Por José Catarino Soares

1. Introdução

John Mearsheimer, um dos autores mais argutos e reputados da geopolítica, na sua versão dita “realística” (uma das estrelas polares da chamada Realpolitik, “política realística”), explicou muito claramente no seu livro, The Tragedy of Great Power Politics (2001), como pensam e agem os membros da elite dirigente dos Estados mais poderosos, dos Estados que são grandes potências mundiais [1].

Segundo Mearsheimer, o poder (entenda-se, o poder explícito, especialmente na sua vertente política [2]) assenta sempre, directa ou indiretamente, nos recursos militares dos Estados. Estes, por sua vez, buscam sempre que possível maximizar a sua fatia de poder na distribuição global de poder à custa dos seus rivais, pois essa é a melhor estratégia de sobrevivência. Desse comportamento resulta a competição por segurança militar, o que leva as grandes potências a serem sensíveis ao ganho de poder relativo das suas rivais.

Destarte, ao analisar o comportamento de um Estado (entenda-se: da sua elite dirigente, em particular daqueles, entre os seus membros, que se auto-denominam “estadistas”) em relação aos outros Estados tem de se considerar a seguinte eventualidade muito frequente: (i) se os outros Estados detêm poder militar, mas não se pode saber ao certo como o utilizarão, e (ii) se não houver uma instância à qual se possa recorrer em caso de agressão (uma situação apelidada de “anarquia” por Mearsheimer), o resultado é (iii) o medo e a desconfiança mútua, pois qualquer um deles pode tomar a ofensiva em seu próprio benefício à custa dos outros.

Por conseguinte, as grandes potências vivem sob um medo constante de serem atacadas pelas suas rivais e as pequenas potências vivem sob o medo constante de serem anexadas pelas maiores. Para mitigar ou neutralizar esse medo, os Estados têm de garantir a sua segurança militar com meios próprios. Na terminologia de Mearsheimer essa iniciativa recebe o nome de “auto-ajuda”. A conclusão a que Mearsheimer chega é a seguinte: devido ao medo e à auto-ajuda, agir ofensivamente em relação aos demais Estados e maximizar o poder relativo é a melhor forma de garantir a própria sobrevivência na “anarquia” que rege as relações de poder entre os Estados no espaço mundial. Eis a máxima geopolítica de Mearsheimer:

O melhor caminho para um Estado sobreviver na anarquia é ganhando vantagem sobre outros Estados e ganhando poder à sua custa. A melhor defesa é um bom ataque.

Ou, de uma maneira um pouco mais desenvolvida:

Os Estados operam num mundo de auto-ajuda em que a melhor maneira de sobreviver é ser o mais poderoso possível, mesmo que isso exija a prossecução de políticas impiedosas. Não é uma história bonita, mas não há melhor alternativa, se a sobrevivência for o objectivo primordial de um país [3].

Julgo que este é um excelente resumo do princípio director subjacente à política externa da elite dirigente dos EUA e da Rússia, as duas maiores potências nucleares do mundo.

Em particular, ele fornece-nos uma chave interpretativa sobre a política de expansão continuada da OTAN no Leste da Europa que todos os presidentes americanos (Bill Clinton, George Bush [filho], Barak Obama, Donald Trump, Joe Biden) praticaram no período subsequente à reunificação da Alemanha (Agosto de 1990), à dissolução do Pacto de Varsóvia (Março de 1991) e à dissolução da União Soviética (Dezembro de 1991) até aos nossos dias.

Zbigniew Brzezinski, antigo conselheiro de segurança nacional do Presidente Carter e considerado pelos seus pares geopolitólogos um dos grandes estrategos da supremacia do imperialismo estado-unidense, argumentou que a OTAN «consolida a influência política americana e o poder militar no continente eurasiático» e que «qualquer expansão do âmbito político da Europa [entenda-se, União Europeia, N.E.] é automaticamente uma expansão da influência dos EUA» [4].

Nas primeira e segunda partes deste ensaio tivemos ocasião de observar pormenorizadamente o significado desta afirmação de Brzezinsky. Julgo não ser necessário voltar ao assunto, salvo num ou noutro pormenor pertinente que seja útil acrescentar ou relembrar.

Mas a máxima de Mearsheimer fornece-nos também, como vimos na primeira parte deste ensaio, uma chave interpretativa para a actuação de Ieltsin e Putin em resposta à expansão continuada da OTAN. Mais ainda, fornece-nos, como veremos neste artigo, uma chave interpretativa para a decisão tomada por Putin de mandar as suas tropas invadirem a Ucrânia em 24 de Fevereiro de 2022. Ela ajuda-nos a responder, concretamente, às seguintes perguntas:

— Que significam a invasão da Ucrânia e a guerra em curso na Ucrânia do ponto de vista estratégico e no âmbito da doutrina do seu mentor e mandante, Putin? (Dito de outro modo: qual é o objectivo político de Putin?) Por que razão a invasão da Ucrânia ocorreu agora, em Fevereiro de 2022 (e não muito mais cedo ou muito mais tarde)?

Este artigo visa responder a estas perguntas.

2. Putin

Os factos descritos na primeira parte deste ensaio (cf. A Guerra na Ucrânia. Crónica de uma guerra pré-anunciada) e na sua segunda parte (cf. A Guerra na Ucrânia. OTAN: natureza e historial, antes e depois de 1991) constituem elementos de análise da invasão da Ucrânia que os EUA, a OTAN, a União Europeia, os governos dos países-membros dessas duas organizações internacionais e o sistema mediático dominante de comunicação social (jornais e revistas comerciais de grande circulação, estações privadas e públicas de rádio e de televisão de grande audiência, redes virtuais mundiais de mensagens instantâneas) se esforçam, agora, por fazer desaparecer [5] num buraco da memória orwelliano [6].

Para quê? Para fazerem crer à opinião pública e aos povos dos seus países que Putin é um psicopata irresponsável e imprevisível, que actua impulsivamente e de modo errático, por motivos irracionais e incompreensíveis.

Mas Putin não é louco nem paranóico. Essas caracterizações psiquiátricas só servem para nos distrair e iludir. Do que precisamos é de uma caracterização política.

Putin é um ex-agente do KGB e um ex-director do Serviço Federal de Segurança (um dos serviços secretos da Rússia que sucederam ao KGB da ex-União Soviética); um nacionalista grã-russo; um político conservador, um estadista. É o chefe incontestado da elite dirigente russa que governa o maior país do mundo e a segunda potência nuclear. Doutrinariamente, Putin pertence claramente à corrente geopolítica do “realismo político” [7], condimentado (enfraquecido), no seu caso, por algumas fantasias panrussificadoras. O regime existente na Rússia é uma oligarquia electiva iliberal. Putin é o expoente máximo desse regime e goza, como tal, de prerrogativas semelhantes, em vários aspectos, às de um autocrata. Tendo em conta esse facto, por lado, e dando como ponto assente que não há autocratas eleitos por sufrágio universal, directo e secreto, por outro, qualificá-lo-ei de “autocrata putativo”.

É a partir deste complexo de características políticas que podemos tentar interpretar e entender a sua conduta política, especialmente no plano internacional.

Confinemos a nossa atenção à política externa da Rússia, de que a invasão da Ucrânia e a guerra em curso nesse país é uma continuação por outros meios, por meios da violência armada.

Durante 15 anos Putin expôs muitas vezes o seu pensamento sobre a natureza e o comportamento da OTAN, advertindo repetidamente os EUA e os seus aliados na OTAN (especialmente o Reino Unido, a França e a Alemanha) de que a Rússia tinha “linhas vermelhas” em matéria de segurança militar que não deixaria que fossem ultrapassadas, porque a sua ultrapassagem significaria uma “ameaça existencial” para a Rússia.

As advertências de Putin patenteiam uma assinalável unidade de propósitos estratégicos e coerência de argumentos ao longo dos tempos, como demonstram os exemplos seguintes.

2.1. O contencioso de Putin em relação à OTAN

Como vimos na segunda parte deste ensaio, em 10 de Fevereiro de 2007, na 43.ª Conferência de Política de Segurança realizada em Munique, Putin fez um discurso em que, pela primeira vez, criticou acerbamente o modo como a expansão continuada da OTAN para o Leste da Europa, acompanhada da sua oposição reiterada à adesão da Rússia a essa aliança militar, equivalia a espezinhar as garantias que os países principais da OTAN (com os EUA à cabeça) tinham dado à Rússia aquando da reunificação da Alemanha.

Particularmente visadas pelas críticas de Putin foram medidas como o abandono pelos EUA, em 2002, do Tratado sobre Mísseis Antibalísticos e a implantação de instalações de defesa antimísseis na Bulgária e na Roménia. Recordemo-las:

Vemos o aparecimento na Bulgária e na Roménia de “bases americanas ligeiras avançadas”, cada uma com 5.000 soldados. Acontece que a OTAN aproxima as suas forças avançadas das nossas fronteiras, enquanto nós — que respeitamos estritamente o Tratado — não reagimos a estes movimentos. É óbvio, penso eu, que o alargamento da OTAN não tem nada a ver com a modernização dessa aliança, nem com a segurança na Europa. Pelo contrário, é um factor que representa uma séria provocação e rebaixa o nível de confiança mútua. Temos o direito legítimo de perguntar abertamente contra quem está a ser realizado este alargamento. O que aconteceu às garantias dadas pelos nossos parceiros ocidentais após a dissolução do Pacto de Varsóvia? Onde estão essas garantias? Já foram esquecidas. No entanto, tomarei a liberdade de lembrar aos presentes nesta sala o que foi dito. Gostaria de citar palavras retiradas do discurso do Sr. Werner, então Secretário-Geral da OTAN, proferido em Bruxelas em 17 de Maio de 1990: “O facto de estarmos preparados para não enviar tropas da OTAN para fora do território da RFA dá à União Soviética certas garantias de segurança”. Onde estão essas garantias hoje? [8]

No discurso de Munique (e como que ecoando a máxima de Mearsheimer) Putin declarou também, como vimos na primeira parte deste ensaio, que o resultado da dominação americana num mundo unipolar criado para servir os seus interesses era «ninguém se sentir seguro, porque ninguém pode sentir que a lei internacional é como uma parede sólida que nos protege. E claro que tal política estimula uma corrida aos armamentos».

Um ano mais tarde, em 2008, num discurso no qual delineou a sua visão para a Rússia até 2020, Putin acusou os EUA e a OTAN de ignorarem as preocupações do governo russo em matéria de segurança militar, ao alargarem a aliança militar da OTAN em direcção às suas fronteiras e ao promoverem a instalação de um sistema de defesa antimíssil na Europa Central. Perante uma assembleia de governantes, gestores empresariais e altas patentes militares reunidos no Kremlin, três meses antes do termo do seu primeiro mandato presidencial, Putin afirmou:

Já é evidente que uma nova corrida aos armamentos se está a desenrolar no mundo. A culpa não é nossa, nós não a iniciámos.

Referindo-se aparentemente a planos de fabrico de novos mísseis com capacidade nuclear, Putin disse que «nos próximos anos a Rússia começará a produzir novos tipos de armas que…não são de forma alguma inferiores às que outros Estados têm e que, nalguns casos, lhes são superiores».

E acrescentou:

Com efeito, somos obrigados a retaliar…a Rússia tem e sempre terá uma resposta a estes novos desafios.

