Por Passa Palavra

O Passa Palavra recebeu um documento que evidencia a complexa situação em que se encontram os trabalhadores do serviço público no Brasil e merece algum contexto, comentário e debate público.

Os servidores públicos, a greve e a restruturação do trabalho

Como se sabe, até 1988 servidores públicos eram totalmente proibidos de entrar em greve no Brasil. A Constituição de 1967 proibia explicitamente a greve nos serviços públicos e atividades essenciais[1], e qualquer tentativa de realizá-la era passível de advertência, suspensão de até trinta dias ou rescisão do contrato de trabalho por justa causa[2]. A própria existência de sindicatos de servidores públicos, em qualquer categoria, era proibida. Os mais antigos sindicatos do funcionalismo público existiram naquele período como associações, disfarçando sua verdadeira natureza e impondo-se mais pelos fatos que pela lei.

Acontece que a luta de classes não se deixa enjaular tão facilmente em legalismos. Enquanto trabalhadores da indústria automobilística ganhavam visibilidade com suas paralisações no ABC Paulista no final dos anos 1970, trabalhadores dos serviços públicos por todo o país se engajavam, também, em suas próprias lutas. Deste modo, chegou-se à Assembleia Constituinte de 1987 com alto grau de mobilização entre os trabalhadores do serviço público, resultando daí a garantia a eles, na Constituição de 1988, tanto do direito à livre associação sindical[3] quanto do direito de greve – este último com a ressalva de ser condicionado aos “termos” e “limites” “definidos em lei específica”[4]. Tal lei, como era de se esperar, nunca veio. Enquanto isso, sucessivas greves nos serviços públicos resultavam, pela parte dos sindicatos, em processos e mais processos judiciais, avolumando-se o debate jurídico em torno da legalidade da greve dos servidores públicos.

A situação política, econômica e social, entretanto, também se alterava. Como resposta à onda de lutas e mobilizações dos trabalhadores durante os anos 1970 e 1980, capitalistas investiram maciçamente em tecnologias produtivas e de gestão já no final dos anos 1970, impondo aos trabalhadores mudanças nos processos de trabalho que, nos setores mais dinâmicos da economia e em seguida a lutas muito intensas, pode-se considerar hegemônicas já nos anos 1990. Produção “enxuta” (just-in-time); incorporação intensiva da componente intelectual dos trabalhadores na produção (toyotismo, kanban, gestão “ágil”, etc.); investimentos massivos em logística, telecomunicações e informática; tudo isso recuperou algum conteúdo das lutas dos trabalhadores, extirpando-o de sua radicalidade anticapitalista e sujeitando-o às necessidades da exploração. A própria classe trabalhadora se viu estruturalmente modificada: número cada vez menor de trabalhadores com alta qualificação se via inserido em meio a um número cada vez maior de trabalhadores cujas qualificações iam sendo a pouco e pouco degradadas, premidos pela necessidade de ocuparem postos de trabalho cada vez mais precarizados.

No setor público, entretanto, as garantias estatutárias do funcionalismo se mantiveram relativamente intactas. Estando envolvidos em processos de trabalho com enorme impacto sobre toda a sociedade, os funcionários públicos contam com enorme poder de barganha; podem, por isso, resistir por mais tempo à imposição de certas mudanças em seus processos de trabalho. Além disso, o sistema de indicações políticas para certos cargos de chefia superiores resistiu à instituição da obrigatoriedade do concurso público em 1988, fazendo com que práticas plurisseculares de clientelismo, patrimonialismo e mandonismo sejam outro obstáculo a transformações mais profundas no processo de trabalho. Sob o influxo destas duas forças, tanto os trabalhadores do serviço público quanto o sindicalismo do setor condicionaram-se a formas de luta extremamente burocratizadas, enormemente dependentes das diretorias sindicais e, mais especificamente, de seus departamentos jurídicos. Quando surgem lutas por fora dos cálculos, são rapidamente reprimidas.

Um caso emblemático desta situação é a disputa em torno do próprio direito de greve do funcionalismo público: a conquista de uma geração inteira de servidores é desperdiçada em “greves de pijama”, de um lado, e de outro em disputas no terreno desfavorável do Judiciário. Este é o aspecto que interessa comentar, porque evidencia o extremo grau de burocratização das lutas no funcionalismo público: se, em conjunturas anteriores, os servidores públicos defendiam seus direitos impondo fatos políticos a seus patrões (greves, mobilizações, resistências cotidianas), agora, cercados numa conjuntura desfavorável, passaram a depositar mais confiança no setor jurídico dos sindicatos de suas respectivas categorias que em sua própria força coletiva, para seu próprio prejuízo.

