Por José Catarino Soares

5. Censura prévia e “superioridade moral do Ocidente”

A pretexto de combater a propaganda e a desinformação da Rússia, o Conselho Europeu (o órgão máximo da União Europeia, constituído pelos chefes de Estado ou de Governo dos 27 Estados‑Membros da UE, mais o presidente do Conselho Europeu, mais a presidente da Comissão Europeia) decidiu racionar o que os cidadãos dos países da UE podem ouvir e ver nas estações de rádio e radiotelevisão sobre a Rússia.

Como? Proibindo os operadores de telecomunicações europeus de difundirem ou permitirem, facilitarem ou de outro modo contribuirem para a radiodifusão de quaisquer conteúdos da rede de televisão Russia Today (RT) e da agência de notícias e estação de rádio Sputnik, «nomeadamente através da sua transmissão ou distribuição por quaisquer meios como cabo, satélite, IP-TV, fornecedores de serviços Internet, plataformas ou aplicações de partilha de vídeos na Internet, quer novos, quer pré-instalados». Também os canais do YouTube destes meios foram bloqueados.

Figura Ilustrativa Russian Today (RT). Fonte: Conselho Europeu.

E não foi só o Conselho Europeu a fazê-lo. Empresas de radiodifusão de mensagens instantâneas e conteúdos multimédia como a Facebook, Instagram, TikTok e YouTube apressaram-se a bloquear todo e qualquer conteúdo oriundo da Sputnik e da RT para os seus utentes (como se diz em Portugal) ou usuários (como se diz no Brasil) que residem no espaço da UE, enquanto o Reddit bloqueou as hiperligações aos sítios WWW da Sputnik e da RT em toda a UE. Por sua vez, a Microsoft e a Apple apoiaram o Conselho Europeu de uma outra maneira: removendo as aplicações Sputnik e RT da Microsoft Store e da App Store, respectivamente. Em 11 de Março, o YouTube bloqueou a Sputnik e a RT em todo o mundo.

Mas não é tudo. O conselho de administração da EGTA ⎼ a associação europeia das firmas que vendem publicidade nos canais de televisão e rádio (uma associação da qual faz parte um grupo empresarial português dono de uma estação de televisão: a SIC-Impresa) ⎼ decidiu suspender imediatamente todos os membros russos da associação, entre eles os seguintes: EMG (Europa Media Group), Everest Sales, Gazprom-Media, Media-1, NRA (National Advertising Alliance) e Russian Media Group.

Como forte sinal da nossa chefia [leadership, no original] e contributo para o esforço internacional em isolar a Rússia da comunidade internacional, suspendemos todos os serviços de todos os membros russos. A suspensão permanecerá em vigor até nova decisão da próxima Assembleia Geral da associação [comunicado da EGTA] [11].

Estas são decisões verdadeiramente espantosas. A UE arroga-se o direito de decidir o que é informação e o que é desinformação; o que é um órgão de informação e o que é um órgão de propaganda. Além disso e pior do que isso, arroga-se o direito de decidir a que tipo de informação e desinformação e que tipo de propaganda é que os cidadãos dos países que integram a UE podem ter acesso. E as firmas proprietárias do Facebook, Instagram, TikTok YouTube, Reddit, a Microsoft, a Apple Inc, assim como a EGTA, seguem-lhes o exemplo. Desse modo, admitem tacitamente que os serviços de difusão instantânea de mensagens e conteúdos multimédia e a publicidade paga nas estações de rádio e radiotelevisão, propagandeadas umas e outra como domínios por excelência de “criatividade”, “livre iniciativa”, “mercado livre” e “liberalismo”, são, afinal, departamentos anexos do poder de Estado.

No seu afã inquisitorial alegadamente anti-Putin, o Conselho Europeu “esqueceu-se” que as suas medidas de censura prévia são medidas próprias de regimes políticos como…o de Putin! [12] Houve quem se alarmasse ao compreender imediatamente que a UE se comprazia a dar um tiro no pé sem sequer pestanejar, sinal de que tem pés de barro, não de carne e osso.

