Por Anton Pannekoek

Publicado originalmente em International Council Correspondence, vol. II (1935-1936), n. 6, maio de 1936. Traduzido por Marco Tulio Vieira, segundo a versão online disponível no site Anton Pannekoek Archives. Inúmeros materiais em português de Anton Pannekoek foram disponibilizados pelo Portal Crítica Desapiedada e podem ser acessados no Dossiê: Anton Pannekoek (1873-1960).

I.

A luta feroz que o bolchevismo travou e continua a travar contra a religião na Rússia é particularmente útil por lançar uma luz sobre a essência da Revolução Russa. Os bolcheviques conduzem essa luta em nome do marxismo, da mesma forma como toda a sua política é posta em prática. Invocam, a esse respeito, a máxima marxista gravada como lema na fachada do Centro Comunitário de Moscou: que a religião é o ópio do povo. Na época em que o jovem Marx escreveu essa frase na “Crítica da Filosofia do Direito de Hegel” (1843), sua própria luta se assemelhava à luta posterior travada pelo bolchevismo na Rússia. Ele se destacava como o mais radical entre os jovens hegelianos, sobretudo na luta pelas liberdades civis contra o absolutismo feudal na Prússia. A burguesia ainda não detinha o poder político, mas estava em ascensão; a vida pública era assediada pela ação arbitrária da polícia, a vida intelectual pela censura e as melhores mentes viviam no exterior. Príncipes de mentalidade estreita estavam usando a religião como justificativa para terem o direito de suprimir toda liberdade. Portanto, segundo a expressão de Marx na época, a crítica terrena teve de começar pela crítica do céu.

A ascensão da sociedade burguesa sempre foi acompanhada por uma luta contra a Igreja, contra certas formas de religião ou mesmo contra a religião em geral. Isso correspondia à natureza das coisas, visto que no feudalismo a Igreja e a sociedade formavam uma unidade estritamente inter-relacionada. A Igreja cumpria funções políticas e sociais que nos séculos posteriores foram cada vez mais assumidas pelo Estado e seus órgãos: legislação, instrução, administração, proteção das comunicações, promoção da tecnologia. Em particular, toda atividade intelectual de direção na sociedade era desempenhada pela Igreja, desde a menor aldeia e permeando todo o corpo político; a Igreja governava sobre toda a cristandade como uma super-monarquia, constituindo um poder explorador formidável. Era natural que, durante a ascensão da burguesia, qualquer resistência a essa exploração assumisse a forma de heresia (albigenses, hussitas). Nos séculos seguintes, quando assumiu as proporções da tomada do poder pela burguesia, a resistência apareceu sob a bandeira da renovação da religião, como a Reforma entre os protestantes, calvinistas e puritanos.

Nas lutas de classes dos séculos XVI e XVII, as religiões eram o que os partidos políticos foram no século XIX, as organizações vivas dessa luta; mais tarde se fossilizaram em igrejas com dogmas mortos.

Quando o caminho estava sendo aberto para a revolução na França, no século XVIII, o movimento foi dirigido não apenas contra a nobreza e monarquia, mas também contra a Igreja. A obediência à Igreja estava ligada à obediência ao príncipe; a religião era o meio mais importante para garantir a submissão das massas. Uma poderosa oposição social ao poder dominante determinava, portanto, espiritualmente, uma ruptura com a Igreja. A forma principal dessa oposição era a de um sentimento religioso pessoal confuso, à parte de toda a doutrina clerical, como no caso de Rousseau, embora pontos de vista materialistas fossem, mesmo naquele momento, encontrados em uma série de pensadores. Através das descobertas da ciência natural, particularmente da lei da gravitação por Newton, ficou estabelecido que a natureza está sujeita a uma ordem fixa de leis naturais que impedem qualquer interferência arbitrária. Isso forneceu à burguesia ascendente as armas do livre-pensamento crítico em sua luta contra a Igreja. Havia também o fato de que os camponeses e a burguesia olhavam com inveja a grande propriedade latifundiária negligenciada da Igreja, domínios que eles mesmos gostariam de possuir para poderem cultivar e aprimorar. E na Revolução Francesa de 1789 eles roubaram, de fato, essas posses da Igreja. Tendo em conta o enorme déficit do Estado, era a única forma de evitar a falência: a apreensão e venda das posses da Igreja, para que elas pudessem ser melhor utilizadas para fins agrícolas e industriais. Desde então, a Igreja é o inimigo jurado da revolução. Consequentemente, a burguesia revolucionária foi obrigada a atacar a Igreja de maneira mais acentuada do que de outra forma estaria inclinada a fazer, através da luta contra a religião. O fato de que na França, até os dias de hoje, o racionalismo e o livre-pensamento estarem tão difundidos entre as classes médias é em boa parte devido a esse conflito histórico.

