Por Primo Jonas
De cara ao verão, diversas feministas argentinas realizaram uma campanha pública que se resumia ao slogan “Hermana, soltá la panza”. A campanha foi logo encampada por coletivos, organizações feministas e sociais, personalidades/influencers, e obviamente contou com uma cobertura jornalística nos meios de comunicação progressistas, dos peronistas até os liberais (por exemplo, Página12 e Clarín).
Conversando em um grupo de companheiras, pude constatar que por mais massivo que o slogan seja, e por mais nobre que seja a intenção de promover a aceitação corporal em nossa sociedade, a campanha não é consenso entre as mulheres. Talvez o recorte aqui seja ruim, pois se tratava de um grupo de mulheres críticas, com treino em exercitar o pensamento e a reflexão. Justamente por isso me pareceu de especial importância escutar o que diziam. E não surpreende que o problema de fundo não era o conteúdo correto ou incorreto, a melhor linha feminista, etc., ainda que sobre isso houvesse também o que se falar.
A questão era a forma do mandato. Não se deve confundir com o mandato político, em termos de cargos burocráticos eleitos por um tempo dado ou então uma ordem deliberada em assembleia que será delegada a uma pessoa em particular. Aqui mandato tem o sentido de “mandamento”, “ordem”. “Amiga, solta a barriga”, por mais coloquial que soe, e adocicado pela enunciação de alguém que se coloca imediatamente íntima e familiar (hermana, amiga), estamos no plano do mandamento.
Ninguém duvida das dificuldades em se combater as pressões sociais que ainda hoje se fazem sentir, e o corpo feminino é objeto de constantes intervenções urbanas, desde os outdoors que celebram tamanhos e medidas específicos, até os gritos hostis de desconhecidos motivados por uma axila não depilada, um cabelo curto demais, bigodes muito visíveis, etc. Mas esse tipo de campanha baseado em slogans curtos e imperativos necessariamente nos remete ao clássico “Just do it”, da famosa marca de tênis (e muitas outras coisas mais) Nike.
A forma imperativa parece ser uma marca da comunicação desenvolvida e praticada no ambiente das redes sociais, onde a promoção de pautas políticas compartilha espaço, forma, público e finalmente termina por se confundir com as pautas do marketing em geral. E é no mínimo chamativo que o recurso mais utilizado, e portanto o mais efetivo — em seus termos —, seja a ordem direta feita a esta multidão de indivíduos fragmentados e recebendo esse conteúdo de forma isolada. Podemos também fazer a relação com diversos “manuais” da “militância” progressista, nos quais não se ensina um corpo teórico com o qual trabalhar em diferentes conjunturas. “Faça compostagem”, “Use tal aplicativo”, “Respeita as minas”, “Pense na interseccionalidade”, “Não coma animais”, “Compre comida orgânica”, “Não use esta fantasia”, “Não use esta palavra”, etc.
As companheiras relatavam a seguinte situação: mas e se eu não quiser mostrar minha barriga (porque não gosto de mostrar meu corpo em geral, porque não gosto da minha barriga, porque não quero me submeter ao julgamento e aos olhares que virão, etc)… então o quê? não sou feminista? Sou insensível à luta das mulheres? O mecanismo de culpa é de fato o mesmo do slogan da Nike. “Simplesmente faça-o”: fazê-lo talvez não mude muito tua vida, mas não fazê-lo te torna um inútil. A replicação deste tipo de slogan tem esse efeito de não permitir uma saída ou uma alternativa, mesmo porque uma composição justamente equilibrada não teria o mesmo impacto: “As mulheres não deveriam se envergonhar de seus corpos, sejam como for”.
É muito intrigante observar como diversas pautas progressistas, muitas das quais abrem margens e caminhos para uma melhor integração e unificação da classe trabalhadora, são veiculadas por meio de formas que lhes transformam o conteúdo. Pensamos que se está falando apenas sobre esta ou aquela minoria, pensamos que se está falando sobre o respeito devido ou a igualdade desejada, quando o que está operando é a introjeção da culpa e uma horrível familiaridade com a emissão de mandatos, a redução da política aos mandatos sociais. Efeito residual de uma infraestrutura comunicacional hierarquizada e empresarial, ou fenômeno a ser combatido em seus próprios termos, por meio da comunicação social crítica?
As fotos que ilustram este artigo são dos fotógrafos Mert Alas e Marcus Piggott.
A leitura deste texto me fez lembrar de várias conversas que tive com uma grande amiga, que é negra, que me contava que praticamente todas as mesmas mulheres negras feministas que ela conhecia, e que discursavam sobre empoderamento negro e sobre “meu corpo, minhas regras”, torciam o nariz quando a encontravam com o cabelo alisado, sendo que ela normalmente está com o cabelo crespo ou com a cabeça rapada. No fundo parece que a coisa estava mais para: teu corpo, minhas regras.
Gostei muito, Primo Jonas! Me parece fundamental, central mesmo, o combate nesse campo “das formas”, que é também um campo de práticas e de relações. Faz toda a diferença em relação àquilo que buscamos em termos de organização social, pode impedir ou constranger que continuemos a alimentar setores e movimentos que incorporam pautas e significantes dos trabalhadores, das nossas lutas, e depois as voltam contra nós.
Tem um texto meu aqui no Passa Palavra em que eu chamo essa postura de “pedagogismo” e acho que eu chego em um lugar parecido ao que você chegou (o mandato progressista). O combate das vanguardas artísticas e políticas dos primeiros anos da URSS teria se dado em meio à transformação da experiências de reconstrução social em uma grande sala de aula do Partido, mas:
“o pedagogismo do momento é bem outro, e surpreendentemente arrebata vetores ideológicos antagônicos, do Escola Sem Partido às frações excludentes e identitaristas do feminismo e do movimento negro. Não se trata de uma reação a palavras que não trabalham e que desviam do foco posto no plano quinquenal, mas de uma bowdlerização[14] que se presta a censurar formas, termos e expressões que em tese seriam puramente ideológicos (e que trabalhariam para além do que deveriam trabalhar…), que seriam desagradáveis e ofensivos à “família” (como heteronormatividade) ou aos segmentos oprimidos (como humor negro). Trata-se de um pedagogismo lobista.” (https://passapalavra.info/2017/07/113390/)
Excelente questão levantada. No aguardo de posições que avancem este debate. A forma e o conteúdo….