Putin disse também que havia uma «luta feroz» pelos recursos naturais em todo o mundo e um forte «cheiro a petróleo e a gás» em muitos conflitos e acções de política externa. A Rússia precisava de estar atenta às tentativas de acesso aos seus recursos naturais, acrescentou ele. Numa aparente referência à política dos EUA no Médio Oriente — e, em particular, à invasão do Iraque por uma vasta coligação de 43 Estados (5 dos quais, incluindo Portugal, eram e são Estados-membros da OTAN), e à guerra travada no Iraque por essas forças invasoras encabeçadas pelas duas maiores potências militares da OTAN (EUA e Reino Unido) —, afirmou:

Por vezes, sob o disfarce de declarações túrgidas sobre a liberdade e a sociedade aberta, a soberania de certos Estados e regiões inteiras está a ser destruída [9].

Dez anos depois, num discurso proferido em 1 Março de 2018, perante deputados da Duma, governadores regionais e outros governantes, Putin afirmou:

Quero dizer o seguinte a todos aqueles que alimentaram a corrida aos armamentos nos últimos 15 anos, que procuraram obter vantagens unilaterais sobre a Rússia, que introduziram sanções ilegais destinadas a tolher o desenvolvimento do nosso país: tudo o que queriam impedir com as vossas políticas já aconteceu. Vocês fracassaram em tolher a Rússia [10].

Numa conferência de imprensa que deu, em 24 de Setembro de 2018, ao lado do primeiro-ministro italiano Giuseppe Conte, Putin foi mais longe ao afirmar:

Se os Estados Unidos se retirarem do tratado INF, a questão principal é o que farão com os mísseis [de alcance intermédio] que recentemente disponibilizaram. Se os EUA os entregarem à Europa, a nossa resposta terá naturalmente de espelhar isso.

Os países europeus que concordassem em estacionar mísseis estado-unidenses, acrescentou Putin, «exporiam o seu território à ameaça de um possível ataque de retaliação» [11].

Em 20 de Dezembro de 2018, numa conferência de imprensa de mais 3 horas, as críticas de Putin subiram de tom. Dessa vez o motivo imediato foi o facto de outro tratado EUA-Rússia — o novo tratado START, que limitava o número de ogivas nucleares estratégicas que cada lado pode ter — expirar em 2021. Putin disse estar preocupado com o facto de Washington não parecer estar interessado em discutir o seu prolongamento.

Ainda não foram realizadas conversações sobre o prolongamento deste tratado. Será que os americanos não estão interessados, não precisam dele? OK, vamos sobreviver e assegurar a nossa própria segurança, o que sabemos fazer. Mas, em geral, isto é muito mau para a humanidade, porque nos aproxima de um limiar perigoso. /…/
É muito difícil imaginar como é que a situação se irá desenvolver [se os EUA abandonarem o Tratado INF]. Se esses mísseis [de alcance intermédio] aparecerem na Europa, o que é que nós deveremos fazer? Evidentemente, teremos de assegurar a nossa própria segurança [12]. [destaque a traço grosso acrescentado ao original, N.E.]

Na mesma ocasião, diante de mais de 1000 jornalistas reunidos no World Trade Centre de Moscovo, Putin também citou a perigosa tendência para baixar o limiar de utilização de armas nucleares e a ideia de utilizar mísseis balísticos com ogivas convencionais.

Se algo desse género acontecesse — que Deus nos livre! — levaria ao fim de toda a civilização e talvez também ao fim do planeta.

No seu discurso sobre o estado-da-nação de 19 de Janeiro de 2019, Putin disse que os EUA tencionavam abandonar o Tratado das Forças Nucleares de Alcance Intermédio (Intermediate-Range Nuclear Forces Treaty [INF, no acrónimo inglês]) de 1987 [13] para poderem construir novos mísseis e tentarem transferir as culpas para a Rússia.

Os nossos parceiros americanos deveriam tê-lo dito honestamente em vez de fazerem acusações infundadas contra a Rússia para justificar o seu abandono do tratado.

E na verdade, em Outubro de 2020, o Presidente dos EUA, Donald Trump anunciou, tal como Putin tinha previsto, que os EUA iriam abandonar o Tratado INF, com base na seguinte alegação:

A Rússia violou o acordo [INF]. Têm-no violado durante muitos anos.

As armas nucleares de alcance intermédio foram vistas pela Rússia como sendo particularmente desestabilizadoras, uma vez que demoram menos tempo a atingir os seus alvos em comparação com os mísseis balísticos intercontinentais. Isso não deixaria praticamente tempo para os decisores, aumentando a probabilidade de um conflito nuclear global por causa de um falso aviso de alerta de lançamento, imediatamente seguido de contra-resposta.

No seu discurso de 19 de Janeiro de 2019, Putin afirmou que os novos mísseis estado-unidenses de alcance intermédio implantados na Europa oriental levariam apenas 10-12 minutos a chegar a Moscovo.

É uma ameaça muito séria para nós, e teremos de responder-lhe.

Afirmou também, na mesma ocasião, que a Rússia iria desenvolver armas capazes de atingir alvos inimigos dentro de um intervalo de tempo semelhante:

A Rússia será forçada a criar e utilizar novos tipos de armas que poderão ser utilizadas não só contra territórios de onde provém uma ameaça directa para nós, mas também contra os territórios onde ocorre a tomada de decisões, onde estão localizados os centros que dirigem o uso de sistemas de mísseis que nos ameaçam. A capacidade de tais armas, incluindo o tempo para chegar a esses centros, será equivalente às ameaças contra a Rússia [14].

No encontro anual do conselho do Ministério da Defesa russo, realizado em 21 de Dezembro de 2021, Putin desenvolveu em pormenor o tema das novas armas nucleares da Rússia. Com este discurso ficámos a saber que o desenvolvimento de novas armas nucleares, por parte da Rússia, não era um projecto para o futuro próximo ou sequer um projecto em curso, mas um projecto praticamente já completado. Putin começou por afirmar:

Os principais exércitos mundiais estão a gastar enormes recursos que não se comparam aos nossos para garantir a sua supremacia.

Em seguida, afirmou que a Rússia não podia abrandar o passo nesta peculiar corrida aos armamentos, já que qualquer atraso equivalia a uma maior vantagem dos seus rivais. Putin acrescentou que a Rússia não poderia conceder vantagens a nenhum país neste particular, argumentando que, pelo contrário, a Rússia estava a ganhar vantagem sobre os outros países.

Abordando o tema das armas nucleares que a propaganda russa denominou “Wunderwaffe [= arma milagrosa, em Alemão] russa”, Putin acrescentou:

Repito com orgulho: desenvolvemos armas que o mundo não possui, principalmente, é claro, armas hipersónicas [15].

Putin salientou também que a tríade nuclear [16] tinha atingido o nível que permitia garantir a segurança da Rússia. Mencionou o sistema de mísseis estratégicos Avangard equipados com ogivas de cruzeiro hipersónicas, entre outros sistemas de armas que a Rússia tinha à sua disposição. Estes seriam transportados pelos mísseis balísticos intercontinentais (MBIC) Sarmat que substituiriam os MBIC Voyevoda então em uso (conhecidos, na terminologia da OTAN, como SS-18 Satan).

2.2. Putin e a perspectiva de uma Ucrânia nuclear

O tema da ameaça nuclear que constituiria para a Rússia uma Ucrânia integrada na OTAN, aparece pela primeira vez (salvo erro) e em força numa resposta que Putin deu, em 30 de Novembro de 2021, numa videoconferência com empresários e gestores estrangeiros. Nessa ocasião, Putin afirmou que a OTAN deveria ficar ciente de que a Rússia não permitiria que a Ucrânia desenvolvesse capacidades militares que pusessem a Rússia em perigo:

Vladimir Putin: O senhor perguntou-me quais eram as linhas vermelhas na Ucrânia. Elas são, acima de tudo, as ameaças que nos podem vir desse território. Se o alargamento, a infra-estrutura [da OTAN] continuar a ser alargada — eu já disse isto publicamente, mas os senhores são empresários e podem não ter tempo para acompanhar o que vou dizendo — vou repetir mais uma vez que a questão diz respeito à possível implantação no território da Ucrânia de sistemas de mísseis de ataque com um tempo de voo de 7-10 minutos até Moscovo, ou de 5 minutos no caso de sistemas hipersónicos. Imaginem o que isso pode representar. Aliás, tanto quanto sei, o senhor vive em Moscovo. A capital oriental [da Rússia] está em Moscovo, não é verdade? O tempo de voo de um míssil até Moscovo é de 5 minutos [para estes sistemas de mísseis hipersónicos].
Jacob Grapengiesser: Sim, tenho vivido em Moscovo nos últimos 15 anos.
Vladimir Putin: Então, o que devemos fazer? Precisaríamos de criar sistemas semelhantes para serem utilizados contra aqueles que nos ameaçam. Conseguem imaginar isso? Mas já o podemos fazer agora, porque realizámos testes bem sucedidos, e no início do próximo ano iremos colocar em prontidão de combate um novo míssil hipersónico lançado a partir do mar com uma velocidade máxima de Mach 9. O tempo de voo será também de 5 minutos a partir da ordem de lançamento que lhes for dada. Para onde vamos? Porque é que estamos a fazer isto? A criação de tais ameaças para nós é a linha vermelha. Espero que não se chegue a esse ponto. Espero que o bom senso e a responsabilidade pelo próprio país e pela comunidade internacional prevaleçam, no fim de tudo [17]. [destaques a traço grosso acrescentados ao original, N.E.]

Numa reunião alargada do Conselho do Ministério da Defesa da Rússia realizada em 21 de Dezembro de 2021 e já referida, Putin desenvolveu a sua visão sobre as ameaças militares que impendiam sobre a Rússia, em particular as que tinham por origem a Ucrânia.

É extremamente alarmante que elementos do sistema de defesa global dos EUA estejam a ser destacados para perto da Rússia. Os lançadores Mk 41, que estão localizados na Roménia e que vão ser implantados na Polónia, estão adaptados para o lançamento dos mísseis de ataque Tomahawk. Se esta infra-estrutura continuar a avançar, e se os sistemas de mísseis dos EUA e da OTAN forem implantados na Ucrânia, o seu tempo de voo até Moscovo será de apenas 7-10 minutos, ou mesmo de cinco minutos para sistemas hipersónicos. Este é um enorme desafio para nós, para a nossa segurança. /…/ [destaque a traço grosso acrescentado ao original, N.E.]
Há especialistas [de armamento] sentados aqui connosco, eu estou em contacto constante com eles [e foram eles que me disseram o que eu vos vou agora dizer, N.E.]. Os Estados Unidos ainda não possuem armas hipersónicas [Putin estava mal informado, como sabemos hoje. Isso já tinha acontecido no momento em que Putin discursava: ver imagem e legenda abaixo, N.E.], mas ficaremos a saber quando as vierem a ter. É uma coisa que não pode ser escondida. Tudo fica registado, tenha ou não tenha êxito. Temos uma noção de quando isso poderá acontecer. Irão fornecer armas hipersónicas à Ucrânia e depois usá-las como cobertura — o que não significa que começarão a usá-las amanhã, porque já temos o [sistema de mísseis hipersónicos 3M22] Tsircon e eles não — para armar extremistas de um Estado vizinho e incitá-los contra certas regiões da Federação Russa, como a Crimeia, quando acharem que as circunstâncias são favoráveis.
Será que eles pensam realmente que não vemos estas ameaças? Ou será que pensam que ficaremos apenas de braços cruzados a ver emergir ameaças à Rússia? O problema é este: não temos simplesmente espaço para recuar. Esta é a questão [18].

Este é míssil hipersónico Hypersonic Air-breathing Weapon Concept (HAWC [lê-se Hawk, “falcão”]) dos EUA, fabricado pela Defense Advanced Research Projects Agency (DARPA), em parceria com a Força Aérea dos EUA. Atinge uma velocidade de 5 Mach. Foi testado com êxito em Setembro de 2021 e em meados de Março de 2022. Ambos os testes foram mantidos em segredo e só foram revelados em Abril de 2022. Gravura: Raytheon Missiles & Defense.