É o caso do jornalista Joaquim Vieira, fundador e presidente do “Observatório da Imprensa”, em Portugal. «Não é o bom caminho, e acho difícil conseguir-se defender esta decisão. Para todos os efeitos é censura. Eu não estou de acordo. O que nos distingue das ditaduras é a possibilidade de livre expressão. Às tantas vão dizer que somos iguais ao regime de Putin», lamentou Vieira. Joaquim Vieira alertou também para os danos reputacionais inerentes a esta decisão da UE, achando que «seria melhor que não tivesse existido, porque isso mostrava a superioridade moral que nós, no Ocidente, temos sobre um regime como o de Putin» [13]. O silenciamento dos meios de comunicação russos, concluiu, vai «contra o código genético de uma sociedade aberta» [14].

Houve, no entanto, quem criticasse a decisão de um modo mais assertivo, como foi o caso da Federação Europeia de Jornalistas (EFJ, na sigla em Inglês), que se opôs a esta forma descarada de censura prévia.

Ricardo Gutiérrez, secretário-geral da EFJ, recordou que «a regulação dos meios de comunicação não entra na competência da UE». «Acreditamos que a UE não tem qualquer direito de dar ou tirar licenças de emissão. Essa é uma competência exclusiva dos Estados-membros», continuou, em comunicado, acusando possíveis efeitos secundários desta medida: «Este acto de censura pode ter um efeito totalmente contraproducente nos cidadãos que seguem os meios agora banidos.» Poderá, por exemplo, acrescento eu, levá-los a concluir que a UE tem medo que os meios de comunicação social que ela decidiu banir possam trazer ao conhecimento do público notícias que ela gostaria de esconder…Ao contrário da decisão tomada pelos governantes europeus, o secretário-geral da EFJ defende que teria sido uma melhor medida contra-atacar «a desinformação de meios propagandistas – ou alegadamente propagandistas – ao expor os seus erros factuais ou mau jornalismo» [15].

Isso é óbvio, e era o que deveria acontecer, se a intenção do Conselho Europeu e da Comissão Europeia (a instância da UE que sugere, prepara e executa as medidas do Conselho Europeu) fôsse a de combater a desinformação, venha ela de onde vier. Mas é evidente que essa é a última das suas preocupações. Acresce que essa medida de censura prévia não tem qualquer suporte legal na constituição da maioria dos países pertencentes à UE. Não o tem, seguramente, no caso de Portugal.

6. Veredicto I

A UE não tem qualquer direito de dar ou tirar licenças de emissão. Essa é uma competência exclusiva dos países membros da UE. A proibição da RT e da Sputnik é uma medida não só ilegal, mas completamente reaccionária, digna de fascistas.

― Revogação imediata das medidas de censura prévia do Conselho Europeu!

― Restabelecimento imediato da liberdade de informação e de radiodifusão para a Russia Today e a Sputnik!

7. O que são sanções? Para que servem? A quem servem?

Convém começar por relembrar, uma vez mais, que vivemos num mundo em que os Estados mais poderosos ⎼ EUA, Rússia, RU, França, China, etc. ⎼ não têm qualquer problema em fazer prevalecer os seus interesses estratégicos (os seus interesses de longo prazo) por todos os meios ao seu alcance, incluindo a ameaça do uso e o uso efectivo da força armada, o expoente máximo da violência letal e destrutiva.

Não vale a pena dar exemplos, eles são legião. A guerra na Ucrânia é apenas o último da lista. É também por isso, por exemplo, que os assessores dos presidentes americanos, e eles próprios, por vezes, gostam muito de empregar a frase consagrada: «o Presidente mantém todas as opções em aberto», «Todas as opções estão em cima da mesa (incluindo a opção militar)», «Não podemos descartar nenhuma opção (incluindo a opção nuclear)» e as suas numerosas variações.

Mas convém também relembrar algo que raramente é referido, mas que não é menos verdadeiro. No patamar imediatamente anterior ao uso da força armada em grande escala estão as chamadas sanções económicas.

Foi o presidente americano Woodrow Wilson dos EUA, durante as negociações do Tratado de Versalhes em 1919, quem primeiro anunciou, com a sua proverbial santimónia, que este tipo de acção poderia ser um substituto para a guerra.

Quem escolher esta medida económica, pacífica, calma e fatal, não terá de recorrer à força. Não é uma medida tão terrível. Não sacrifica uma única vida fora do país exposto ao boicote, mas impõe a esse país uma pressão a que, na minha opinião, nenhuma nação moderna pode resistir.