No século XIX, a burguesia viu-se obrigada a continuar essa luta, não só na França, mas também noutros países em que estava em ascensão, de modo a obter o domínio completo. Nesse contexto, a luta contra a religião dominante teve de ser concretizada por uma dupla razão:

Em primeiro lugar, as formas tradicionais de religião tinham a sua origem num modo de produção obsoleto e atrasado, ao qual estavam bem adaptadas — um mundo do artesanato e dos pequenos camponeses, do qual a sociedade se erguia agora. Essa religião dependia de formas externas de devoção e era uma superstição estreita e estúpida da pequena burguesia e dos camponeses, entre os quais o pastor ou sacerdote era o único intelectual alfabetizado. Na burguesia mais desenvolvida crescia uma religião diferente, correspondente às necessidades de uma sociedade produtora de mercadorias: a fé pessoal de um burguês independente em seus próprios recursos. As doutrinas tradicionais estavam perdendo força. A isso se acrescenta o rápido desenvolvimento da ciência natural, que, como base do rápido desenvolvimento da tecnologia e do florescimento do capitalismo, recebeu nas mãos da burguesia um cuidado especial. Essa ciência ensinou a extensão do universo, as leis da natureza, os milhões de anos da história da vida na Terra, a evolução do reino animal para o homem, em todos os campos de conhecimento questionou as histórias da Bíblia, retratando-as como ignorância primitiva. E aqui temos o advento do mais forte entre os novos pontos de vista, ou seja, o materialismo burguês, que muitas vezes também é chamado materialismo das ciências naturais. Ele ensinou que o mundo inteiro, incluindo a vida e o desenvolvimento da humanidade, é regido apenas por leis naturais, que essas leis naturais são capazes de explicar todos os enigmas da vida e do destino, e que um poder superior misterioso não é necessário e não existe. Esses pensadores da burguesia acreditavam que o desenvolvimento capitalista traria o bem-estar geral e eliminaria toda a miséria, toda a pobreza e toda a estupidez, logo viam todos os problemas como resolvidos ou solúveis, e não tinham mais necessidade de qualquer poder superior.

No entanto, a burguesia não podia contentar-se com o seu próprio abandono da velha religião. Era obrigada também a atacá-la e combatê-la, pois a burguesia queria tirar o poder da sociedade das mãos dos príncipes, da nobreza e dos proprietários de terras. O poder de todas essas classes reacionárias, que queriam manter o que era velho e desgastado, repousava sobre a submissão das massas não iluminadas, dos camponeses e da pequena burguesia; e essa submissão estava ancorada na religião. Como a religião era o fundamento e a Igreja aliada do poder tradicional, a burguesia foi obrigada a conduzir a luta espiritual contra a religião e a Igreja. A burguesia teve de afastar a massa de seus líderes espirituais, e convertê-la em seu próprio séquito. Isso foi feito disseminando o Iluminismo e a educação entre a massa e preenchendo-a com novas ideias. Inúmeras são as obras literárias de um molde científico popular que surgiram em torno de meados do século XIX, com a finalidade de “esclarecer o povo”, isto é, ganhar as massas para a burguesia, inoculando-lhes as políticas e visões religiosas da burguesia e, assim, minando a fundação dos antigos elementos governantes. E onde a luta se tornou dura e furiosa, as visões mais radicais foram difundidas e o materialismo alcançou um significado adicional.