Em 23 de Dezembro de 2021, Putin voltou à carga, agora de uma maneira ainda mais explícita:

A este respeito, deixámos claro que qualquer outro avanço da OTAN para o Leste é inaceitável. Haverá algo que não seja claro a este respeito? Estamos a projectar mísseis perto da fronteira dos EUA? Não, não estamos. Foram os Estados Unidos que chegaram à nossa casa com os seus mísseis e já se encontram à nossa porta. Será ir demasiado longe exigir que não sejam colocados sistemas de ataque perto da nossa casa? O que é que há de tão invulgar nisto? /…/ Não estamos a ameaçar ninguém. Já nos aproximámos das fronteiras dos EUA? Ou das fronteiras da Grã-Bretanha ou de qualquer outro país? Foram vocês que chegaram à nossa fronteira, e agora dizem que a Ucrânia também se tornará membro da OTAN. Ou, mesmo que não adira à OTAN, que as bases militares e os sistemas de ataque serão colocados no seu território ao abrigo de acordos bilaterais. Esta é a questão.
Fizemos saber muito claramente à OTAN que a sua expansão para Leste é inaceitável. Os Estados Unidos da América [EUA] estão a instalar mísseis na soleira da nossa casa. Será pedir muito que não instalem sistemas ofensivos junto da nossa casa? Como é que os EUA reagiriam se fossem instalados mísseis na sua fronteira com o Canadá ou com o México? Por vezes, parece que vivemos em mundos diferentes. Eles [os EUA e a OTAN] disseram que não se expandiriam, mas estão a expandir-se [19]. [destaques a traço grosso acrescentados ao original, N.E.]

Finalmente, em 21 de Fevereiro de 2022, quatro dias antes da invasão da Ucrânia, Putin fez um balanço geral das ameaças que, segundo ele, pesavam sobre a Rússia. Eis alguns excertos desse seu discurso que são relevantes para os propósitos deste artigo.

Alguns Estados membros da OTAN continuam muito cépticos quanto à adesão da Ucrânia à OTAN. Estamos a receber sinais de algumas capitais europeias que nos dizem para não nos preocuparmos, uma vez que isso não acontecerá literalmente da noite para o dia. De facto, os nossos parceiros americanos também nos estão a dizer a mesma coisa. “«Muito bem, então», respondemos nós, «se não acontecer amanhã, então acontecerá depois de amanhã. O que é que isso muda do ponto de vista histórico? Absolutamente nada»”.
Em Março de 2021, foi adoptada uma nova Estratégia Militar na Ucrânia. Este documento é quase inteiramente dedicado ao confronto com a Rússia e estabelece o objectivo de envolver Estados estrangeiros num conflito com o nosso país. A estratégia estipula a organização do que pode ser descrito como um movimento terrorista subterrâneo na Crimeia e em Donbass. Define também os contornos de uma potencial guerra, que deverá terminar, segundo os estrategas de Kiev, «com a assistência da comunidade internacional em condições favoráveis à Ucrânia», bem como — ouçam com atenção, por favor — «com o apoio militar estrangeiro no confronto geopolítico com a Federação Russa». De facto, isto não é mais do que uma preparação para as hostilidades contra o nosso país, a Rússia.
Como sabemos, já hoje foi afirmado que a Ucrânia pretende criar as suas armas nucleares, e isto não é uma pura gabarolice [Putin refere-se aqui, aparentemente, ao discurso de Zelinsky de 19 de Fevereiro de 2022. Regressaremos a este assunto mais adiante, na secção 5, N.E.]. A Ucrânia tem as tecnologias nucleares criadas no tempo da União Soviética e veículos de lançamento para tais armas, incluindo aviões, bem como os mísseis tácticos de precisão Tochka-U de concepção soviética, que têm um alcance de mais de 100 quilómetros.
Mas eles podem fazer mais; é apenas uma questão de tempo. A investigação básica que necessitam para o fazer existe desde a era soviética. Por outras palavras, a aquisição de armas nucleares tácticas será muito mais fácil para a Ucrânia do que para alguns outros Estados que não vou mencionar aqui, que estão a conduzir essa investigação, sobretudo se Kiev receber apoio tecnológico estrangeiro. Também não podemos descartar essa possibilidade.
Se a Ucrânia adquirir armas de destruição maciça, a situação no mundo e na Europa irá mudar drasticamente, especialmente para nós, para a Rússia. Não podemos deixar de reagir a este perigo real, tanto mais que, permitam-me que o repita, os patronos ocidentais da Ucrânia podem ajudá-la a adquirir estas armas para criar mais uma ameaça ao nosso país [20]. [destaques a traço grosso acrescentados ao original, N.E.]

2.3. Resumo

Em suma, o contencioso de Putin em relação à OTAN pode ser resumido da seguinte maneira:

A) A OTAN deveria ter-se dissolvido na sequência da reunificação da Alemanha (1990), imediatamente a seguir ao fim do Pacto de Varsóvia (1991) e ao desaparecimento da União Soviética (1991), os seus proclamados inimigos. Ou então deveria ter-se reconfigurado (como propôs Gorbachev com a sua ideia da “Casa Comum Europeia”) de modo a integrar numa aliança comum todos os países outrora pertencentes a um ou outro desses dois blocos militares, incluindo, em primeiro lugar, a Rússia.

B) Contudo, a OTAN não só não se dissolveu, nem se reconfigurou para albergar a Rússia, como tem vindo também a expandir-se, por ondas sucessivas, para leste da Alemanha. Tem hoje quase o dobro de Estados-membros (30) do que tinha em 1991 (16). Tudo indica que a sua expansão só se deterá quando estiver completamente colada às fronteiras da Rússia — o que ficará mais perto de acontecer quando a Geórgia e a Ucrânia, que já pediram a sua adesão à OTAN, forem formalmente admitidas.

C) A expansão da OTAN viola grosseiramente as garantias que os EUA, o Reino Unido, a França e Alemanha (os quatro principais países da OTAN na Europa), deram a Gorbachev, em 1990-1991, que a OTAN não avançaria “nem um centímetro para leste da Europa”, depois da unificação da Alemanha. Viola também, de modo igualmente grosseiro, as garantias dadas a Ieltsin, no quadro da chamada “Parceria para a Paz”, no tempo de Clinton.

D) A expansão da OTAN viola também o princípio básico da segurança cooperativa e colectiva dos países — um princípio que está vertido em muitos tratados e acordos internacionais subscritos pelos países da OTAN (incluindo os EUA) e pela Rússia. Trata-se do princípio da indivisibilidade dos benefícios da segurança: a segurança de uns países não pode ser alcançada à custa da insegurança de outros [21].

E) Como a Rússia pediu a sua adesão à OTAN várias vezes e esta foi sempre recusada, só resta uma explicação lógica e geopoliticamente verosímil para a expansão da OTAN. Esta organização militar — fundada, financiada no essencial e dirigida pelos EUA — elegeu a Rússia (que é uma federação multinacional, multiétnica e plurilingue) como seu inimigo na Europa. Os EUA não aceitam coexistir pacificamente com a Rússia, porque a Rússia é o maior país do mundo, com imensas riquezas naturais e é também, como os EUA, uma grande potência nuclear e, mais ainda, uma potência que não conseguem subordinar, como o fizeram relativamente a todos os demais Estados europeus [22].

F) Por isso, querem aniquilar a Rússia. Primeiro, pretendem cercá-la através da OTAN, de maneira a que esta venha a ficar colada às suas maiores fonteiras europeias, para, seguidamente, poderem atacá-la com maior facilidade e rapidez e conseguirem desmembrá-la, como fizeram com a Jugoslávia (que também era uma federação multinacional, multiétnica e plurilingue). O pretexto para esse ataque será encontrado quando todas as condições para o seu êxito estiverem reunidas. Será, verosimilmente, uma provocação ou/e uma campanha de mentiras em grande escala.

G) A Rússia não permitirá que isso aconteça.

3. Rossia delenda est / Rossia delenda non est

Julgo ter resumido com exactidão o contencioso de Putin em relação à OTAN tal como ele o foi expondo, em múltiplas ocasiões, ao longo dos últimos 15 anos e do qual citei alguns excertos representativos na secção 2.

Por muito que Emmanuel Macron («O discurso de Putin é paranóico», 21 de Fevereiro), o Libération («Vladimir Putin, o louco de Moscovo», 21 de Fevereiro), Bernard Guetta [deputado do Parlamento Europeu do grupo de Macron] («Putin ficou maluco», France Inter Radio, 21 de Fevereiro), Milos Zeman [presidente da República Checa] («Putin é maluco», Guardian 24 de Fevereiro), Alexei Navalny («Putin está doido», Reuters, 2 de Março), o Financial Times («É forçoso duvidar do seu sentido de racionalidade», 4 de Março), o Washington Post («Putin é instável?», 6 de Março) e outros acreditem nisso, ou nos queiram fazer acreditar, a argumentação de Putin não é, de modo nenhum, como se constata, o charabiá confuso, incoerente e delirante de um louco ou de um paranóico.

É, isso sim, o arrazoado bem controlado de um estadista e autocrata putativo que faz uma análise geopolítica da situação em que se encontra e avalia realisticamente (de acordo com o “realismo” estreito e enviesado próprio da classe que representa na Rússia) as suas possibilidades de sobrevivência na luta feroz que trava com os EUA e a OTAN.

Fica patente, creio, que a motivação geopolítica da conduta de Putin em relação à OTAN pode ser resumida pela fórmula latina Rossia delenda non est ! (“A Rússia não será destruída!”). Como se trata de um autocrata putativo, a fórmula não tem a grandiloquência que poderia ter se fôsse aplicada a um estadista com poderes mais modestos.

Esta fórmula evoca, por antonímia, a famosa frase Carthago delenda est! (que significa “Cartago será destruída!” ou “Cartago tem de ser destruída!” ou “É preciso destruir Cartago!”), tradicionalmente atribuída a Catão, o Ancião, que morreu em 149 a.C. Segundo reza a tradição, Catão, o Ancião, senador romano, proferia esta frase de cada vez que começava ou terminava um discurso perante o Senado Romano, qualquer que fosse o assunto. Catão acabou por fazer vingar a sua ideia. Após uma curta campanha e um longo cerco que durou de 149 a 146 a.C., a cidade de Cartago (situada na costa do golfo de Tunes) foi destruída e arrasada pelos exércitos romanos.

Os EUA também tiveram o seu Catão. Já o referi na secção 1 (Introdução) deste artigo. Chamava-se Zbigniew Brzezinski (1928-2017) — professor universitário, autor de numerosas obras de geopolítica, co-fundador com o multimilionário David Rockfeller da Comissão Trilateral, Conselheiro do Presidente Lyndon Johnson de 1966 a 1968 e Conselheiro Nacional de Segurança do Presidente Jimmy Carter de 1977 a 1981. Doutrinariamente, Brzezinski era um geopolitólogo da corrente idealista-wilsoniana [23], da qual é, aliás, um exemplo perfeito [24].

Recorde-se o que, em 1997, Brzezinski, escrevia, a propósito da Rússia.

A Rússia continua a ser responsável pela maior parcela de território do mundo, abrangendo dez fusos horários e fazendo com que os Estados Unidos, a China ou uma Europa alargada pareçam anões quando comparados com ela [25].