Na verdade, as sanções económicas agridem, ferem, matam e destroem, tal como as balas, as granadas, os foguetes, as bombas e os mísseis dos exércitos em guerra. Só que não o fazem num ápice, com grande estardalhaço, com muito derramamento de sangue, com milhares de edifícios destruídos, no meio de grandes gritos de aflição e terror como faz a sua prima, a guerra. São uma forma de combate silencioso, limpo, sem pressas, mas muito eficaz em alcançar os seus objectivos — que não são os que são oficialmente declarados.

As sanções económicas afectam actualmente mais de 30 países [16]. O mais sancionado de todos, actualmente, é a Rússia, com 7.611 novas sanções, como vimos, a partir do dia 22 de Fevereiro, que se vieram juntar às 2.754 de que era já alvo antes dessa data. Seguem-se o Irão (3.616 sanções), a Síria (2.608), a Coreia do Norte (2.077), a Venezuela (651), Myanmar [Birmânia] (510), Cuba (208) [17].

As sanções (especialmente as sanções económicas) são quase sempre apresentadas como uma nobre iniciativa de defesa dos direitos humanos de populações e povos espezinhados e oprimidos e, amiúde também, como um instrumento eficaz para forçar uma mudança de regime favorável ao florescimento dos direitos humanos [18]. Mas nada poderia andar mais longe da verdade em ambos os aspectos [19].

Consideremos o caso de Cuba, que basta para o demonstrar. Cuba sofre sanções dos EUA há 60 anos! É o mais longo regime de sanções de que há registo desde o fim da 2.ª guerra mundial. Já em 19 de Outubro de 1960, ainda não eram volvidos dois anos depois da revolução cubana ter conduzido à deposição do regime de Fulgêncio Baptista, os EUA fizeram um embargo às exportações para Cuba, excepto no que diz respeito a alimentos e medicamentos. E porquê? Para deixarem bem claro que se tratava de uma retaliação pelo governo de Cuba ter nacionalizado sem compensação monetária as refinarias de petróleo estadunidenses que operavam em Cuba. Em 7 de Fevereiro de 1962, o embargo foi alargado para incluir quase todas as exportações. A Assembleia Geral das Nações Unidas tem votado todos os anos, desde 1992, uma resolução exigindo o fim do embargo económico dos EUA a Cuba, sendo os EUA e Israel os único Estados a votar reiteradamente contra estas resoluções.

O povo cubano viu a sua vida melhorar alguma coisa por efeito das sanções económicas dos EUA? Não, nada. Podemos é dizer que piorou muito por via da escassez e penúria de um larguíssimo leque de bens e serviços que lhes foram artificialmente impostas por via dessas sanções económicas. O regime cubano mudou por efeito dessas sanções ? Não, é exactamente o mesmo que era há 62 anos. Pelo contrário, é o regime cubano que culpa reiteradamente, e com êxito assinalável, as sanções económicas impostas pelos EUA como a causa principal ou única de todas as dificuldades que o povo cubano enfrenta há décadas.

Mas não é tudo. Convém saber que são os EUA quem mais sanções decreta, logo seguidos pela UE, não é a ONU. A lista de pessoas e entidades visadas pelas sanções dos EUA contém actualmente 1.623 páginas e quase 37.000 entradas ![20].

Ora, é bem sabido que as sanções económicas impostas pelos EUA não são impostas para castigar Estados e governos malfeitores que atentam contra os direitos humanos, porque, se assim fôsse, os EUA seriam o país mais sancionado do planeta por todas as malfeitorias e atrocidades que têm praticado, desde as bombas atómicas lançadas sobre a população civil das cidades de Hiroshima e Nagasaqui (1945), prosseguindo pela série de guerras, “intervenções militares especiais” e golpes de Estado (eufemisticamente denominados “operações de mudança de regime”) que fizeram ulteriormente, até aos nossos dias.

Eis uma lista, que está muito longe de ser exaustiva: guerra da Coreia (1950-1953), golpe de Estado contra o governo de Mohammad Mosaddegh no Irão (1953), golpe de Estado contra o governo do presidente Jacobo Árbenz na Guatemala (1954), operação Mongoose para derrubar o governo de Fidel Castro em Cuba (década de 1960), golpe de Estado contra o governo do presidente Rafael Trujillo na República Dominicana (1961), intervenção militar no Laos (1962-1975), operação “Brother Sam” no Brasil (1964), guerra do Vietnam (1964-1975), invasão da República Dominicana (1965), intervenção militar no Camboja (1970), golpe de Estado contra o governo do presidente Salvador Allende no Chile (1973), invasão de Granada (1983), operação militar no Panamá (1989-90), operação militar “Força Deliberada” na Bósnia-e-Herzegovina (1996), operação militar “Força Aliada” na Jugoslávia (1999), guerra do Afeganistão (2001-2021), guerra do Iraque (2003-2011), golpe de Estado contra o governo do presidente Viktor Yanukovych na Ucrânia (2014).