A razão pela qual esta luta não deu em nada, sendo interrompida quando a burguesia se tornou mestre do poder do Estado, e muitas vezes mesmo antes dessa época, será vista mais adiante.

II.

Na Rússia, a luta tinha de ser travada contra as mesmas potências contra as quais as revoluções burguesas eram dirigidas na Europa Ocidental: o absolutismo dos príncipes que, através de um horrível regime policial, reprimia todas as manifestações de um desenvolvimento libertário; e contra a grande propriedade fundiária que escravizava os camponeses. A luta tinha de ser travada no meio de uma população que, em aspectos intelectuais, se assemelhava às massas camponesas da Europa medieval, muito antes da revolução burguesa. Os mujiques russos eram, de fato, muito mais ignorantes e atrasados do que essas últimas. Na Rússia, a Igreja também era um pilar fundamental do poder dos príncipes, e um órgão descaradamente subordinado ao czarismo. Lá também a religião, em harmonia com a economia primitivamente bárbara, era uma crença bárbara e cega no poder milagroso dos ossos dos Santos e das velas, e as almas simples eram encantadas e intoxicadas por luzes suntuosas e vestes brilhantes de ouro.

O meio através do qual o Partido Bolchevique conseguiu conquistar o poder político e demolir o czarismo e a burguesia foi o seguinte: a defesa dos interesses econômicos dos camponeses, dos seus esforços para obter a posse da terra, contra os proprietários fundiários, definindo-a como o objetivo da revolução e, deste modo, ganhando os camponeses para o seu programa. No entanto, os bolcheviques tiveram de assegurar em seguida que os camponeses não deveriam, após terem atingido o seu objetivo, voltar-se contra o Partido, assumindo para si mesmos uma política burguesa e, para isso, recorrendo ao antigo poder espiritual, a Igreja, como um ponto de convergência. Por essa razão, o poder reacionário que até então havia dominado os camponeses teve de ser destruído, para que os camponeses se tornassem apoiadores do bolchevismo tanto espiritual como materialmente. Isso só era possível através da luta contra a Igreja de um modo radical, através de uma intensa propaganda contra a religião em geral.

Essa luta, travada diretamente por meio da “Liga dos Ateus”, mas com o apoio do Estado, quase não se distinguia, em caráter e conteúdo, daquela travada anteriormente na Europa Ocidental pela burguesia materialista e pelos livre-pensadores. Não havia nenhuma relação com o marxismo. As polêmicas filosóficas de Lenin — datadas de antes da Revolução (na edição completa de suas obras, reunidas sob o título “Materialismo e Empiriocriticismo”) — estão realmente no nível do materialismo burguês; o que, evidentemente, é bem natural dado que sua luta, na Rússia, era dirigida contra o mesmo tipo de adversários. A propaganda na Rússia distinguia-se da feita na Europa Ocidental apenas na circunstância de ter sido conduzida com argumentos ainda mais primitivos e instrumentos mais grosseiros, já que era dirigida contra uma superstição ainda mais bárbara. O procedimento já foi descrito anteriormente: a compreensão dos argumentos baseados na ciência natural por parte do mujique é bastante limitada; mas ele vê e ouve esses ímpios direcionarem os ataques mais ferozes contra Deus, proferirem as blasfêmias mais terríveis, e nenhum raio vindo do céu atinge os malfeitores. Isto prova que Deus não existe, ou pelo menos não se importa com o que as pessoas fazem aqui embaixo. E, dessa maneira, ele tira suas conclusões: deixa o sacerdote passar fome, converte a cruz em lenha e a igreja em um estábulo, pendura fotos de Marx e Lenin em seu quarto e, talvez, acenda velas para eles. A geração mais jovem, no entanto, participa dos grupos de juventude que estudam a economia nacional e a ciência natural, e assume o materialismo como uma doutrina reconhecida e evidente. Na Rússia, cresce uma nova geração, e cresce por um número suficiente de anos para formar uma nova camada de adultos para quem a religião é apenas um fenômeno histórico, uma superstição dos idosos que pertencem ao passado. A Igreja Russa afundou junto do czarismo.