A Ucrânia era, para ele, um «espaço importante no tabuleiro de xadrez eurasiático» [26], cujo controlo é suposto tornar possível uma dominação sobre o mundo, nomeadamente através de um enfraquecimento da Rússia. Por isso, Brzezinski identifica a Ucrânia como o Estado «merecedor do mais forte apoio geopolítico da América» [27]. É, para os EUA, «o Estado crítico» [28] entre os «pivôs geopolíticos chave da Eurásia» [29]; sendo os «pivôs geopolíticos» definidos como sendo «Estados cuja importância deriva não do seu poder e motivação, mas sim da sua localização sensível e das consequências da sua condição potencialmente vulnerável para o comportamento dos actores geostratégicos» [30], tais como a Rússia. Para Brzezinski, era preciso cortar definitivamente todos os laços privilegiados de natureza histórica, linguística, cultural, económica e política que ligam a Ucrânia à Rússia, pois «sem a Ucrânia, a Rússia deixa de ser um império eurasiático» [31].

Depois de atrair a Ucrânia para o campo da OTAN, escrevia Brzezinski, era preciso preparar uma segunda etapa. Rossia delenda est ! [É preciso destruir a Rússia!], diria Catão. «Sim, estimado Catão», responderia Brzezinski, «mas não a arrasando, como os romanos fizeram a Cartago ou como nós fizemos a Hiroshima e a Nagasaki — a não ser, é claro (Deus nos livre!), que isso se revele absolutamente necessário. A solução mais inteligente é desmembrar a Rússia em três partes, exercendo sobre ela uma constante corrida aos armamentos e uma constante ameaça nuclear».

Considerando o tamanho do país e a sua diversidade, um sistema político descentralizado e uma economia de mercado livre reuniriam as condições ideais para fazer frutificar /…/ os vastos recursos naturais da Rússia. Uma Confederação da Rússia — composta por uma Rússia europeia, uma República Siberiana e uma República do Extremo Oriente frouxamente ligadas umas às outras — seria igualmente mais benéfica para desenvolver relações económicas mais estreitas com os seus vizinhos. Cada uma das entidades confederadas teria melhores condições para desenvolver o potencial criativo local, durante séculos abafado pela pesada mão burocrática de Moscovo. Assim, uma Rússia descentralizada terá menos propensão para fazer valer as suas pretensões imperiais [32]. [destaque a traço grosso acrescentado ao original, N.E.]

Não sei se Putin leu The Grand Chessboard: The American Primacy and Its Geopolitical Imperatives [“O Grande Tabuleiro de Xadrês: A primazia americana e os seus imperativos geopolíticos”. 1997], o tratado de geopolítica onde Brzezinski expõe estas ideias. Presumo que sim. Mas mesmo que o não tenha lido, sabemos que está perfeitamente cônscio da ameaça de desmembramento da Rússia enunciada por Brzezinski, a qual, aliás, não é original. Com efeito, no seu discurso de 21 de Dezembro de 2021, Putin afirmou:

Lembrem-se: em 1918, um assessor do Presidente dos EUA, Woodrow Wilson, disse que seria um alívio para o mundo inteiro se em vez de uma grande Rússia, fosse criado um Estado separado na Sibéria e outros quatro países na parte europeia.
Em 1991, dividimo-nos em 12 partes, e fomos nós próprios que o fizemos. Ainda assim, parece que isto não foi suficiente para os nossos parceiros. Eles acreditam que a Rússia é demasiado grande como é hoje. Isto acontece porque os próprios países europeus se transformaram em pequenos Estados. Em vez de vastos impérios, eles são agora pequenos Estados com 60 a 80 milhões de pessoas [esta acepção de “pequenos Estados” só é válida para a Alemanha (83,2 milhões de pessoas), a França (67,3 milhões), o Reino Unido (63 milhões) e a Itália (59,5 milhões). A Espanha (48 milhões), a Polónia (38,4 milhões) e a Roménia (19,6 milhões) já estão bem abaixo desse escalão. Todos os outros países da Europa têm populações com grandezas muito inferiores, raramente ultrapassando os 10-15 milhões de pessoas, N.E.]. Contudo, mesmo depois do colapso da União Soviética e de termos ficado apenas com 146 milhões de pessoas, isso ainda é demasiado para eles. Creio que esta é a única forma de explicar esta pressão implacável. [destaque a traço grosso acrescentado ao original, N.E.]

4. Duas perguntas

Esclarecida a motivação geopolítica de Putin para invadir a Ucrânia (não confundir “motivação geopolítica” com “justificação legal” ou “justificação legítima [política e/ou moral]”, questões que serão abordadas nas secções 7 e 8, mais adiante), podemos finalmente abordar uma questão sobre a conduta de Putin que a muitos parece um enigma.

Ela desdobra-se em duas perguntas indissociáveis uma da outra, que são a razão de ser deste artigo (a terceira parte de um ensaio de quatro partes):

1) Por que razão Putin decidiu invadir a Ucrânia agora [em 24 de Fevereiro de 2022] e não bem mais cedo ou bem mais tarde?

2) Como qualificar a invasão da Ucrânia em termos estratégicos e no âmbito da doutrina do seu mentor e mandante, Putin?

5. Porquê em 24 de Fevereiro?

Comecemos pela primeira pergunta, relativa à data da invasão. Conjecturo que a resposta resulta da combinação de quatro informações distintas.

A primeira prende-se com os mísseis hipersónicos (como, por exemplo, o 3M22 Tsircon, da Rússia, ou o Hawk, dos EUA).

Durante a “Guerra Fria”, os EUA e a União Soviética, equipados com mísseis nucleares ⎼ mais de 60.000 ogivas entre ambos ⎼, desenvolveram um vocabulário comum para o pesadelo mundial que criaram. O tempo de voo entre os EUA e a Rússia, e vice-versa, para um MBIC (Míssil Balístico InterContinental) era de cerca de 20 minutos. Uma vez que ambos os lados tinham armas nucleares mais do que suficientes para exterminar completamente toda a vida humana e destruir uma parte do ecossistema terrestre (em particular quase todo o reino Animalia), eles chamaram a esta situação, Mutual Assured Destruction (“Destruição Mútua Assegurada”), cujo acrónimo, M.A.D., se pronuncia do mesmo modo do que a palavra inglesa mad (louco) — um termo e um acrónimo apropriados.

Os instrumentos e técnicas de detecção e alerta de um lançamento “inimigo” tornaram-se, entretanto, muito sofisticados, de modo que havia tempo suficiente para ir de “porta-em-porta”, durante 20 minutos, para determinar se o que estavam a detectar e o aviso de alerta correspondia a um problema instrumental, a um lançamento de satélite inofensivo, a um ataque nuclear, ou a outra coisa qualquer. Foi neste contexto que foi desenvolvida a noção de primeiro ataque (Ingl. “first strike”) ou ataque preemptivo (Ingl. “preemptive strike”), um modo de ataque nuclear concebido para neutralizar as armas nucleares de retaliação do “inimigo”, porque quem quisesse “vingar-se” teria de lançar o seu projétil nuclear antes da chegada do projétil do inimigo.

Primeiro ataque, também conhecido como ataque nuclear preemptivo, é um ataque ao arsenal nuclear de um inimigo que impede a retaliação contra o atacante de um modo eficaz. Um primeiro ataque bem sucedido danificaria os mísseis inimigos que estão prontos para lançamento e impediria o adversário de preparar outros para um contra-ataque que visasse os arsenais nucleares do inimigo e as suas instalações de lançamento [33].

Os mísseis hipersónicos vieram modificar profundamente as premissas do “primeiro ataque”, introduzindo uma nova noção: a de lançamento-imediatamente-a-seguir-a-um-aviso-de-alerta (Ingl. “launch on alert”).

Os mísseis hipersónicos são os que são movidos por um motor de foguete, ou por um reactor estator, durante parte de seu voo — o que lhes permite atingirem uma velocidade muito elevada, maior do que Mach 5, e adoptarem um perfil de voo em altitudes menores do que os mísseis balísticos. Isso torna a sua detecção e intercepção extremamente difíceis. O lançamento-imediatamente-a-seguir-a-um-aviso-de-alerta significa que o tempo de verificação porta-a-porta é tão curto que quem se queira “vingar” do inimigo, terá de lançar os seus mísseis ao primeiro aviso de alerta — um procedimento de racionalidade altamente questionável pelas razões já mencionadas. Ora, é este procedimento que se tornou quase “obrigatório”, por força das circunstâncias, com os mísseis hipersónicos [34].

Feito este esclarecimento, regressemos à eventualidade de mísseis hipersónicos serem implantados na Ucrânia para a qual, como vimos, Putin alertou no seu discurso 30 de Novembro de 2021. Do ponto de vista de Putin, isso constituiria um “ameaça existencial” (sic) para a Rússia. Porquê? Porque o tempo de voo de um míssil hipersónico entre, por exemplo, Kiev e Moscovo (que distam uma da outra 868 km por estrada e 762 km por via aérea) seria de 5 minutos.

Talvez, nessa altura, não tenha ficado claro para todos os leitores a razão pela qual esse tempo de voo constituiria uma “ameaça existencial” para a Rússia. Mas creio que agora terá ficado claro para qualquer leitor que isso equivale a dizer que qualquer lançamento da Ucrânia de um míssil hipersónico desencadeará automaticamente um lançamento-imediatamente-a-seguir-a-um-aviso-de-alerta por parte da Rússia, e vice-versa: qualquer lançamento da Rússia de um míssil hipersónico… É um cenário de destruição mútua assegurada.

O segundo elemento a ter em conta para respondermos à pergunta («Por que razão Putin decidiu invadir a Ucrânia agora [em 24 de Fevereiro de 2022] e não muito mais cedo ou muito mais tarde»?) prende-se com outro facto também referido nos discursos de Putin. Em Setembro de 2020, Volodymyr Zelensky promulgou a Estratégia Nacional de Segurança da Ucrânia e em Março de 2021 promulgou a nova Estratégia Militar da Ucrânia [35]. Sabemos que adiou o mais que pôde a promulgação da Estratégia Nacional de Segurança da Ucrânia (levou mais de seis meses a promulgá-la) e que o fez com muita relutância [36]. O caso não era para menos, porque a adopção desse documento significou, na prática, a renúncia ao cumprimento dos Acordos de Minsk e do programa eleitoral de Zelensky relativamente aos territórios russófonos do Donbass.

Lembremo-nos que Zelensky foi eleito numa plataforma de redução das hostilidades com a Rússia. O ponto central do programa eleitoral de Zelensky era a sua vontade de aplicar a “fórmula Steinmeier” concebida pelo então Ministro dos Negócios Estrangeiros alemão Frank-Walter Steinmeier, que apelou a eleições nas regiões maioritariamente de língua russa de Donetsk e Luhansk, como condição necessária para alcançar uma solução pacífica no Donbass que evitasse um desenlace secessionista de uma parte, pelo menos, desse território.

A aprovação da nova Estratégia de Segurança Nacional da Ucrânia e, seis meses depois, da nova Estratégia Militar da Ucrânia ⎼ documentos que devem ter sido redigidos por especialistas da OTAN e por elementos do comando das Forças Armadas da Ucrânia ⎼ representou a renúncia de Zelensky ao seu programa original, um facto que os seus críticos da véspera se apressarem a aplaudir calorosamente [37]. Estes documentos consagraram sem papas na língua a tese de que o inimigo principal da Ucrânia era a Rússia e que a tarefa principal da Ucrânia era preparar-se, nos prazos mais breves possíveis e com a ajuda da OTAN, para uma guerra generalizada com a Rússia. Tudo profecias autocumpridoras.

Esta reviravolta de Zelensky também poderá explicar a sua oposição à visita do Presidente da Alemanha à Ucrânia, justificada oficiosamente por negócios que o visitante teria tido outrora na Ucrânia que não são bem vistos pelo poder ucraniano actual. Mas a verdadeira razão dessa oposição, que causou um incidente diplomático [38], poderá ser outra. É que o actual presidente alemão é… o mesmo Steinmeier que Zelensky tanto apreciava outrora como Ministro dos Negócios Estrangeiros da Alemanha. «Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades», como dizia o poeta.