Mas não são só os EUA que nunca são alvo de sanções económicas façam as malfeitorias e atrocidades que fizerem, pela boa e simples razão de que nenhum outro Estado se atreve a pagar-lhes na mesma moeda. Outros Estados, também poderosos (embora muito menos) têm também esse privilégio por serem aliados dos EUA. É o caso, por exemplo, de Israel que ocupa partes do território da Palestina (incluindo Jerusálem leste), da Síria e do Líbano há mais de 60 anos e da Turquia, que ocupa partes do território de três dos seus vizinhos: Iraque, Síria e Chipre. Neste último país, a Turquia ocupa nada menos do que 40% do seu território. Chipre (um Estado membro da UE, mas não da OTAN) é mesmo, graças a esta ocupação da Turquia (um Estado membro da OTAN, mas não da UE) o único país da UE cuja capital ainda está dividida por um muro.

Há que reconhecer que a ideia de confiar a um órgão especial da ONU ⎼ o Conselho de Segurança, onde têm direito de veto os Estados mais poderosos do planeta ⎼ o poder de adoptar sanções como um meio eficaz de pôr termo a perturbações da paz e da segurança colectiva sem recorrer à ameaça do uso ou o uso efectivo da força das armas é uma solução extremamente frágil e insatisfatória. Isto, porque só as relações de forças entre eles dita, a cada momento, o resultado das votações.

Acresce que o artigo 41.º da Carta das Nações Unidas estabelece uma lista não exaustiva de possíveis restrições com o carácter punitivo de sanções: «interrupção total ou parcial das relações económicas e das relações ferroviárias, marítimas, aéreas, postais, telegráficas, radioeléctricas e outros meios de comunicação, bem como a ruptura das relações diplomáticas». O leque de sanções alargou-se ao longo do tempo: sanções económicas (comerciais ou financeiras), militares (embargo de armas), diplomáticas, culturais e desportivas. Esse alargamento representa a tentativa, frustrada, da maioria dos países com assento na ONU de mitigarem uma prática que é, efectivamente, uma prerrogativa quase exclusiva das grandes potências, com os EUA à cabeça.

Um exemplo recente é o das sanções económicas decretadas pelo governo de Donald Trump contra a Venezuela, em 2017 e 2019. Num estudo feito sobre o resultado dessas sanções pode ler-se:

As sanções reduziram a ingestão calórica das pessoas, aumentaram as doenças e a mortalidade (tanto para adultos quanto para crianças) e deslocaram milhões de venezuelanos, que fugiram do país como resultado do agravamento da depressão econômica e da hiperinflação. As sanções exacerbaram a crise econômica na Venezuela e tornaram quase impossível estabilizar a economia, contribuindo ainda mais para as mortes adicionais. Todos esses impactos prejudicaram desproporcionalmente os venezuelanos mais pobres e vulneráveis.

Ainda mais severas e destrutivas do que as amplas sanções econômicas de agosto de 2017 foram as sanções impostas por ordem executiva em 28 de janeiro de 2019 e pelas subseqüentes ordens executivas neste ano, e o reconhecimento de um governo paralelo, que, como será mostrado abaixo, criou um novo conjunto de sanções financeiras e comerciais que são ainda mais restritivas do que as próprias ordens executivas.

Concluímos que as sanções infligiram, e infligem cada vez mais, danos muito sérios à vida e à saúde humanas, incluindo uma estimativa de mais de 40.000 mortes entre 2017 e 2018; e que essas sanções se encaixariam na definição de punição colectiva da população civil, conforme está descrita nas convenções internacionais de Genebra e Haia, das quais os EUA são signatários. Elas também são ilegais à luz das leis e tratados internacionais assinados pelos EUA, e parecem violar a legislação dos EUA [21].

