Por Isadora de Andrade Guerreiro
Chegou a hora da palavra de ordem “Por um mundo sem catracas” (Movimento Passe Livre) estar estampada no seu cartão de crédito – que, ironicamente, será também seu cartão de transporte, para passar na… catraca. Afinal, “Existem coisas que o dinheiro não compra. Para todas as outras existe Mastercard”. O futuro sombrio da conhecida propaganda já estava no ar quando foi lançada pela bandeira da operadora financeira: a aproximação de todas as esferas da vida pelo crédito, inclusive aquelas que pareciam não ser mediadas pelo dinheiro. A outra bandeira, a da disputa pela desmercantilização dos direitos, que empurrava a fronteira do outro lado, buscando ampliar o campo das “coisas que o dinheiro não compra” (ou não deveria comprar) do MPL parece estar nesse limbo no momento: ser apropriada pelo mundo das finanças que, afinal, é a nova esfera pública, lugar da cidadania. A esfera dos direitos, em vez de se desmercantilizar, se aprofunda no “salto mortal” da mercadoria, agora financeirizada[1].
O limbo atual das catracas do transporte público é bastante escorregadio, e pode ser recuperado em 2004, com o sistema de bilhetagem eletrônica do Bilhete Único em São Paulo. Se aos olhos do usuário do transporte público aquilo permitia a liberdade de integração de viagens, aos olhos do sistema financeiro a integração começou a se dar de forma mais profunda. Antes de tudo, ela significava a possibilidade de adiantamento e concentração de recursos tarifários antes dispersos. Qualquer adiantamento de recursos gera rendimentos, porém eles permaneceram ocultos aos olhos e ao bolso dos usuários, numa completa falta de transparência, seja de seu montante, seja de seu destino. As tarifas, no entanto, só subiam – em 2013, deu no que deu.
Pós-2013 a permanência do silêncio sobre a gestão financeira do adiantamento dos recursos tarifários em São Paulo parece esconder mais do que a manutenção de contratos espúrios com as empresas de transporte – herdeiras de uma era comercial simplória do negócio. Já no governo do estado, o processo de conexão do transporte público com as finanças pareceu avançar mais, desde a primeira Parceria Público-Privada (PPP) brasileira do setor, na Linha 4 Amarela do Metrô, também entre 2004 e 2005. É no transporte metropolitano sobre trilhos (CPTM e Metrô) que começamos, mais recentemente, a ver transformações mais robustas nessas conexões, que passam inevitavelmente pela bilhetagem – que passou a ser realizada há cerca de um ano por QR-Codes, que também começam a ser testados nos ônibus municipais da capital mais recentemente. Coincidência ou não, a perseguição e violência no controle do comércio ambulante na CPTM cresceu enormemente nos últimos anos.
A geração instantânea de QR-Codes para passar pela catraca substituindo o antigo bilhete é um passo que não pode ser entendido – aos olhos do usuário – apenas como um problema do fim das bilheterias físicas, onde se dava bom dia para o funcionário e se usava notas de dinheiro. A função do QR-Code não é mecânica (passar pela catraca), mas sim fazer com que outras empresas possam emitir o bilhete, de forma controlada digitalmente, com uma transação financeira que o usuário não está vendo. Mediada, claro, por um aplicativo – a tecnologia que pode colocar na mão do usuário (literalmente) a possibilidade de imprimir/visualizar este bilhete. Poder, este, dado por uma fintech – que, por sua vez, pode articular uma espécie de condomínio de empresas parceiras, acionadas pelo usuário, no mais incrível mundo da liberdade.
A liberdade da vez, colocada em andamento pela empresa responsável pela implantação dos QR-Codes na bilhetagem, é o Cartão TOP, com novas funcionalidades lançadas este mês pelo governo do estado de São Paulo em meio à inauguração da primeira estação da CPTM realizada totalmente pela iniciativa privada, dentro de um mega empreendimento imobiliário. Ele vem para substituir o Cartão BOM (usado no transporte metropolitano paulista, que operava na lógica de bilhete único) e será usado também nos ônibus intermunicipais (EMTU).