O terceiro elemento a ter em conta para respondermos à pergunta («Por que razão Putin decidiu invadir a Ucrânia agora [em 24 de Fevereiro de 2022] e não muito mais cedo ou muito mais tarde»?) prende-se com uma declaração política conjunta ⎼ intitulada “A parceria estratégica EUA- Ucrânia” ⎼ que o governo dos EUA e o governo da Ucrânia emitiram em 1 de Setembro de 2021, na qual os EUA prometem, entre outras coisas, reforçar a sua ajuda e cooperação militar com a Ucrânia em todos os planos (incluindo cibersegurança, espionagem, vigilância por satélites), com envio de armas militares avançadas ⎼ como parte do apoio ao programa de acção para a adesão (PAA) da Ucrânia à OTAN ⎼ e na qual o governo dos EUA e o governo da Ucrânia se comprometem a desenvolver esforços conjuntos para impedir o funcionamento do gasoduto russo conhecido, em Inglês, por Nord Stream 2 — sim, leram bem, impedir que a Alemanha e outros países europeus se possam abastecer de gás russo barato por essa via [Disponível aqui]

O quarto elemento a ter em conta para respondermos à pergunta («Por que razão Putin decidiu invadir a Ucrânia agora [em 24 de Fevereiro de 2022] e não muito mais cedo ou muito mais tarde»?) prende-se com o anúncio que Zelensky fez em 19 de Fevereiro de 2022, na Conferência sobre Política de Segurança de Munique, de que a Ucrânia está pronta a renunciar ao cumprimento do Memorando de Budapeste sobre Garantia de Segurança em troca de um lugar na OTAN.

Recorde-se que o Memorando de Budapeste sobre Garantias de Segurança é um acordo político assinado em Budapeste (Hungria) em 5 de dezembro de 1994. Nesse memorando, a Rússia, o Reino Unido e os EUA coíbem-se de ameaçar ou utilizar a força militar ou a coerção económica contra a Ucrânia, a Bielorrússia e o Cazaquistão, «excepto em legítima defesa ou de outra forma que esteja em conformidade com a Carta das Nações Unidas». Em contrapartida (e em consequência deste memorando e de outros acordos assinados entre 1993 e 1996), a Bielorrússia, o Cazaquistão e a Ucrânia abdicaram da posse das armas nucleares que pertenciam a União Soviética, mas que estavam estacionadas no seu território. Com a dissolução da União Soviética, essas armas passaram para a posse da Rússia. A Bielorrússia, o Cazaquistão e a Ucrânia passaram também a coibir-se de fabricar ou albergar armas nucleares no seu território.

Foi este acordo que Zelensky decidiu pôr em causa no seu discurso em Munique.

A Ucrânia recebeu garantias de segurança por ter desistido da terceira força nuclear do mundo. Não temos essas armas. Também não dispomos de segurança. Também não temos uma parte do território do nosso Estado que é maior em área do que a Suíça, a Holanda, ou a Bélgica. E o mais importante — não temos milhões dos nossos cidadãos. Não temos tudo isto.
Por conseguinte, temos alguma coisa. Temos o direito de exigir uma mudança de uma política de apaziguamento para uma política que assegure a segurança e garantias de paz. /…/
Eu quero acreditar que a OTAN e o seu artigo 5 serão mais eficazes do que o Memorando de Budapeste. /…/ E espero que ninguém pense na Ucrânia como sendo uma conveniente e eterna zona-tampão entre o Ocidente e a Rússia. Isso nunca acontecerá. Ninguém permitirá que isso aconteça. /…/
Desde 2014, a Ucrânia tentou por três vezes convocar consultas com os Estados-fiadores do Memorando de Budapeste. Três vezes sem êxito. Hoje a Ucrânia fá-lo-á pela quarta vez. Eu, como Presidente, farei isto pela primeira vez. Mas tanto eu como a Ucrânia vamos fazer isto pela última vez.
Se as consultas não voltarem a acontecer ou se os seus resultados não garantirem segurança para o nosso país, a Ucrânia terá todo o direito de acreditar que o Memorando de Budapeste não está a funcionar e todas as decisões do pacote de 1994 ficam em causa [39] [o destaque a traço grosso foi acrescentado ao original, N.E.]

Parece(-me) claro, pela leitura deste discurso na íntegra, que Zelensky anunciou a sua disposição de autorizar o fabrico caseiro de armas nucleares no seu país, com o auxílio da OTAN, ou pelo menos com o seu beneplácito.

6. Putin aplica a doutrina Bush na Ucrânia

A resposta à segunda pergunta (Como qualificar a invasão da Ucrânia em termos estratégicos e no âmbito da doutrina do seu mentor e mandante, Putin?) contém o cerne da resposta à primeira. A invasão da Ucrânia pelas forças armadas da Rússia qualifica-se, em minha opinião, como uma “guerra preemptiva”.

“Preempção” é um termo técnico do direito comercial e da informática, campos onde, aliás, significa coisas diferentes. O seu emprego no vocabulário militar é mais recente e ainda inusitado, mas não o conceito que designa. Na realidade, o conceito de guerra preemptiva não é novo. O que é novo é a ênfase que lhe foi conferido pela nova doutrina estratégica dos EUA no período posterior aos ataques às torres gémeas de Nova Iorque em 11 de Setembro de 2001.

Os leitores que já eram adultos no ano 2003 lembrar-se-ão, porventura, que o conceito da guerra preemptiva saltou para as primeiras páginas dos jornais nessa época, em relação com a invasão do Iraque em 2003. Isso não aconteceu por acaso. Em Setembro de 2002, o conceito de “guerra preemptiva” foi definido e enunciado na National Security Strategy of the United States [Estratégia de Segurança Nacional dos EUA], comummente conhecida como Doutrina Bush.

O significado mais importante desse documento encontra-se no seu capítulo V, intitulado Impedir os nossos inimigos de nos ameaçarem e ameaçarem os nossos aliados e os nossos amigos com armas de destruição maciça. É aí que encontramos a definição americana de guerra preemptiva.

Os EUA têm mantido a opção de actuar preemptivamente para conter uma ameaça à segurança nacional. A maior ameaça é o risco da inacção — é imperioso efectuar uma acção antecipatória para nos defendermos, mesmo que subsista incerteza tanto sobre o momento como sobre o local do ataque inimigo. Se for necessário, actuaremos preemptivamente para evitar ou prevenir tais actos hostis pelos nossos adversários. /…/ Procederemos sempre deliberadamente, ponderando as consequências das nossas acções [40] [o destaque a traço grosso foi acrescentado ao original, N.E.]

Na concepção americana, o ataque preemptivo é, portanto, uma modalidade do ataque preventivo alegadamente destinada a impedir actos hostis do inimigo, mesmo quando se desconhece quer o momento quer o local exactos da ocorrência dos ditos actos.

Encontram-se formulações semelhantes a esta nos documentos estratégicos de defesa de outros países. É o caso da Lei de Programação Militar da França para o período 2003-2008, aprovada igualmente em Setembro de 2002. O documento redefine a estratégia francesa no pós-11 de Setembro.

No seu capítulo 3 (“Funções Estratégicas”) refere-se à necessidade, «no exterior das nossas fronteiras», de «estar em condições de identificar e prevenir as ameaças o mais cedo possível». «Nesse quadro, a possibilidade de uma acção preemptiva poderia ser considerada /…/ desde que se verifique uma situação de ameaça explícita e reconhecida» [41]. [o destaque a traço grosso foi acrescentado ao original, N.E.]

Existe uma diferença subtil entre estes dois conceitos ‒ o americano e o francês ‒ de guerra (ou acção militar letal/destrutiva) preemptiva. Na doutrina estratégica norte-americana, prevê-se a possibilidade de desencadear uma acção preemptiva, empregando a força letal ou destrutiva, no âmbito da “prevenção”, isto é, antes da ameaça se poder configurar como iminente. Assim sendo, a preempção evolui de uma estratégia defensiva para uma estratégia ofensiva. No caso da doutrina estratégica da França e de muitos outros países, a possibilidade de actuar preemptivamente depende da constatação e reconhecimento de uma evidente ameaça directa e iminente, continuando a acção preemptiva a situar-se no quadro de uma estratégia essencialmente defensiva [42].

Esta diferença entre os dois conceitos de guerra (ou acção militar letal/ destrutiva) preemptiva pode ser ilustrada com dois exemplos concretos. Quando, em 1967, a Força Aérea de Israel atacou os aeroportos e destruiu no chão os aviões de guerra da Força Aérea do Egipto na chamada “Guerra dos Seis Dias”, executou o que os generais franceses, à luz da sua doutrina estratégica, apelidam de acção ou guerra preemptiva. Isto, bem entendido, se admitirmos como verdadeira a alegação de Israel de que estaria iminente um ataque egípcio contra Israel.

Em contraste, em 1981, quanto Israel bombardeou e destruiu o reactor de teste de materiais nucleares em construção em Osirak, perto de Bagdá (Iraque), executou o que os generais americanos apelidam de acção ou guerra preemptiva. Isto porque a possibilidade do Iraque lançar uma bomba nuclear sobre Israel não estava, de modo nenhum, iminente, mesmo que dessemos de barato que o reactor de Osirak tivesse sido projectado para fabricar armas nucleares para atacar Israel, e não para fins pacíficos.

Para fixar as ideias chamarei, doravante, guerra preemptiva (ou acção militar preemptiva) à guerra (ou acção militar) preemptiva no sentido americano (ou seja, ofensivo) do termo e guerra preventiva (ou acção militar preventiva) à guerra (ou acção militar) preemptiva no sentido francês (ou seja, defensivo) do termo.

Feito este esclarecimento e esta ressalva terminológica, estou agora em condições de exactificar o significado da invasão militar da Ucrânia e a guerra contra a Ucrânia ordenadas por Putin. Trata-se uma guerra preemptiva no sentido americano (ou seja, ofensivo) do termo.

Parece(-me) claro, por tudo o que foi dito nas secções anteriores, que Putin aplicou a doutrina Bush à Ucrânia, lançando uma guerra preemptiva contra um Estado que constitui, a seus olhos, uma ameaça existencial para o Estado russo dada a sua intenção reiterada de aderir à OTAN e, mais recentemente, de se dotar de armamento nuclear.

Quanto à questão de saber por que razão esse ataque preemptivo foi lançado agora, em 24 de Fevereiro de 2022 (e não bem mais cedo ou bem mais tarde) a resposta parece-me igualmente óbvia em função das quatro ordens de factos descritos na secção 5: era agora ou nunca.

Putin convenceu-se que a sua janela de oportunidade para lançar o seu ataque preemptivo contra a Ucrânia se poderia fechar a qualquer momento. Bastaria para tanto que a OTAN decidisse admitir formalmente a Ucrânia, o que poderia estar iminente como sugeriu a resposta que Biden deu a Zelensky em 9 de Dezembro de 2021 (cf. 2.ª parte deste ensaio, OTAN: natureza e historial, antes e depois de 1991, secção 4).

Ora, a partir do momento em que a Ucrânia estivesse na OTAN, um ataque russo a esse país seria interpretado como um ataque à OTAN no seu conjunto, de acordo com o artigo 5.º desta organização militar que estipula que um ataque a um dos seus membros é um ataque a todos. E um ataque da OTAN à Rússia em retaliação à sua invasão da Ucrânia seria o início de terceira guerra mundial, abrindo a perspectiva do fim iminente da humanidade tal como a conhecemos hoje e, muito possivelmente, a sua extinção total como biospécie.