O panorama não é muito melhor no caso da ONU. É impossível meter de novo o génio dentro da garrafa, porque a garrafa foi feita pelo génio. Dado o papel desempenhado pelo Conselho de Segurança na sua arquitectura ⎼ em especial pelos seus cinco membros permanentes [EUA, Rússia, Reino Unido, França, China] que dispõem de direito de veto ⎼ a chancela da ONU não é de modo nenhum uma razão suficiente para conferir às sanções económicas um carácter aceitável.

Muitas sanções perfeitamente “legais”, porquanto impostas pelo Conselho de Segurança da ONU ⎼ por exemplo, contra o Iraque entre 1991 e 2003 ⎼ podem causar a morte, inclusivamente a morte em massa de civis inocentes, como foi documentado pela UNICEF e outras organizações internacionais [22]. Estima-se que 500.000 crianças, pelo menos, morreram de malnutrição e doença devido às sanções económicas (criadoras de penúrias alimentares e de medicamentos) decretadas pela ONU contra o Iraque nos anos 1991-2003 [23].

8. Economia política das sanções da EU

Os debates em curso na União Europeia sobre as sanções económicas e outras represálias a aplicar à Rússia, deram origem a alguns exercícios de refinada hipocrisia discursiva. A hipocrisia é obrigatória, visto que se destina a camuflar a contradição entre a necessidade de fazer a vontade aos EUA (que querem enfraquecer a Rússia por todos os meios ao seu alcance, incluindo a Ucrânia e a UE) e os interesses geopolíticos e geoeconómicos de um grande número de Estados membros da UE.

A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, é exímia nessa arte de considerar hoje como sendo maléfico para a UE, o que ainda ontem afirmava ser um bem inestimável ou vice-versa, e de fazer ambas coisas com a maior das naturalidades. Esta senhora publicou no Twitter, em 19 de Janeiro de 2020, a foto que aqui se reproduz, acompanhada da seguinte legenda:

Foi bom encontrar-me com o presidente russo Vladimir Putin, à margem da # Conferência de Berlim. Conversámos sobre o acordo trilateral Ucrânia-UE-Rússia sobre o gás que será transportado através da Ucrânia.

Figura 10

Em 4 de Fevereiro de 2022, Leyden afirmou não descartar a possibilidade de fechar o gasoduto Nord Stream 2, que liga a Rússia à Alemanha através do mar Báltico, como uma das sanções económicas a aplicar contra a Rússia, caso esta invadisse a Ucrânia. Informou, na mesma ocasião, estar a trabalhar com os Estados-membros da UE na construção de reservas europeias comuns de gás. E acrescentou:

Queremos construir o mundo de amanhã, como democracias, com parceiros que pensam da mesma maneira, parceiros com os mesmos interesses.

Entre os parceiros energéticos que poderiam substituir a Rússia e que pensam da mesma maneira que a UE, parceiros com os mesmos interesses, a presidente da Comissão Europeia citou uma monarquia autocrática (Qatar), uma oligarquia electiva liberticida (Azerbaijão) e uma oligarquia militar liberticida (Egipto)…[24]. Estamos esclarecidos.

A motivação puramente geopolítica das sanções económicas ou restrições económicas (dois nomes diferentes para a mesma coisa) decretadas pelo Conselho Europeu contra a Rússia está igualmente patente no modo como este órgão máximo decisório da UE evitou cuidadosamente, até ao momento, beliscar as importações de gás natural, e só o fez relativamente ao carvão e ao petróleo da Rússia com muitas cautelas e rapapés para americano ver. É que estes são os três combustíveis fósseis em relação aos quais os países da UE (com especial destaque para a Alemanha, a Áustria, a Itália, a Eslováquia e a Hungria) são energeticamente muito dependentes da Rússia.

É assim que o Conselho Europeu decretou, como vimos, em 7 de Abril de 2022, o embargo das importações de carvão da Rússia, da qual a UE é muito dependente — importa 45% do seu carvão da Rússia, por um valor de 4 mil milhões de euros por ano. Mas o embargo só irá entrar em vigor…no início de Agosto de 2022, 120 dias após a publicação do novo pacote de sanções no diário oficial da UE e será aplicado faseadamente até ao fim do ano de 2022.