Comentários em torno de um acordo pós-greve no IFSC

O direito de greve dos servidores na visão do Judiciário: a tese do corte de ponto

Nos primeiros anos da década de 1990, o Judiciário buscou conter as greves no funcionalismo público, alegando que o inciso VII do artigo 37 da Constituição de 1988 era uma “regra de eficácia contida”, ou seja, que só poderia começar a valer quando a tal “lei específica” determinasse os “termos” e os “limites” do direito dos servidores públicos à greve. Sindicatos de categorias e lugares diversos recorreram ao chamado mandado de injunção, um processo judicial que busca obrigar o Supremo Tribunal Federal (STF) a “legislar” quando a falta de uma lei federal regulamentadora de direitos constitucionais dificulta o exercício dos próprios direitos em questão. Somente em 2007 passou a vigorar no Judiciário a tese de que, na falta da tal “lei específica”, a Lei de Greve (Lei 7.783/1989) vigente para o setor privado deveria ser aplicada também no serviço público.

Na falta das leis regulamentadoras, e sendo chamado pelos sindicatos a tratar do assunto, o STF fixou ainda outro entendimento ao julgar, em 2016, o Recurso Extraordinário 693.456/RJ. A parte que interessa na decisão é a chamada tese:

A administração pública deve proceder ao desconto dos dias de paralisação decorrentes do exercício do direito de greve pelos servidores públicos, em virtude da suspensão do vínculo funcional que dela decorre. É permitida a compensação em caso de acordo. O desconto será, contudo, incabível se ficar demonstrado que a greve foi provocada por conduta ilícita do Poder Público

Esta tese contém um obter dictum (ou seja, uma parte sem força vinculante):

Sinalização, a título de obiter dictum, quanto à possibilidade de implementação, pelo tribunal competente, de decisão intermediária, que determine o corte parcial e/ou a compensação parcial dos dias de paralisação, em caso de greve de longa duração, em que haja indícios de que o poder público: i) está se recusando a negociar com os servidores, ii) está recalcitrante na efetiva busca de acordo ou iii) pareça beneficiar-se, em termos imediatos, com a permanência da paralisação. Aplicação analógica de precedentes do TST.

A Advocacia-Geral da União, agindo já como advogada do patrão, publicou o Parecer Vinculante nº 004/2016/CGU/AGU, que apresenta quatro teses na mesma linha:

I. A Administração Pública Federal deve proceder ao desconto dos dias de paralisação decorrentes do exercício do direito de greve pelos servidores públicos, em virtude da suspensão do vínculo funcional que dela decorre.

II. O desconto apenas não deve ser feito se ficar demonstrado que a greve foi provocada por conduta ilícita da Administração Pública Federal, e constatada situação de abusividade pelo Poder Judiciário.

III. O corte de ponto é um dever, e não uma opção, da Administração Pública Federal, que não pode simplesmente ficar inerte ante situação de greve.

IV. A Administração Pública Federal possui a faculdade de firmar acordo para, em vez de realizar desconto, permitir a compensação das horas não trabalhadas pelos servidores.

A tese do corte de ponto contra servidores em greve é polêmica nos meios jurídicos, deslanchando uma torrente de artigos a favor[5] e contra[6] o corte de ponto e a compensação, estes últimos argumentando, inclusive, violação da Convenção 151 da Organização Internacional do Trabalho, assinada e ratificada pelo governo brasileiro[7]. Como é favorável à administração federal e encontra respaldo em inúmeros julgamentos semelhantes, formando jurisprudência, já vem sendo incorporada em outras normas, como a Instrução Normativa (IN) nº 54, de 20 de maio de 2021, da Secretaria de Gestão e Desempenho de Pessoal (SGP) do Ministério da Economia.

Frente a esta ofensiva no campo das leis e do Judiciário, e com reduzida capacidade de impor fatos aos patrões, a capacidade de mobilização do funcionalismo público vem caindo. Adaptações e adequações aos “novos tempos” são tratadas como “vitórias”, e assim vão se rebaixando os horizontes.