Várias passagens dos discursos Putin de 21 de Fevereiro e 24 de Fevereiro de 2022 corroboram adicionalmente esta dupla explicação do significado estratégico que a invasão da Ucrânia representa nos planos de Putin e da data que escolheu para a executar.

7. Uma guerra ilegal e ilegítima

Espero ter conseguido mostrar nas secções anteriores deste texto (que é a 3.ª parte do ensaio A Guerra na Ucrânia) e nas duas partes anteriores do mesmo ensaio (1.ª parte: Crónica de uma guerra pré-anunciada; 2.ª parte: OTAN: natureza e historial, antes e depois de 1991) que a Rússia (entenda-se, a elite dirigente russa, com Putin à cabeça) tem razões de sobra para se sentir traída, enganada e ameaçada pela OTAN (entenda-se, pelas elites dirigentes dos seus Estados-membros, com os EUA à cabeça) desde, pelo menos, 1997. A Rússia tem também razões bastantes para se sentir desconfiada e zangada com a Ucrânia (entenda-se: com a elite dirigente ucraniana, com Poroshenko e agora Zelinsky à cabeça) desde, pelo menos, 2014.

Do ponto de vista geopolítico (o quadro doutrinal de que as elites dirigentes dos Estados se servem preferencialmente para analisar os acontecimentos e processos que determinam as relações entre os Estados no espaço mundial e para guiar a sua conduta nesse espaço) e, em particular, do ponto de vista da máxima de Mearsheimer (cf. Introdução deste texto), a Rússia tem, de facto, carradas de razão para se sentir vexada.

Mas esse capital de queixas não lhe confere qualquer direito à ultima ratio regum. A invasão da Ucrânia e a guerra na Ucrânia desencadeadas pelo governo russo de Vladimir Putin, em 24 de Fevereiro de 2022, são, no quadro das normas jurídicas do direito internacional público pós-fundação da ONU e pós-julgamento Nuremberga, uma guerra de agressão e por conseguinte uma guerra ilegal e ilegítima.

O apotegma “ultima ratio regum” (“o último argumento do rei”) era uma expressão que o rei absoluto Luís XIV de França, cognominado “O Grande” e “Rei Sol”, mandou gravar, em 1666, nos canhões da sua poderosa artilharia. Esta fórmula latina, típica da geopolítica, significa que, quando todos os meios pacíficos e diplomáticos para resolver uma disputa entre Estados estiverem esgotados e nenhuma solução razoável restar, é admissível usar a ameaça do uso da força das armas e a guerra para impor os seus pontos de vista. A foto é de um canhão francês que se encontra no exterior do Museu de História Militar de Viena (Áustria). Fonte: Wikipédia.

Se não, vejamos:

— A alínea 3 do artigo 2 da Carta das Nações Unidas (1945), estabelece que «todos os [Estados] membros resolverão as suas controvérsias internacionais por meios pacíficos».

— A proibição do uso da força, entendida como acção armada entre Estados, encontra a sua expressão mais clara na alínea 4 do artigo 2 da Carta:

Os membros [da ONU] deverão abster-se nas suas relações internacionais de recorrer à ameaça ou ao uso da força, quer seja contra a integridade territorial ou a independência política de um Estado, quer seja de qualquer outro modo incompatível com os objectivos das Nações Unidas.

É verdade que a proibição do uso da força coexiste, no direito internacional público, com o reconhecimento de situações nas quais o recurso a acções armadas é permitido a título excepcional. Esse reconhecimento surge logo no preâmbulo da Carta das Nações Unidas, onde é dito que «a força armada não será usada a não ser no interesse comum». A Carta reconhece expressamente duas dessas excepções: o direito à legítima defesa (previsto no artigo 51) e a possibilidade de o Conselho de Segurança autorizar acções armadas para manter ou restaurar a paz e a segurança internacionais (prerrogativa regulada pelo Capítulo VII da Carta e, mais especificamente, pelo artigo 42).

A legítima defesa autoriza que os Estados lancem mão de acções militares para responder a uma violação da proibição do uso da força, isto é, a legítima defesa só é possível em resposta a um “ataque armado” (armed attack, na versão inglesa da Carta das Nações Unidas) ou a uma “agressão armada” (agression armée, na versão francesa da Carta). A acção militar em legítima defesa é um uso legal da força justamente porque tem como objectivo repelir um uso prévio e ilegal da força por parte de outro Estado. A lógica é semelhante ao direito à legítima defesa que as ordens jurídicas nacionais garantem aos indivíduos. Ponto crucial: a permissibilidade da legítima defesa deve sempre ser interpretada de forma conjunta com o artigo 2, alínea 4, da Carta, contribuindo para a construção de uma perspectiva analítica e interpretativa restritiva, empenhada em garantir a proibição do uso da força [43].

Como seria de esperar, o direito à legítima defesa é o argumento mais frequentemente invocado pelos Estados para justificarem acções militares. E foi esse também o argumento que a Rússia invocou para justificar a sua agressão armada contra a Ucrânia. Contudo, a sugestão de Putin e de outros governantes russos de que o uso da força pela Rússia contra a Ucrânia está justificado pelo artigo 51 da Carta das Nações Unidas não tem correspondência com os factos. O artigo 51 diz o seguinte:

Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva no caso de ocorrer um ataque armado contra um Membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança internacionais.

Ora, a Ucrânia não cometeu nem ameaçou cometer nenhum ataque armado contra a Rússia antes do dia 24 de Fevereiro, nem qualquer outro Estado ameaçou fazê-lo. Mesmo que a Rússia pudesse demonstrar que a Ucrânia fez, durante anos a fio, ataques contra os russos e os ucranianos russófonos nas regiões ucranianas de Donetsk e Luhansk (e julgo que não terá qualquer dificuldade em demonstrá-lo), o artigo 51 não permitiria uma acção em legítima defesa colectiva, porque Donetsk e Luhansk não são Estados membros da ONU. De facto, nem sequer se qualificam como Estados à luz do direito internacional público, apesar da sua secessão da Ucrânia e do reconhecimento pela Rússia da sua independência.

As declarações de Putin de que a Ucrânia estava a cometer um “genocídio” contra os russos e russófonos em Donetsk e Luhansk, embora constituam um esforço indisfarçado para justificar o uso da força da Rússia utilizando a linguagem do direito internacional público, também não são apoiadas pelos factos e, em qualquer caso, não dão (nem dariam) à Rússia o direito de iniciar uma invasão da Ucrânia, mesmo que haja provas (ou houvesse provas) inequívocas de serem verdadeiras.

A Convenção sobre o Genocídio (1948/1951) define genocídio como certas acções específicas destinadas a destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, “racial” ou religioso. Não vou aqui discutir se existem provas inequívocas de que a Ucrânia (entenda-se, as forças armadas e as forças paramilitares [denominadas “Guarda Nacional”] da Ucrânia ou o Serviço de Segurança da Ucrânia [SBU, na sigla ucraniana]) da Ucrânia) tenha estado envolvida em qualquer das acções supra-mencionadas e nem vou aqui discutir se existem provas inequívocas de uma intenção de destruir, no todo ou em parte, qualquer grupo na Ucrânia Oriental, na chamada região do Donbass. Esta questão merece uma investigação separada que não tenho os meios de efectuar e que não efectuaria mesmo se os tivesse.

Seja como for, ainda que o governo ucraniano tenha cometido violações dos direitos humanos contra os russos e/ou contra os ucranianos russófonos da região do Donbass, no leste da Ucrânia, nem a Convenção sobre o Genocídio nem a Carta das Nações Unidas autorizam as partes na convenção ou os Estados membros da ONU a usar a força das armas para pôr termo a actos de genocídio ou graves violações dos direitos humanos noutros Estados.

Desafortunadamente (e talvez não seja o fruto do acaso), o texto da Carta das Nações Unidas e a jurisprudência do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) [44], não permitem concluir taxativamente se a legítima defesa pode ser praticada em antecipação a um ataque iminente ⎼ ou seja, se a legítima defesa por meio de um acção militar preventiva ou de uma guerra preventiva é legal ⎼ ou se, pelo contrário, é preciso que um ataque armado ocorra materialmente contra o seu território para que um Estado possa ripostar invocando a legítima defesa.

Mesmo assim, parece ser hoje consensual entre os especialistas de direito público internacional afirmar que um ataque iminente é suficiente para o exercício da legítima defesa. Em 2004, um painel convocado pelo Secretário-Geral da ONU, na altura Kofi Annan, declarou que um Estado ameaçado «pode realizar acções militares desde que o ataque ameaçador seja iminente, que não haja nenhum outro meio de o evitar e que a acção seja proporcional» (par. 188, itálico no original). A Associação de Direito Internacional (ILA), por sua vez, afirmou em 2018 que «há um apoio aparentemente crescente à visão de que o direito à legítima defesa existe em relação a ataques manifestamente iminentes, entendidos de maneira estrita (p.13)» [45]. [itálico no original]

Assim, a permissibilidade da legítima defesa preventiva depende de critérios temporais (“o ataque acontecerá sem demora” ou “esta é a última oportunidade para evitá-lo”) e exige um elevado grau de certeza (“o ataque certamente ou muito provavelmente acontecerá”). Em 1981, por exemplo, o Conselho de Segurança da ONU recusou os argumentos apresentados por Israel para justificar o bombardeio do reactor nuclear iraquiano de Osirak com base num risco nuclear futuro e altamente incerto.

A “legítima defesa preemptiva” (doutrina Bush) não ganhou adeptos. Basta notar que os documentos supracitados a propósito da legítima defesa preventiva são posteriores à Doutrina Bush. Mesmo os EUA deixaram de advogar activamente a figura da “legítima defesa preemptiva”, que desapareceu das estratégias de segurança nacional posteriores. Desse modo, a maioria dos Estados e dos juristas que se ocupam do direito internacional público rejeita, hoje em dia, a legalidade de acções militares preventivas contra ameaças militares que não sejam iminentes.

A Rússia poderá invocar a legítima defesa para justificar a legalidade da sua guerra preemptiva contra a Ucrânia?

Não, por todas as razões já descritas [mas ver P.S. no fim das notas e referências deste artigo]. Não estava iminente, ou sequer em preparação, qualquer ataque da Ucrânia à Rússia. A ameaça nuclear que a Ucrânia representava para a Rússia à data de 24 de Fevereiro de 2022 referia-se ao domínio dos factos realmente possíveis, não ao domínio dos factos actuais. Não existe legítima defesa preemptiva. A acção militar preemptiva é ilegal e ilegítima. A guerra preemptiva é ilegal e ilegítima.

8. Uma guerra ilegal de agressão

Não precisamos de conhecer o direito internacional público para sabermos que a invasão da Ucrânia e a guerra na Ucrânia desencadeadas pelo governo russo de Vladimir Putin são uma agressão criminosa que nada pode justificar (não confundir com “explicar”). Para isso, basta ver a terrível calamidade que tem sido para o povo ucraniano, no seio do qual já provocou, até ao momento em que escrevo estas linhas (22 de Abril de 2022), 5.264 vítimas civis. Este número inclui:

um total de 2.345 mortos (703 homens, 429 mulheres, 44 raparigas e 63 rapazes, assim como 70 crianças e 1.036 adultos cujo sexo é ainda desconhecido); um total de 2.919 feridos (339 homens, 271 mulheres, 61 raparigas e 66 rapazes, assim como 158 crianças e 2.024 adultos cujo sexo é ainda desconhecido).
Nas regiões de Donetsk e Luhansk: 2.344 vítimas (930 mortos e 1.414 feridos). Em território controlado pelo Governo: 1.939 vítimas (851 mortos e 1.088 feridos) Em território controlado pelas autoproclamadas “repúblicas”: 405 vítimas (79 mortos e 326 feridos).
Noutras regiões da Ucrânia (a cidade de Kyiv [Kiev], e as regiões de Cherkasy, Chernihiv, Kharkiv, Kherson, Kyiv, Mykolaiv, Odessa, Sumy, Zaporizhzhia, Dnipropetrovsk, Poltava e Zhytomyr), que estavam sob controlo do Governo quando ocorreram casos a lamentar: 2.920 vítimas (1.415 mortos e 1.505 feridos)[46].