Da mesma forma, o embargo total das importações de petróleo bruto russo, da qual a UE é muito dependente (importa 25% do petróleo da Rússia) será feito faseadamente até ao fim do ano e o embargo total de produtos refinados de petróleo russo será feito faseadamente nos próximos seis meses. Isto, se o Conselho Europeu, que reunirá em princípio em 30-31 de Maio, vier a aprovar estas medidas que lhe foram propostas pela Comissão Europeia em 4 de Maio, porque a Hungria, a Eslováquia, a Áustria, a Chéquia e a Bulgária opõem-se a esse embargo que os prejudica gravemente. Por exemplo, 100% do abastecimento petrolífero da Hungria é garantido pela Rússia através do oleoduto de Druzhba. Acresce que, sem litoral, este país não tem condições para negociar com fornecedores alternativos, que não teriam como fazer chegar o petróleo às refinarias húngaras (as quais, para complicar o problema, só têm tecnologia para processar a produção russa).

Note-se ainda o seguinte: mesmo que o embargo sobre o petróleo russo venha a ser decretado com a anuência negociada da Hungria e dos demais países recalcitrantes, daqui a seis meses, o prazo dado para a aplicação faseada do embargo, é bem possível que a guerra na Ucrânia já tenha terminado com um acordo negociado entre a Rússia e a Ucrânia (com o beneplácito dos EUA) e já seja possível revogar estas sanções…

Quanto ao embargo à importação de gás natural russo, ainda nada foi decidido na UE. O que se compreende. Aqui, as jeremíades sobre Putin e a guerra de agressão russa, já muito abaladas pela necessidade do petróleo russo, cedem completamente o lugar a outro tipo de considerações e de interesses a que Conselho Europeu e a Comissão Europeia não podem deixar de atender. É bem conhecida a grande dependência energética da UE face à Rússia, que foi responsável por 43,9% em 2020 e 46,8% no 1.º semestre de 2021 das importações de gás europeias.

A azul estão as percentagens que cada país europeu importa de gás russo. A preto estão as percentagens de gás de outros países que cada país europeu importa. Os números são de 2020.

A Comissão Europeia adoptou um plano para tornar a Europa independente dos combustíveis fósseis russos «muito antes de 2030». O gás natural assume particular relevância nesse plano por ser uma fonte de energia fundamental no chamado processo de “transição energética” em curso. O objetivo é «reduzir a procura de gás russo na UE em ⅔ antes do final do ano».

Alguns especialistas estão cépticos. Consideram que esse plano será de difícil e demorada execução. Por exemplo, a construção de um novo gasoduto transPirinéus ⎼ o Midcat ⎼ vai demorar pelo menos três anos [25]. De acordo com o economista Hans-Werner Sinn, só a longo prazo, digamos, entre 3 e 5 anos, os terminais alemães de GNL [a construir] poderão substituir as entregas russas por gás proveniente de outras partes do mundo. Só o GNL (gás natural liquefeito) de outras proveniências conseguirá garantir uma rápida substituição do gás russo e assegurar um aprovisionamento adequado de gás para o próximo inverno. Ora, isso vai ter um custo alto, sobretudo em 2022.

A Alemanha, a primeira potência económica europeia, ilustra melhor do que qualquer outro país da UE a agudez do problema. A substituição do gás russo, e não tanto do seu petróleo e do seu carvão russos, é claramente o maior desafio que a Alemanha enfrenta.

Antes da guerra na Ucrânia, a Rússia representava 55 por cento de todas as importações de gás alemão, de acordo com os números do governo alemão. Mais de um terço desse gás é consumido pelo sector transformador. Na indústria química, o gás é necessário não só para gerar electricidade e calor, mas também para fabricar produtos químicos derivados de hidrocarbonetos [26].

No entanto, é mais fácil e rápido encontrar fontes alternativas de petróleo do que de gás natural, do qual a Alemanha está muito dependente. O Bundesbank [banco central da Alemanha] afirmou que um embargo às importações do gás russo custaria à Alemanha 165 mil milhões de euros [= 165 bilhões no Brasil] em produção perdida e reduziria o produto interno bruto em 5% em 2022, provocando um aumento nos preços da energia e uma das recessões mais profundas das últimas décadas [27]. E mesmo um economista tão institucional e tão pouco alarmista como Hans-Werner Sinn não hesitou em advertir:

Se a Alemanha parasse subitamente as importações de gás russo, os sistemas de aquecimento residencial a gás ⎼ dos quais depende metade da população alemã, aproximadamente 40 milhões de pessoas ⎼ e os processos industriais que dependem fortemente das importações de gás avariar-se-iam antes de a energia de substituição estar disponível. Seria pouco provável que o governo sobrevivesse ao caos económico resultante, ao tumulto público e à revolta se o gás não estivesse disponível ou se os custos de aquecimento aumentassem drasticamente. Na verdade, a escala provável de perturbações internas poria em causa a coesão da resposta ocidental à guerra da Ucrânia.