É neste contexto que surge o documento apresentado ao Passa Palavra, comentado a seguir.

Um documento: o acordo pós-greve para compensação de trabalho no IFSC

O documento a que o Passa Palavra teve acesso, por indicação de leitores, é um “Termo de Acordo para compensação do trabalho decorrente de greve”, assinado em 23 de maio de 2022 por Maurício Gariba Júnior, reitor do Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC), e Elenira Oliveira Vilela, coordenadora-geral do Sindicato Nacional dos Servidores Federais (SINASEFE) – Seção Sindical IFSC. O documento foi publicado pelo próprio SINASEFE/IFSC em seu site, sendo, portanto, um documento público.

O documento foi produzido no contexto da greve nacional na educação federal iniciada em 15 de junho de 2022, por deliberação conjunta do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES Sindicato), da Federação de Sindicatos de Trabalhadores Técnico-Administrativos em Instituições de Ensino Superior Públicas do Brasil (FASUBRA Sindicato) e do movimento estudantil. No próprio site do SINASEFE/IFSC lê-se que, em assembleia híbrida (presencial e virtual) realizada em 07 de julho de 2022, os presentes deliberaram suspender a greve, transformando-a em “estado de mobilização”.

O Passa Palavra procurou trabalhadores do IFSC para comentar o assunto. Uma trabalhadora concordou em comentar o documento sob condição de anonimato, pois, segundo ela, “as greves no IFSC sempre foram muito burocratizadas, assim como a perseguição pós-greve sempre existiu”.

Para esta trabalhadora, “o discurso do sindicato é de que no acordo favorece uma reposição por tarefas e não por horas, mas o que de fato ocorre é a total individualização da reposição e do processo pós-greve”.

De fato, no site do SINASEFE/IFSC encontra-se a seguinte orientação:

Ficou definido que o Sinasefe aceitará o convite da Gestão Máxima do IFSC, de se reunir no dia 22 de julho para dirimir eventuais dúvidas suscitadas por servidoras e servidores na elaboração dos Planos de Trabalho, bem como para debater outros aspectos da reposição que precisam ser melhor delimitados – ainda que este convite tenha atrasado muito em relação à primeira proposta do Sinasefe.

Cabe destacar que o Termo de Acordo assinado entre Sinasefe e Reitoria é o documento válido até o momento, e nele consta a condição primordial de reposição, que é a de conteúdos (para docentes) e atividades represadas (para técnicos), afastando qualquer remota possibilidade de reposição por horas.

Nossa reposição nessa greve NÃO SERÁ POR HORAS, e esse acordo feito com a Reitoria nos garante que nenhum Câmpus poderá cobrar esse formato de reposição. Em caso de qualquer cobrança indevida, solicitamos que contato imediato seja feito com o Sinasefe para que a Direção da Seção Sindical tome providências que protejam os direitos das trabalhadoras e trabalhadores do IFSC.

O destaque em letras garrafais é do próprio SINASEFE/IFSC. O texto acima expressa que o SINASEFE/IFSC parece entender a compensação por conteúdos ou atividades represadas como uma vitória, pois apresenta-a como “condição primordial de reposição”, contrastando-a com a “reposição por horas” que, a julgar pelo tom e teor do texto, deve estar sendo cobrada por certas chefias no IFSC: como diz a trabalhadora consultada pelo Passa Palavra, “parece que os problemas com a reposição já começaram localmente e Reitoria se reuniu novamente com a direção do sindicato”.

Ora, qualquer que seja a modalidade, os acordos de compensação de horas paralisadas, vistos em um contexto mais amplo, fazem parte de uma longa série de derrotas. Sim, é verdade, para um trabalhador individual parecerá enorme vitória esfregar na fuça da chefia um documento que lhe garante cobranças por tarefas, não por tempo de trabalho. Por outro lado, se a permanência da derrota é pintada como vitória a cada nova iteração, a luta de classes permanece estagnada num mesmo patamar. Pouco se terá contribuído para evidenciar como os problemas sentidos por um dado indivíduo se ligam, de uma ou outra maneira, a problemas mais gerais; como estes problemas particulares se inserem num contexto geral, exigindo-lhe outras formas de ação; e como o tempo imediato se insere no tempo histórico, alargando a consciência. Derrotas devem ser tratadas pelo que são, se se quer vitórias no futuro.