A guerra já provocou também, até ao dia 20 de Abril, cerca de 5 milhões e 85.360 refugiados ⎼ sobretudo mulheres, crianças e seniores ⎼ e 7,1 milhões de deslocados internos, até ao dia 1 de Abril [47], além de tremendas destruições materiais e um número desconhecido de baixas militares de ambos os lados, que será sem dúvida grande, dado o poder mortífero das armas que estão a ser utilizadas.

A invasão e a guerra da Ucrânia são também, embora numa escala muitíssimo menor, uma desgraça para o povo russo, que vai sofrer os efeitos das duras sanções económicas que a União Europeia, Suíça, Reino Unido, Canadá, EUA, Austrália, Nova Zelândia, Japão, Coreia do Sul, e Taiwan decretaram em retaliação contra a Rússia.

Os efeitos negativos desta guerra repercutir-se-ão também em graus diversos, mas em todos os planos (incluindo o plano militar), por esse mundo fora, que é hoje um mundo muito interligado pela internacionalização e transnacionalização das cadeias de produção e abastecimento do sistema capitalista de produção.

Todos os produtos em que a Rússia e a Ucrânia são grandes produtores ou até os maiores produtores mundiais vão escassear e os seus preços vão subir muito e muito rapidamente devido à guerra e às sanções económicas. É o caso de produtos agroalimentares básicos, como os cereais (trigo, milho, cevada, centeio) e os óleos vegetais (com especial destaque para o óleo de sementes de girassol e o óleo de colza/canola), assim como dos produtos alimentares deles derivados (como, por exemplo, farinhas, massas alimentícias, pão, rações para animais). É o caso também dos fertilizantes (azoto/nitrogénio e potássio), dos combustíveis fósseis (gás natural, petróleo e carvão) e de metais como o paládio, a platina, o ouro, o níquel, o alumínio, o cobre e a prata necessários a muitos ramos da indústria transformadora, como, por exemplo, as indústrias automóvel, aeroespacial, siderúrgica, naval, química, farmacêutica, eléctrica, electrónica, construção civil e de maquinaria industrial.

Os trabalhadores assalariados dos países membros da União Europeia (UE) serão os primeiros e maiores prejudicados, nestes países, pelo efeito boomerang das sanções económicas decretadas pelo Conselho Europeu. Mas são também estes trabalhadores os primeiros e maiores interessados em pôr um fim à guerra que se trava na Ucrânia.

A solidariedade com os ucranianos e a ajuda humanitária aos ucranianos são muito importantes. Elas são uma prova de que a maioria dos trabalhadores europeus perfilham o princípio básico da ética agatonista, ainda que nunca tenham ouvido falar de tal coisa [48], tal como o sr. Jourdain da peça O burguês fidalgo de Molière fazia prosa sem o saber. Mas a solidariedade não se esgota na ajuda humanitária e a ajuda humanitária não pode, obviamente, ter outra ambição que não seja a de minorar os efeitos da guerra.

O que poderemos então fazer concretamente, nós trabalhadores, para pôr fim a esta guerra criminosa ? É uma pergunta muito difícil de responder. Julgo que pelo menos podemos começar por dizer que não há nada a esperar, nesse particular, dos métodos e das medidas da União Europeia, dos EUA e da OTAN. Mas esse é um assunto que terá que ficar para a quarta e última parte deste ensaio.

Notas e Referências

[1] Esta afirmação está em linha com outra que tive ocasião de fazer, em nota [a nota 2], na segunda parte deste ensaio: «a geopolítica é o quadro de análise das relações internacionais que as elites dirigentes das sociedades contemporâneas preferem para racionalizar e guiar a sua actuação. Convém ter isto sempre presente quando analisamos os seus planos, as suas iniciativas, condutas e narrativas». Para uma caracterização sucinta da geopolítica, ver a nota 8 na primeira parte deste ensaio.

[2] Por “poder” deve entender-se, no presente contexto, a capacidade de uma instância qualquer (pessoal ou impessoal) de levar alguém (ou um conjunto de pessoas) a fazer (ou a não fazer) o que, entregue a si mesma, essa pessoa (ou esse conjunto de pessoas) não faria necessariamente (ou talvez tivesse feito). Por “poder explícito” deve entender-se, no presente contexto, uma forma de poder dotada de instâncias capazes de emitir explicitamente injunções ratificáveis. (Cf. Cornelius Castoriadis, “Pouvoir, politique, autonomie,” (em Le monde morcelé. Paris: Éditions du Seuil.1990). Por “injunção ratificável” deve entender-se uma deliberação susceptível de ser aprovada/consentida ou reprovada/repudiada mediante exame e debate a priori ou a posteriori. O poder explícito à escala nacional e internacional tem duas vertentes principais: política e económica. A vertente política do poder explícito, nestes dois âmbitos, é a que corresponde à tríade constitucional de Montesquieu: poder legislativo, poder executivo (que seria mais bem apelidado de “governativo”) e poder jurisdicional. A vertente económica do poder explícito, nestes dois âmbitos, corresponde aos poderes análogos dos Conselhos de Administração das empresas privadas (“sociedades comerciais” na terminologia jurídica portuguesa; “sociedades empresárias” na terminologia jurídica brasileira).

[3] A primeira citação foi extraída de John Mearsheimer, The Tragedy of Great Power Politics. (Nova York: Norton and Company, 2001), p.36. A segunda citação foi extraída de John Mearsheimer, Great Delusion: Liberal Dreams and International Realities (New Haven and London: Yale University Press. 2018). Não indico o n.º de página porque a citação foi extraída da edição digital deste livro, que não possui paginação.

[4] Zbigniew Brzezinski, “A Geostrategy for Eurasia’, em Preparing America’s Foreign Policy for the 21st Century, eds. David L. Boren & Edward J. Perins Jr. (Norman, Oklahoma: University of Oklahoma Press, 1999) p. 311.

[5] Em Portugal, a grande maioria dos chamados comentadores residentes (e digo “a grande maioria” porque não tenho a pretensão de os ter ouvido ou lido a todos) que pontificam semanalmente nos jornais comerciais, rádios e estações de televisão, incluindo os poucos que se dizem de esquerda, ocultam cientemente estes factos. Funcionam assim como buracos da memória orwellianos. As excepções tem sido poucas e sobram dedos de uma só mão para as contar.

[6] No romance Mil Novecentos e Oitenta e Quatro de George Orwell, o protagonista, Winston Smith, trabalha no “Ministério da Verdade”, onde tem como função alterar continuamente notícias antigas de jornais para servir os interesses de propaganda do governo. Nas paredes das salas e corredores do edifício do Ministério da Verdade existem dezenas de milhares de aberturas rectangulares protegidas por tampas metálicas. Essas aberturas são apelidadas de “buracos da memória”. Servem para destruir todos os documentos comprometedores. Para isso, basta levantar a tampa de um buraco da memória e atirar para dentro dele o documento que se pretende destruir. É imediatamente sugado por uma corrente de ar que o conduz a um dos muitos incineradores ocultos nas entranhas do edifício.

[7] Para uma breve caracterização da corrente dita “realística” da geopolítica ver a nota [15] na primeira parte deste ensaio.

[8] “Transcript: 2007 Putin Speech and the Following Discussion at the Munich Conference on Security Policy”. Johnson’s Russia List, March, 17, 2014.

[9] Michael Scott, “Putin lashes out at West’s «new arms race»”. Reuters, February 8, 2008.

[10] Jamie Dettmer, “New Arms Race? Putin Boasts of High-Tech Weaponry”, Voa News, March 1, 2018.

[11] “INF: Vladimir Putin threatens to mirror US deployment of nuclear missiles in Europe”, News, DW, 24.10.2018.

[12] “Putin accuses US of raising risk of nuclear war “, Euroactiv.com with Reuters, 21/12/2018.

[13] O Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermédio (formalmente Tratado entre os Estados Unidos da América e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas sobre a Eliminação dos seus Mísseis de Alcance Intermédio e de Menor Alcance), também conhecido como Tratado INF (do inglês: Intermediate-Range Nuclear Forces) foi um tratado internacional sobre o controlo de armas nucleares entre os Estados Unidos e a União Soviética assinado na cidade de Washington, D.C., em 8 de Dezembro de 1987. Firmaram o tratado pelos EUA o então presidente dos EUA, Ronald Reagan, e, pela União Soviética o então secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, Mikhail Gorbachev. Ratificado pelo Congresso dos Estados Unidos em 27 de Maio do ano seguinte, o mesmo entrou em vigor em 1 de Junho de 1988. O acordo previa a eliminação (a destruição) dos mísseis balísticos e de cruzeiro, nucleares ou convencionais, cujo alcance estivesse entre 500 e 1.000 km (para os mísseis balísticos de curto alcance) e a proibição (do fabrico, da detenção e dos ensaios em voo) dos mísseis balísticos cujo alcance estivesse entre 1.000 e 5.500 km. O tratado não se aplicava a mísseis lançados por meios aéreos ou navais. Até a data-limite de 1 de Junho de 1991, prevista no tratado, 2.692 mísseis de curto e médio alcance; foram destruídos — 846 por parte dos Estados Unidos e 1.846 por parte da União Soviética. O acordo permitia a qualquer das partes inspecionar as instalações militares da outra. Contudo, em 20 de outubro de 2018 os Estados Unidos anunciaram sua retirada do tratado. Segundo o presidente americano Donald Trump, os russos tinham vindo a violar os termos do acordo há muitos anos. Esta decisão foi confirmada em 1 de Fevereiro de 2019, quando os EUA, seguidos pela Rússia, decidiram suspender o tratado por 6 meses. Em 4 de Março, o presidente russo Vladimir Putin, num ato de retaliação, suspendeu oficialmente a participação do país no tratado. Os EUA retiraram-se formalmente do tratado em 2 de Agosto de 2019 (Fonte: Wikipédia).

[14] “Putin Threatens US With New Arms Race”. Forces Net. 20th February 2019.

[15] “Expanded Meeting of the Defence Ministry Board”. The Kremlin. Moscow. December 21, 2021 (Disponível aqui).

[16] «Tríade nuclear refere-se à capacidade de lançamento de um arsenal nuclear estratégico, que consiste em três componentes básicos: mísseis balísticos intercontinentais terrestres (MBIT), bombardeiros estratégicos e mísseis balísticos lançados por submarinos (MBLS). O objectivo de ter uma capacidade nuclear de três ramificações é reduzir significativamente a possibilidade de um inimigo destruir todas as forças nucleares de um Estado num ataque inicial. Isto, por sua vez, garante uma ameaça credível de um segundo ataque e, assim, aumenta a dissuasão nuclear de uma nação» (Fonte: Wikipédia).

[17] “Russia Calling! Investment Forum”. The Kremlin. Moscow. November 30, 2021 (Disponível aqui).

[18] “Expanded Meeting of the Defence Ministry Board”. The Kremlin. Moscow. December 21, 2021 (Disponível aqui).

[19] “Vladimir Putin’s annual news conference”. The Kremlin. Moscow. December, 23, 2021 (Disponível aqui).