Só a longo prazo, digamos entre 3 e 5 anos, os terminais alemães de GNL [gás natural liquefeito] poderão substituir os fornecimentos russos por gás de outras partes do mundo. Mas até lá, a Rússia estará a construir novos gasodutos para a China, Índia, e outros países asiáticos que avidamente comprarão e queimarão o gás que a Alemanha deixou de comprar.

Tanto a curto como a longo prazo, portanto, o Ocidente será incapaz de tornar as coisas difíceis para a Rússia, fechando os gasodutos sem tornar as coisas igualmente difíceis para si próprio [28].

Parece-me, pois, que podemos concluir do que foi exposto que as principais sanções económicas decretadas ou anunciadas pela UE contra a Rússia (o embargo das importações de carvão, petróleo e gás natural) são excelentes notícias para os oligopólios da indústria petrolífera e do gás natural liquefeito dos EUA, assim como para os oligopólios da indústria do carvão dos EUA [29].

Mas são também, pelas mesmas razões, muito más notícias não só para os trabalhadores das indústrias de transformação e para os consumidores de gás residencial na Alemanha e em muitos outros países da UE, mas também para os próprios capitalistas desses sectores que terão de ceder uma parte da mais-valia que extorquiram aos seus concorrentes estadunidenses.

Ironia do destino: graças a Putin, Ursula von der Leyen, Charles Michel e todos os seus colegas do Conselho Europeu, metamorfosearam-se, num abrir e fechar de olhos e sem mesmo se darem conta do que lhes acontecia, em esforçados obreiros do programa de Trump: «Make America Great Again» [Façamos com que a América torne a ser grande outra vez].

Notas e referências

[11] “EGTA suspends relationship with Russian members due to the ongoing conflict in Ukraine”.EGTA, 3 March 2022 (http://www.egta.com/?page=press-release-individual&idRelease=832).

[12] Na tipologia dos regimes políticos que perfilho, o regime de Putin qualifica-se como sendo uma oligarquia electiva iliberal. Para a elucidação deste conceito ver a nota 6, na segunda parte deste ensaio.

[13] Há um grão de verdade na alegação de Joaquim Vieira, cuja origem e dinâmica lhe escapam, porém, completamente. Prende-se com o seguinte. A luta dos trabalhadores assalariados pela sua auto-emancipação económica e política não conseguiu ainda, em parte nenhuma do mundo, obter um êxito completo e duradouro. No entanto, como subproduto e sedimento dessa sua luta, que prossegue quotidianamente sob formas mais abertas ou mais veladas, mais duras ou mais suaves, os trabalhadores conseguiram arrancar às oligarquias dominantes, (i) num certo número de países capitalistas industrialmente mais desenvolvidos da Europa, das Américas, da Ásia e da Oceânia, um conjunto de direitos, liberdades, garantias jurisdicionais e instituições sociais autónomas que tornam menos árdua e sofrida a sua luta por melhores condições de vida, e que tornam também a sua vida quotidiana mais amena e muito menos opressiva do que naqueles países onde essas conquistas (ii) existem de um modo incipiente ou periclitante, ou onde (iii) ainda não foram sequer obtidas, ou onde existiram mas foram destruídas. É essa a diferença principal entre os regimes de oligarquia electiva liberal a que Joaquim Vieira se refere como “Ocidente”, como os que vigoram em países do grupo (i) (como, por exemplo, Suíça, Reino Unido, Suécia, Noruega, Dinamarca, Portugal, Espanha, França, Alemanha, Canadá, EUA, mas também, fora do “Ocidente”, no Uruguai, Chile, Costa Rica, Argentina, Brasil, Nova Zelândia, Austrália, Japão, Coreia do Sul, Taiwan) e os regimes de oligarquia electiva iliberal (como os que vigoram, por exemplo, na Turquia, Ucrânia, Rússia), que se enquadram grosso modo, com mais ou menos qualificações, no grupo (ii). Quanto aos regimes de oligarquia liberticida, citemos, como exemplo, os regimes que vigoram na Coreia do Norte, Arábia Saudita, Egipto, República Centro-Africana, Afeganistão. Myanmar, que se enquadram no grupo (iii). Há ainda uma grande variedade de regimes híbridos, intermédios entre os grupos (i) e (ii). É o caso, por exemplo, dos regimes que vigoram na Bósnia-e-Herzegovina, Geórgia, Hungria, Polónia, Croácia, Roménia, México. E existe também uma grande variedade de regimes híbridos, intermédios entre os grupos (ii) e (iii). É o caso, por exemplo, dos regimes que vigoram em países como China, Vietnam, Irão, Argélia, Cuba, Azerbaijão.