Outro aspecto que merece comentário é a alegada individualização, que aparece, realmente, no acordo firmado entre SINASEFE e IFSC:

CLÁUSULA TERCEIRA – DOS PLANOS DE TRABALHO

A compensação de que trata a cláusula segunda deste termo consistirá, no caso dos servidores técnicos administrativos, na reposição do trabalho represado no período de paralisação ou greve, e, no caso dos docentes, na reposição do conteúdo que deixou de ser ministrado nos dias de paralisação, bem como no cumprimento da quantidade de dias letivos previstos na Lei de Diretrizes e Bases – LDB pelo Campus (e não por unidade curricular), ainda que para isso seja necessária à reorganização do calendário letivo de cada Campus.

Parágrafo primeiro. Os servidores técnicos administrativos ou docentes que aderirem à paralisação ou greve deverão elaborar, em conjunto com a chefia imediata, plano de trabalho visando à reposição de que trata esta cláusula, devendo o plano estabelecer o prazo limite para cumprimento do trabalho e tarefas acordadas, de modo a garantir a eficiência no serviço público.

Parágrafo segundo. O plano de trabalho é individual e obrigatório para o servidor que aderir à paralisação ou à greve, e deverá ser apresentado no prazo máximo de 15 (quinze) dias após término da paralisação ou greve.

Parágrafo terceiro. Na elaboração do plano deverá ser respeitada a jornada de trabalho atual do servidor e o limite máximo diário de 2 (duas) horas.

Parágrafo quarto. Grupo de trabalho paritário, formado por integrantes indicados pela Autarquia Acordante e pelo Sindicato Acordante, será constituído para, respeitado os termos deste acordo, elaborar o modelo padrão de plano de trabalho que deverá ser utilizado pelos servidores e pelas chefias.

CLÁUSULA QUARTA – DOS PLANOS DE COMPENSAÇÃO PARA DOCENTES

A compensação dos docentes consistirá na reposição do conteúdo que deixou de ser ministrado nos dias de paralisação, bem como no cumprimento da quantidade de dias letivos previstos na Lei de Diretrizes e Bases – LDB pelo Campus (e não por unidade curricular), ainda que para isso seja necessária a reorganização do calendário letivo de cada Campus.

Pelo acordo, cada trabalhador deverá reunir-se com suas chefias imediatas para construir um plano de trabalho. Não é difícil deduzir quanta coação se esconderá sob a justificativa de “garantir a eficiência no serviço público”, ainda mais quando, ao construir os tais planos de trabalho, cada trabalhador precisará negociar diretamente com a chefia, sem qualquer assistência de quem quer que seja. Não é difícil deduzir, também, os cálculos que cada trabalhador fará antes de entrar em atrito com as chefias, de organizar-se em seu local de trabalho, de mobilizar-se à revelia do calendário decidido previamente pelo SINASEFE/IFSC. O sindicato coloca-se à disposição dos trabalhadores para garantir o respeito aos termos do acordo, como visto; mas fica difícil para o trabalhador provar a coação, o que, em temos de dominância do jurídico sobre a ação sindical, tornará até mesmo a denúncia junto ao sindicato um ato de ousadia, passível de assédio e represálias.

Por que tratar a questão nestes termos? Por uma observação perspicaz, embora temerosa, da mesma trabalhadora da UFSC com quem o Passa Palavra dialogou: “É a primeira vez que vejo isso ocorrer no IFSC, a reposição ser decidida pelas cúpulas antes da greve, num documento que supostamente valerá para as próximas mobilizações”.

Realmente, no corpo do documento encontra-se uma cláusula neste mesmo sentido:

CLÁUSULA SEGUNDA – DO OBJETO

O objeto do presente acordo é a compensação das horas não trabalhadas em razão de paralisação ou greve realizada pela categoria representada pelo Sindicato Acordante, incluindo as paralisações dos dias 28/04/2022 e do dia 1º/06/2022, e eventuais novas paralisações que venham a ocorrer, desde que devidamente notificada a Autarquia Acordante pelo Sindicato Acordante com antecedência mínima de 72 horas.

Parágrafo único. Tão logo seja finalizado o movimento grevista, o Sindicato Acordante deverá comunicar o dia do retorno às atividades laborais.