[20] “Address by the President of the Russian Federation”. The Kremlin. Moscow, February 21, 2022 (Disponível aqui).

[21] Este princípio está vertido em muitos tratados e acordos internacionais. É o caso da Carta de Segurança Europeia, subscrita por 54 países membros da OSCE durante a Cimeira de Istambul, em Novembro de 1999; do Acto Fundador das Relações Mútuas, Cooperação e Segurança entre a OTAN e a Rússia, de 27 de Maio de 1997; da Carta de Paris para uma Nova Europa, de 19-21 Novembro de 1990: e dos Acordos de Helsínquia de 1 de Agosto de 1975, todos subscritos pelos EUA e pela Federação Russa (ou pela União Soviética). Por exemplo, a Carta de Segurança Europeia assevera que os países são livres de escolher os seus próprios arranjos de segurança e as suas próprias alianças, mas acrescenta a cláusula adicional que tais arranjos e alianças «não poderão fortalecer a sua segurança em detrimento da segurança de outros Estados».

[22] As relações de vassalagem existentes no seio da OTAN são um facto reconhecido pelos próprios generais dos Estados-membros da OTAN, como Portugal. Como salientou o general Loureiro dos Santos [que foi Vice-Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas (Portugal) e Chefe do Estado-Maior do Exército], «o interesse nacional dos EUA vê todos os outros Estados como entidades de soberania limitada, guardando a soberania completa apenas para si próprios» (General Loureiro dos Santos, “Regressa o Império Benigno”? Visão, nº 549, 11 a 17 de Setembro de 2003, p. 54).

[23] Para uma caracterização sucinta do idealismo wilsoniano, ver a nota 16 da primeira parte deste ensaio.

[24] Um dos muitos exemplos da hipocrisia e perfídia de Brzezinski foi a sua atitude no Camboja. Os EUA deram dezenas de milhões de dólares de ajuda ao longo dos anos 1980 aos refugiados cambojanos. Ao mesmo tempo orquestraram um programa completo de sanções contra o Camboja porque este estava sob ocupação vietnamita. E para assegurar que Pol Pot e os Khmers Vermelhos combatessem os ocupantes vietnamitas, o governo Carter-Brzezinski ajudou a organizar uma ajuda chinesa contínua. «Encorajo os chineses a apoiar Pol Pot» , disse Zbigniew Brzezinski, o conselheiro de segurança nacional de Carter na altura. «A questão era como ajudar o povo cambojano. Pol Pot era uma abominação. Nunca poderíamos apoiá-lo, mas a China poderia». Na ONU, os EUA, juntamente com a maioria dos países da Europa e da Ásia, deram o lugar do Camboja apenas ao Governo dos Khmers Vermelhos de Pol Pot e, depois de 1983, em coligação com outros grupos anti-Vietnamitas cambojanos. Todas as tentativas até então de descrever o regime dos Khmers Vermelhos como genocida foram rejeitadas pelos EUA como contraproducentes para encontrar a paz. Apenas em 1989, com o início do processo de paz em Paris, a palavra genocídio foi pronunciada em referência a um regime responsável pela morte de mais de um milhão de civis cambojanos (cf. Elizabeth Becker, “Death of Pol Pot: the Diplomacy; Pol Pot’s End Won’t Stop U.S. Pursuit of His Circle”. The New York Times, April 17, 1998).

[25] Zbigniew Brzezinski, The Grand Chessboard (Basic Books. New York, NY, 1997), p. 202.

[26] Ibid., p. 48.

[27] Ibid., p. 149.

[28] Ibid., p. 149.

[29] Ibid., p. 41.

[30] Ibid., p. 41.

[31] Ibid., p.45. É interessante notar que estas ideias da “Eurásia” e da Rússia como “império” (ou “potência global) eurasiática” que Brzezinsky desenvolveu no seu livro, foram igualmente desenvolvidas, no mesmo ano (1997), por um outro geopolitólogo, desta vez russo, chamado Aleksandr Dugin, num livro intitulado Os fundamentos da geopolítica: o futuro geopolítico da Rússia; um livro que alguns alegam ter influenciado a política de Vladimir Putin. Na verdade, há muitas e boas razões para dizer que Dugin é um émulo de Brzezinsky. Um trabalha afincadamente para o engrandecimento da elite dirigente da Rússia; o outro trabalhou afincadamente para o engrandecimento da elite dirigente dos EUA. Aparentemente, a capacidade influenciadora de Brzezinsky foi sempre muito superior à de Dugin, até à data.

[32] Zbigniew Brzezinski, The Grand Chessboard (Basic Books. New York, NY, 1997), pp.201-202; e também ‘A Geostrategy for Eurasia’, em Preparing America’s Foreign Policy for the 21st Century, eds. David L. Boren & Edward J. Perins Jr. (Norman, Oklahoma: University of Oklahoma Press, 1999) p. 56.

[33] Disponível aqui

[34] L. Reichard White. “Is Putin Paranoid?” LewRocckwell.com, March 19, 2022.

[35] Decree of the President of Ukraine n.º392/2020. On the decision of the National Security and Defense Council of Ukraine of September 14, 2020 (Disponível aqui); Decree of the President of Ukraine n.º 121/2021. On the decision of the National Security and Defense Council of Ukraine of March 25, 2021 (Disponível aqui).

[36] Alyona Getmanchuk, “Russia as aggressor, NATO as objective: Ukraine’s new National Security Strategy”. Atlantic Council. September 30, 2020.

[37] Alyona Getmanchuk, op.cit.; Taras Kuzio, “Russo-Ukrainian War: Time for Zelenskyy to turn from populism to pragmatism”. Atlantic Council. October 12, 2020; Taras Kuzio, “The Long and Arduous Road: Ukraine Updates Its National Security Strategy”. Rusi. 16 October 2020; Maciej Zaniewicz. “Ukraine’s New Military Security Strategy”. PISM Bulletin N.º 91 (1787), 5 May 2021.

[38] “Scholz «irritado» por Ucrânia rejeitar visita de presidente alemão”. Diário de Notícias/AFP. 13 de Abril de 2022.

[39] “Ukraine now has neither weapons nor security: Zelensky demands Budapest Memorandum consultations”. Euromaidan Press. February 19, 2022.

[40] The National Security Strategy of the United States. White House, September 2002, p.15.

[41] Loi de Programmation Militaire de la France 2003-2008 (Chap. 3, «Les fonctions stratégiques»), disponível em www.defense.gouv.fr.

[42] Sigo aqui a explicação de Luís Leitão Tomé no artigo “Novo Recorte Geopolítico Mundial: uma ordem uni-multipolar, uma grande guerra e o jogo de «contenções múltiplas»”. Nação e Defesa. Outono-Inverno 2003, N.º 106-2.ª série, pp.112-13.

[43] Theo Peixoto Scudellari & Victor Tozetto da Veiga, “A proibição do uso da força nas relações internacionais: uma introdução #1”. Cosmopolita, 21 de Outubro de 2020.

[44] O Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) é o principal órgão jurisdicional da ONU, criado pelos artigos 92.º a 96.º da Carta das Nações Unidas e composto por 15 juízes independentes eleitos pelo Conselho de Segurança, por recomendação da Assembleia Geral. A verdade é que, embora jurisdicional, o TIJ não tem uma jurisdição obrigatória a nível internacional: só são parte dele os Estados que assim o entenderem e que manifestem vontade para tal. O TIJ tem a sua sede em Haia (Holanda/País Baixo).

[45] Theo Peixoto Scudellari & Victor Tozetto da Veiga, “A proibição do uso da força nas relações internacionais: uma introdução #2”. Cosmopolita, 12 de Novembro de 2020.

[46] Estes números foram fornecidos pelo Office of the High Commissioner for Human Rights (OHCHR) da ONU em 21 de Abril de 2022. O OHCHR salienta que «A maioria das vítimas civis registadas foi causada pela utilização de armas explosivas com uma vasta área de impacto, incluindo o bombardeamento de armas pesadas de artilharia e sistemas de foguetes de lançamento múltiplo, e ataques aéreos e de mísseis» (“Ukraine: civilian casualty update”, OHCH, 21 April 2022).

[47] Estes números foram fornecidos, respectivamente, pelo Alto-Comissário para os Refugiados da ONU [UNHCR na sigla inglesa] (“Ukraine: civilian casualty update”, OHCH, 21 April 2022), e pela Organização Internacional para as Migrações da ONU [IOM, na sigla inglesa] (“7.1 million internally displaced in Ukraine: UN”. Agence France Press/The Guardian, 5 April 2022).

[48] Sobre a ética agatonista, ver a nota 5 na 1.ª parte deste ensaio.

Post-Scriptum. Terminei este artigo em 22 de Abril e estou a escrever este P.S. no dia 11 de Maio. A sua razão de ser é uma palestra de Scott Ritter (11 de Abril de 2022), seguida de perguntas e respostas, de que só ontem tive conhecimento e que pode ser vista aqui. Scott Ritter é um ex-fuzileiro naval, veterano da guerra do Golfo Pérsico (1990-1991), que foi inspector-chefe de armamento (1991-1998) da Comissão Especial das Nações Unidas (UNSCOM na sigla inglesa), criada para garantir que o Iraque cumpria as directrizes relativas à proibição da produção e uso de armas de destruição maciça após a Guerra do Golfo. Ritter ficou conhecido pela sua integridade, bem patente na sua desassombrada declaração de Junho de 1999, que lhe valeu ulteriormente muitos amargos de boca e muitas armadilhas e perseguições legais: «Quando se faz a pergunta, “O Iraque possui armas biológicas ou químicas militarmente viáveis?” a resposta é “NÃO!” É um retumbante “NÃO”. Poderá o Iraque produzir hoje armas químicas a uma escala significativa? Não! Pode o Iraque produzir armas biológicas a uma escala significativa? Não! Mísseis balísticos? Não! É “não” em toda a linha. Assim, de um ponto de vista qualitativo, o Iraque foi desarmado. O Iraque não possui hoje nenhuma capacidade significativa de armas de destruição maciça» (“Interview with Scott Ritter”, American Federation of Scientists, June 24, 1999). O ponto para que quero chamar a atenção é o seguinte. Ritter argumenta que Putin pode invocar o artigo 51.º da Carta das Nações Unidas (legítima defesa colectiva) se conseguir mostrar que a sua invasão da Ucrânia foi feita a pedido das novas Repúblicas independentes do Donetsk e Luhansk para as proteger da agressão da Ucrânia. Não estou de acordo com este argumento, pelas razões que indiquei no corpo principal deste texto. Todavia, reconheço que é a primeira e a única tentativa inteligente de que tenho conhecimento, até à data, de justificar a guerra de Putin com argumentos do direito internacional público. Mas num ponto tenho de dar razão a Rittter neste particular. É quando ele afirma que foi com um argumento semelhante (proteger o direito do Kosovo a ser independente) que os EUA e a OTAN desencadearam a sua “operação militar especial” contra a Sérvia. Com uma diferença muito importante, sublinha Ritter: os crimes que a OTAN alegou terem sido cometidos pela Sérvia no Kosovo eram uma invencionice, ao passo que os crimes que a Ucrânia tem praticado, desde 2014, nessas suas duas regiões secessionistas são bem reais. Por estas e outras razões, o vídeo onde Ritter expõe as suas ideias sobre a guerra na Ucrânia vale a pena ser visto. Ouvirão, possivelmente, coisas com as quais não estão de acordo e que arremetem contra a narrativa da guerra que nos entra pela porta adentro às catadupas, mas que não vos deixarão indiferentes e que desafiarão, espero, a vossa veia crítica. Façam a experiência.

Leia a primeira, a segunda, a quarta, a quinta e a sexta partes deste ensaio.

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