[14] “União Europeia silencia meios de informação russos na Europa, e há quem fale em censura”. Sol, 4 de Março de 2022.

[15] Ibid.

[16] Este número diz respeito, exclusivamente, à União Europeia (cf. EU Sanctions Map. https://www. sanctionsmap.eu/#/main). O número de países sancionados pelos EUA seria actualmente de 20 (cf. United States Sanctions. Wikipedia. https://en.wikipedia.org/wiki/United_States_sanctions). O número de países actualmente sancionados pela ONU é de 14 (cf. Fact Sheets 2022. United Nations Security Council. https://www.un.org/securitycouncil/sites/www.un.org.securitycouncil/files/subsidiary_organs_factsheets.pdf).

[17] Castellum A.I. 2 May 2022

[18] Os objectivos oficialmente proclamados das sanções podem ser distribuídos por 5 tipos: 1) a defesa dos direitos humanos e a promoção de mudanças de regime político que sejam favoráveis ao florescimento dos direitos humanos e à liberalização económica; 2) a gestão de conflitos militares; 3) a não-proliferação de armas de destruição maciça; 4) a dissuasão, 5) a luta contra o terrorismo. (V. Ramona Bloj, “Les sanctions, instrument privilégié de la politique étrangère européenne”. Questions d’Europe, n.º 548, 31 mai 2021).

[19] Robert A. Pape, “ Why Economic Sanctions Do Not Work”. International Security, Volume 22, Issue 2 (Autumn, 1997); Andrew Rettman, “Macron: EU sanctions on Russia do not work”, EUObserver, 26 mai 2021.

[20] Hélène Richard & Anne-Cécile Robert, “O conflito ucraniano entre sanções e guerra”. Le Monde Diplomatique. Edição portuguesa. Março de 2022.

[21] Mark Weisbrot e Jeffrey Sachs, Sanções Econômicas como Punição Coletiva: O Caso da Venezuela. Center for Economic and Policy Research. Washington. Maio de 2019. www.cepr.net

[22] Hans C. vo. Sponeck, A Different Kind of War: The UN Sanctions Regime in Iraq. Berghahn Books, New York & Oxford, September 2006. First published in Germany in 2005 (Hamburger Edition) as Ein anderer Krieg: Das Sanktionsregime der UNO im Irak; “Razing the Truth About Sanctions Against Iraq”. Geneva International Centre for Justice, 7 September 2017. https://www.gicj.org/positions-opinons/gicj-positions-and-opinions/1188-razing-the-truth-about-sanctions-against-iraq

[23] Perante este facto, o Subsecretário-geral da ONU e Coordenador de Operações Humanitárias no Iraque, Denis Halliday, demitiu-se em 1998, para denunciar «a destruição de toda uma sociedade». Quanto a Madeleine Albright, então embaixadora dos EUA na ONU, declarou em 1996, avaliando o mesmo facto, que «o preço valeu a pena».

[24] Ursula von der Leyen : «L’Europe a un très fort levier économique face à la Russie». LesEchos. 4 févr. 2022.

[25] Jorge Costa Oliveira, “A relevância do GNL na diminuição da dependência de gás russo”. Diário de Notícias, 13 Abril 2022.

[26] Olaf Storbeck,“Bundesbank warns Russian gas embargo would cost Germany 5 per cent in lost outpu”. Financial Times, April 22, 2022.

[27] Olaf Storbeck, ibidem.

[28] Hans-Werner Sinn, “Germany’s Energy Fiasco”. Project Syndicate, March 28, 2022.

Salvo as imagens informativas do artigo, as demais são da autoria de Tetiana SHYSHKINA

Leia a primeira, a segunda, a terceira, a quarta e a sexta partes deste ensaio.

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