O texto do acordo assinado dá a entender que poderá ser usado em greves futuras, mesmo tendo sido criado para lidar com a reposição de horas não trabalhadas durante a greve mais recente. É como se fosse um “precedente”, um “padrão”, uma “regra” a ser observada em mobilizações futuras. Não é um ponto fora da curva em meio ao sindicalismo dos servidores públicos, dadas as exigências da legislação sindical e os constrangimentos judiciais, mas não deixa de ser o que é: um verdadeiro pacto de boa vizinhança entre o SINASEFE/IFSC e a reitoria do IFSC.

Algumas explicações para este “pacto” podem ser encontradas na convergência de perfis entre o atual reitor do IFSC, Maurício Gariba Júnior, e a atual presidente do SINASEFE/IFSC, Elenira Oliveira Vilela. Não por causa de qualquer coisa errada que tenham feito, mas pelas posições que ocupam atualmente, e que ocuparam ao longo dos anos. Não, digamos, por terem feito qualquer coisa ilegal, mas precisamente por agirem na mais estreita legalidade durante toda sua carreira.

Comentários em torno de um acordo pós-greve no IFSC

O acordo de compensação e a porta giratória

Vejamos primeiro o currículo de Maurício Gariba Júnior, por ser, dos dois, o mais conhecido, por razões, aliás, alheias à sua vontade.

De acordo com seu currículo Lattes, Gariba é engenheiro elétrico formado pela UFSC em 1983, com mestrado e doutorado em temas ligados à engenharia da produção. Professor concursado do IFSC desde 1989, a partir de meados dos anos 1990 transitou por vários cargos de gestão no campus Florianópolis até ser eleito reitor do IFSC em 2019. A pletora de titulações acadêmicas, formações complementares, projetos de pesquisa e extensão, produção técnica e bibliográfica, participações em bancas de trabalhos de conclusão e comissões julgadoras, participações em eventos e orientações indicam tratar-se de um profissional experiente, altamente gabaritado e requisitado.

Sua eleição para a reitoria do IFSC foi marcada por polêmica: o então ministro da Educação, Abraham Weintraub, impediu-o de tomar posse, sob a alegação de estar em aberto uma apuração da Controladoria Geral da União (CGU) derivada de sindicância investigativa instaurada pela então reitora do IFSC, Maria Clara Schneider, em que Gariba era acusado de irregularidades em sua gestão quando diretor do campus Florianópolis do IFSC por causa da instalação inadequada de catracas eletrônicas que teriam custado R$ 68,3 mil. Tal sindicância inseriu-se no contexto de uma ofensiva de Weintraub contra a eleição de reitores de universidades e institutos federais ideologicamente em desalinho com a agenda do governo federal, que envolveu, além de Gariba e o IFSC, reitores eleitos para o Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN), Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca do Rio de Janeiro (CEFET-RJ), Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA) e pelo menos outras oito instituições federais de ensino. O próprio presidente Jair Bolsonaro admitiu usar critérios de afinidade ideológica para vetar a posse de reitores considerados por ele como “militantes”. Gariba não teria entrado na mira do governo Bolsonaro e seus aliados se fosse alguém alinhado; com efeito, em seu próprio currículo Lattes, Gariba afirma ter sido coordenador-geral do SINASEFE/IFSC entre 1999 e 2000, de onde é possível inferir que se trata de alguém politicamente situado à esquerda.

Indefinidamente suspensa a posse de Gariba, foi nomeado como reitor pro tempore André Dala Possa, ex-pró-reitor de Extensão e Relações Externas sob a gestão de Maria Clara Schneider. Protestos de estudantes em favor da posse de Gariba, e contrários à intervenção do MEC sobre o IFSC, foram respondidos com processos e perseguição policial. Em 11 de junho de 2021 a CGU arquivou a investigação, porque, segundo parecer da própria CGU, Gariba teria adotado todas as medidas a seu alcance para instalar e colocar em uso os equipamentos adquiridos, apesar de não ter sido possível integrar as catracas eletrônicas com o sistema do IFSC. Com o arquivamento da investigação, Gariba foi empossado como reitor do IFSC, fato comemorado por muitos como “vitória da democracia” (ver aqui, aqui e aqui).