O TOP, no entanto, não é apenas um cartão de transporte, mas uma Conta Digital, operada pela fintech Pefisa, a financeira das Lojas Pernambucanas, com bandeira Mastercard. Assim, o condomínio digital-financeiro envolve mais do que a possibilidade da compra de passagem ser feita diretamente pelo aplicativo, ou ainda pelo Whatsapp, máquinas de atendimento ou na “rede parceira” (comércio cadastrado), que pode inclusive dar troco em dinheiro vivo ou fazer a função de saque. Ele terá, além da função de cartão de transporte, as funções de débito, crédito, recarga de celular, pagamento de boletos, Vale Transporte, saque (nas Lojas Pernambucanas, de graça, na “rede parceira” taxa de R$ 6,99), conta salário e investimentos (Investe Fácil – com um mínimo de R$ 30 e resgate de 3 meses).
Tudo isso está sendo possível por causa do PIX do Banco Central, que tornou possível as transferências interbancárias sem taxação, pois centralizadas pelo órgão, e não pelos grandes bancos – o que torna toda conta digital feita por uma fintech um grande sistema de pagamentos, com amplo uso no comércio. É bom lembrar que o PIX vem junto da maior bancarização da história do país, que se deu pelo Auxílio Emergencial sendo realizado apenas pelo aplicativo da Caixa Econômica Federal – que, também recentemente, lançou um mega programa de crédito popular, mediado por um aplicativo específico, o “Caixa Tem”. O PIX vem para facilitar o fluxo de valores entre todos esses aplicativos, proporcionando transações simples e sem custo – ou crédito para a cidadania.
Afinal, a cidadania chegou, centralizada num único aplicativo TOP. E sim, você certamente irá usá-lo, ao menos se quiser o desconto de R$ 1,50 da integração metropolitana – que, afinal, você é livre para negar. Escolha sua, evidentemente. Claro, inclusive, que você está ciente da coleta de dados que todos estes aplicativos e “rede parceira” estão acumulando sobre você – mas não se preocupe, é apenas para definir melhor seu perfil de público-alvo nas políticas públicas que você, evidentemente, tem direito.
Constrói-se, assim, a nova cidadania, alcançada finalmente por meio do sistema financeiro – que lhe proverá inclusive a tarifa do transporte, quando os recursos lhe faltarem, a módicos juros. Há um mundo de possibilidades diante desta nova articulação pela cidadania, afinal. Por exemplo, fico eu aqui imaginando que a sua pontuação no cartão de crédito TOP poderá, eventualmente, ser transformada em bilhete de transporte, por que não? Afinal você, como consumidor ativo e responsável, merece Tarifa Zero. Ou merece uma porcentagem da tarifa se for cliente fidelizado da rede parceira, ou ainda se chamar um amigo! Se tiver investimentos então… a gente até paga para você seu transporte e libera a catraca no cinema, nosso parceiro – que a gente sabe que você gosta, afinal vai toda sexta-feira à noite, segundo seus dados sigilosamente coletados. É cliente do sistema educacional privado, nosso parceiro? Não se preocupe, nós pagamos seu transporte para a faculdade. Afinal, “existem coisas que o dinheiro não compra…”.
Tarifa Zero é para quem é cidadão de verdade, “do bem”, consumidor fidelizado, investidor ou endividado. Não para baderneiro. E fim de papo.
Nota
[1] Lena Lavinas tem vários trabalhos sobre este assunto. Para quem se interessar, indico este texto, que discorre sobre a financeirização da política social durante o ciclo de governos do PT: https://www.scielo.br/j/nec/a/5fqGSvyFTytWTNkQBJNGM3M/abstract/?lang=pt
modelo chinês! aquela parte da esquerda que desenterrou Stalin e faz loas à Xi Jinping deve estar muito entusiasmada com esse avanço das forças produtivas no solo paulista!
No Brasil o sistema financeiro tem sido sempre pioneiro em adotar inovações tecnológicas.
Longe de caracterizar pujança, neste caso trata-se de sintoma de senilidade precoce.
Up to date nas Fintech e PIX, arcaico na Bolsa Selic e no overnight.
Por um lado, expande as linhas de crédito. Por todos os outros, garroteia a renda pública.
Como não há criatividade capaz de fechar a conta, e por mais genial que seja, toda esta parafernália financeira já surge condenada à obsolescência.
O acesso do crescente precariado ao paraíso do consumo já não pode se dar pela via do crédito.
Os setores médios encolhem e tendem à extinção.
A COVID ceifa os aposentados, levando com eles seu aporte de renda às famílias.
A lumpenburguesia brasileira segue parasitária, incapaz de produzir valor.
Tarifa zero? Não! Salário zero. Renda abaixo do mínimo necessário para a subsistência. Capacidade de consumo irrecuperável.
Neste cenário distópico, banqueiros & associados estão com suas cabeças num vôo para Marte.
Não haverá nenhuma misericórdia para este país.