin, 1990.; Wright, ibidem.
[9] Cf. Ginsborg, ibidem; Wright, ibidemba.
[10] Cf. BARKAN, Joanne (1984). Visions of Emancipation: The Italian Workers’ Movement since 1945. New York: Praeger.
[11] Cf. Katsiaficas, op. cit., p.49-50).
[12] Cf. LUMLEY, Robert (1990a). Challenging Tradition: Social Movements and the Ecology Question. In: BARANSKI, Z.G.; LUMLEY, R (eds). Culture and Conflict in Postwar Italy. London: MacMillan.
[13] Cf. ABSE, Tobias (1985). Judging the PCI. New Left Review, n.153. London, oct.-sept.; RED NOTES (ed.) (1978). Italy 1977-8: Living with and Earthquake. London: Red Notes.
[14] Cf. Katsiaficas, ibidem.
[15] Cf. Lumley (1990b); Ginsborg, ibidem.
[16] Cf. Lumley, ibidem.
[17] Cf. BATTISTI, Cesare (2008). Minha Fuga sem Fim. São Paulo: Martins Fontes.
[18] Usar o jornal Lotta Continua (que sobreviveu à dissolução do grupo) no bolso de trás da calça era moda entre os jovens, e Battisti não fazia diferente.
[19] Cf. Red Notes, op. cit.

 

As artes que ilustram o texto são da autoria de Valerio Adami (1935 -).

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