Perfil Alto contra Perfil Baixo

Por J. Kol Trane

 LET’S-PLAY-A-GAME O doutor King dizia que não tinha muito sentido gritar “Poder Negro” [Black Power]. Quem quer poder não o diz, e muito menos sai gritando pela rua com o punho em riste. É pouco esperto, ativa os alarmes dos adversários. Quem quer poder normalmente diz que quer outra coisa. E assim Carmichael ficou meses explicando a todos o significado do slogan. O doutor King já estava morto, mas acho que teria dito: – Stokely, se você precisa explicar, bom slogan não é.  (The New Thing, Wu Ming 1)

O diálogo fictício que a voz LET’S-PLAY-A-GAME apresenta nesta passagem da novela de Wu Ming 1 sintetiza um problema antigo, mas que vem ganhando um estranho protagonismo nos dias de hoje. A novela policial trata de um misterioso assassino em série que escolhe suas vítimas na “cena” do nascente free jazz nova-iorquino, e por meio da técnica de colagem a história é acompanhada por vozes que fazem os comentários históricos e políticos que dão o contexto dos eventos. No caso da passagem em questão, o foco está posto na transição de uma geração de ativistas sociais e políticos acostumados a cultivar o perfil baixo, antes que tudo para salvaguardar suas vidas, para uma nova geração com forte componente performativo, em que o mostrar-se em público, mostrar-se desafiante, tornou-se um aspecto quase central.

É necessário reconhecer, no entanto, que não são tendências antagônicas. Afinal, Martin Luther King foi essencialmente uma figura pública. Atuava assim, mas cumprindo um papel numa rede muito vasta de práticas e ações de perfil baixo. Não seria justamente por atuar como figura pública, que ele pode perceber a inversão de princípio que estava apenas começando a ocorrer?

Perfil Alto contra Perfil Baixo

O contexto do movimento negro nos Estados Unidos nos mostra que ambas formas de militância construíam juntas diversas trincheiras e foram parte importante da massificação e dispersão das lutas. Basta pensar que o partido das Panteras Negras foi criado por dois jovens em 1966 e em um par de anos já estava presente em muitas capitais dos Estados Unidos. Parecia haver uma confluência entre uma militância de perfil baixo e uma de perfil alto, se não de forma orgânica, ao menos de forma histórica.

Hoje ambas correntes seguem vivas. Mas a militância de alto perfil seguiu ganhando uma relevância sem precedentes, e por este caminho pressionou por sua integração nos quadros da exploração. O “alto perfil” se tornou sinônimo de militância. É assim que as opiniões políticas de atores de Hollywood passaram a ser notícia internacional. Bem, talvez hoje deveríamos dizer atores da Netflix, mas o surgimento de amplas camadas de semi-celebridades mantém a mesma função de 50 anos atrás: ser um exemplo para a vida de cada humano mundano. Independente do conteúdo, seja ele feminismo, veganismo, conservadorismo, seja qual for a mensagem veiculada, o essencial é a forma. Se trata de exercitar publicamente as opiniões individuais. Esta modalidade de mobilização virtual, além de produzir uma satisfação pessoal afetiva na crença de promover um mundo melhor, também garante o escrutínio generalizado das opiniões.

Essa prática permite que qualquer indivíduo seja “porta-voz” dos mais diversos movimentos, inclusive daqueles dos quais não se participa. É um infeliz resultado do horizonte perseguido pelos setores “midiativistas” dos anos 90-2000, onde todos poderíamos produzir as nossas próprias notícias, um “jornalismo de base” que prescindiria das grandes empresas de comunicação.

A burocratização dos sindicatos no século XX mostra em termos históricos a importância da legitimação de interlocutores alheios a um coletivo em luta, legitimação que é buscada ativamente pelas classes capitalistas a fim de controlar ou ao menos conseguir certa previsibilidade sobre as atividades proletárias. Se por um lado essa burocracia cobra certo preço dos capitalistas para exercer essa função funesta, em seu vínculo com as bases, a burocracia precisa ganhar prestígio para não ser questionada em suas omissões e repressões. Um bom burocrata precisa passar uma imagem “de luta”, precisa ostentar os símbolos de prestígio de sua base social, se não, não dura muito.