Isto não quer dizer que na Rússia a religião em geral desapareceu ou está fadada a desaparecer. Em primeiro lugar, porque temos de fato a ocorrência, em medida limitada, do que foi exposto acima: onde os camponeses entram em conflito com o governo, sua revolta assume a forma de uma resistência religiosa. Quando a sua fidelidade ao velho modo de economia dos pequenos camponeses entra em conflito com a introdução semi-violenta da agricultura moderna e da operação em grande escala nos kolkhozes, os camponeses buscam força unindo-se à Igreja, à velha religião, símbolo do que é velho e do que, da mesma forma, está sendo suprimido pelo Estado. A luta econômica é travada na forma ideal de um conflito religioso; e a imprensa da Europa Ocidental imprime histórias sobre terríveis perseguições religiosas na Rússia, sem suspeitar que essas chamadas perseguições significam principalmente um conflito econômico-político acerca dos rumos da agricultura russa. Como foco de toda a reação no campo econômico, a religião continua existindo.

Além disso, como é bem sabido, no Volga [1] as aldeias camponesas dos alemães mantêm a sua fé evangélica, permanecendo intocadas pela propaganda ateísta. A religião é aqui uma convicção pessoal muito mais profundamente enraizada, trazida com a produção mercantil pequeno-burguesa dos países ocidentais, sendo, portanto, praticamente imune aos argumentos primitivos dos “ateus”. Esses camponeses se envolvem em conflitos com as bases do sistema econômico estatal-socialista. Por isso, é perfeitamente natural que o sistema dominante entre em conflito também com esses camponeses alemães; e, como as ideias sociais opostas se expressam sob a forma de ideias religiosas opostas — o ateísmo, de um lado, e o protestantismo, do outro —, aqui também a luta assume a forma de uma perseguição religiosa.

A religião não é simplesmente uma superstição inventada por sacerdotes e governantes que pode ser combatida pela propaganda ateísta. Também não se trata de um mero excesso de ignorância que pode ser destruído através da doutrinação com a ciência natural. Ela resulta da incapacidade dos seres humanos de controlarem o seu próprio destino. É uma expressão do sentimento de que forças desconhecidas e poderosas, de origem natural ou social, comandam a vida e o destino. Se e sob que forma a religião continuará a existir na Rússia depende, portanto, do desenvolvimento econômico ulterior do país. O ateísmo da jovem Rússia está em harmonia com esse primeiro período de ascensão do capitalismo de Estado: os russos enxergam diante de si um desenvolvimento irrestrito e ilimitado em direção ao bem-estar e à superfluidade; olham os problemas da vida como resolvidos e nenhum poder superior é necessário. Mas a Rússia já está se envolvendo na política mundial, que neste momento está levando o capitalismo em direção à Guerra Mundial, ao declínio, à revolução; os perigos que ameaçam o resto do mundo capitalista não podem ser evitados pela Rússia, ela não é a dona do seu destino. Notícias recentes da imprensa são importantes nesse sentido. Elas afirmam que o governo russo, após os tratados com os governos da Europa ocidental, negociou agora com a Igreja Católica Romana a permissão à propaganda católica. Se ao lado do capitalismo de Estado predominante ainda permanecer ou surgir na Rússia em grande medida a propriedade privada e a produção de mercadorias, o materialismo adquirido se tornaria uma mera forma exterior contra os efeitos espirituais dessa realidade material.

Notas

[1] Em referência ao Rio Volga, o maior rio da Europa, localizado no norte da porção europeia do território da Rússia. Próximo das margens desse rio viviam os alemães do Volga, um grupo étnico alemão [N.T.].

Leia aqui a segunda parte do artigo.

 

As obras reproduzidas no artigo são de Joachim Wtewael (1566-1638)

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