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Não causa espanto, então, que a militância de perfil baixo seja motivo de desconfiança. Quem investe mais de seu tempo e de sua cabeça na criação de uma ficção, é quem mais tem a perder se a lógica dos símbolos, da superexposição, perde protagonismo. Não parece ser coincidência que o colapsismo seja uma estética tão em voga nestes nossos dias. O discurso hiperbólico obviamente tem a vantagem de ressaltar-se na enorme oferta de conteúdos e distrações do mundo digital. Mais do que isso, a estética colapsista ofusca todos os outros temas possíveis e implanta de forma mais eficaz o sentimento de culpa nos indivíduos, mobilizando massas a uma postura de cobrança generalizada (muito bem sintetizada na figura da adolescente ranzinza Greta Thunberg).

Esses mecanismos que estão por detrás do ativismo de alto perfil, não terminam funcionando como uma supressão do ativismo de baixo perfil? Não apenas por diversionismo. Antes o fosse. Mas por operar uma verdadeira descrença generalizada nas pequenas ações que não entram no circuito do prestígio público, na auto-exibição constante. E o problema não se limita a uns poucos oportunistas que cultivam sua própria imagem, basta ver como o grosso da população mundial utiliza seus celulares como forma de mediação com o mundo: se não estão a consumir as imagens, são eles e elas mesmas a produzi-las.

Perfil Alto contra Perfil Baixo

O que fazer então com este cenário onde a militância de alto perfil tem efeitos tão intrincados na militância de baixo perfil? Na esquerda são diversas as respostas dadas a este problema. No âmbito ideológico e político, tenta-se correr atrás do dano infligido pelas novas correntes de direita, que por anos realizaram um trabalho incansável de divulgação e “entrismo” nos submundos da internet. Mas será essa uma questão que deva ser ignorada pelos setores que optam pelas lutas autônomas? Pressionar influencers potencialmente simpáticos às lutas é uma forma de difundi-las, mas será suficiente? Será necessário pressionar influencers burocráticos para que “assumam suas responsabilidades”? Ou de que forma as lutas autônomas podem criar suas próprias modalidades de ativistas de alto perfil, sem apenas reproduzir a lógica do prestígio virtual, e potenciando, ao invés de isolando, o ativismo de baixo perfil?

2 COMENTÁRIOS

  1. Não só《o “alto perfil” se tornou sinônimo de militância》, como a quantidade de views e inscritos é considerada “trabalho de base”.

    Considerando as redes sociais como o ambiente no qual o Capitalismo processa a monetização da comunicação, e mesmo das experiências de vida, a questão de fundo parece ser: existe militância virtual?

    Ou aquilo assim denominado não passa de um nicho de mercado, cuidadosamente delimitado pela Big Tech.

    Neste sentido, as views são apenas instrumento para agregar valor aos produtos distribuídos nas redes sociais.

    E como em toda concorrência no mercado, é de menor importância qualquer meritocracia, mais valendo todo tipo de alavancagem comercial.

    Exemplo: Guarará e Piau são duas pequenas, e pouco conhecidas, cidades de MG, com 3.700 e 2.700 habitantes respectivamente. Mesmo assim, uma youtuber do centro metropolitano da região produziu vídeos sobre elas com cerca de 150 e 120 mil acessos. Qual o mistério?

    Não há como escapar desta armadilha mercadológica sem a compreensão da função da comunicação, enquanto infraestrutura fundamental das lutas e movimentos.

    Cabe a comunicação conferir visibilidade recíproca aos movimentos, de modo a gerar condições para se interconectarem em rede.

    Sob esta perspectiva há espaço para influencers?

  2. Bom ponto do texto. Me lembrou esse trecho da autobiografia de um militante da “autônomo operária” americana: ”Bom menino, não fala muito” — https://illwill.com/good-kid-dont-say-much. Invertendo a pregação de Alto Perfil, a característica low profile do militante é escutar mais do que falar?

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