O currículo de Elenira Oliveira Vilela, cerca de vinte anos mais jovem que Gariba, não foi marcado por eventos desta natureza, mas é igualmente impressionante.

Segundo seu Lattes, Elenira Vilela é licenciada em Matemática e mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); afirma ter sido “impedida de concluir o doutorado em Engenharia Mecânica na USP, na linha de Conforto Térmico”, porque “Completados todos os créditos e aprovada na proficiência em inglês exigida para a obtenção do título de Doutora, ao ficar doente, e depois de aprovado o trancamento por motivo de doença pelo Programa, foi excluída do programa por deliberação da Pró Reitoria de Pesquisa sob alegação de que aluno DINTER [Doutorado Interinstitucional] não teria autorização para ficar doente”.

Se seu Lattes é menos extenso, nem por isso Elenira Vilela foi menos ativa: no site de sua candidatura a vereadora de Florianópolis em 2020, além de se apresentar como professora atuante desde 1995, Elenira esculpiu a própria vida como um processo de lutas.

Filha de militantes da resistência à ditadura, foi nomeada em homenagem a Helenira Rezende de Souza Nazareth (1944-1972), militante do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) desaparecida em meio à repressão contra a guerrilha do Araguaia. Aos 12 anos, entrou no movimento estudantil, de onde participou das passeatas pela derrubada do então presidente Fernando Collor de Melo. Na universidade, participou do diretório acadêmico de Matemática e do Diretório Central de Estudantes (DCE) da Universidade Federal Fluminense (UFF), do DCE e da Associação de Pós-Graduandos (APG) da UFSC e da União Catarinense de Estudantes (UCE). Já formada, trabalhando como professora, foi coordenadora de Matemática da rede municipal de ensino de Florianópolis, participou de eleições para diretores escolares e da construção de conselhos escolares, integrou o Conselho Municipal de Educação e participou de “congressos, debates, conselhos, assembleias, mobilizações e greve tanto quando estava na base do SINTRASEM quanto no SINTE”, sindicatos de professores municipais e de escolas particulares em Florianópolis. Num curriculum vitae tão extenso, importa recortar que Elenira Vilela entrou no IFSC por concurso em 2010, tendo sido eleita para a diretoria do SINASEFE/IFSC entre 2010 e 2011.

As trajetórias pessoais do reitor do IFSC e da coordenadora-geral do SINASEFE/IFSC não são analisadas, aqui, em busca de faltas ou ilegalidades. Pelo contrário; sob um ponto de vista sociológico, não de um ponto de vista jurídico, interessa também o que fazem no âmbito da mais plena legalidade, porque interfere na dinâmica da luta de classes. Da mesma forma, a pessoa de cada um dos dois não é o objeto das críticas e comentários, mas sim o lugar que ocupam e as funções que desempenham.

Que tem tudo isso a ver com o “Termo de Acordo para compensação do trabalho decorrente de greve”? Analisando seu conteúdo, o contexto em que foi produzido e a trajetória de vida dos signatários, tal documento apresenta-se como excelente exemplo de “porta giratória”: enquanto a versão mais conhecida desta prática se refere à circulação de gestores entre Estado e empresas, o que se vê a partir do documento em análise é um caso de circulação de gestores entre Estado e sindicato.

Gariba, ex-coordenador-geral do SINASEFE/IFSC, gestor universitário tarimbado e hoje reitor, assina acordo com Vilela, militante de longa data e atual coordenadora-geral do SINASEFE/IFSC, em termos que, sob o manto da “democracia”, do “diálogo” e da proteção aos direitos do trabalhador, contribuem para atomizar os trabalhadores do IFSC, para induzi-los a não entrar em atrito com suas chefias imediatas, para que evitem mobilizações alheias ao calendário sindical. É de menor importância saber se Gariba e Vilela foram contemporâneos na diretoria do SINASEFE/IFSC, porque o percurso de ambos na coordenação geral do sindicato, em especial o de Gariba, permite-lhes conhecer, por assim dizer, “os dois lados do balcão”. Na opinião da trabalhadora do IFSC com quem o Passa Palavra dialogou, na eleição de 2019 para a reitoria “Gariba era tido como um candidato de ‘esquerda’, sempre apoiado pelo sindicato, assim como por ex-sindicalistas que, como ele, passaram a circular por cargos de gestão institucional, na Direção do Campus Florianópolis etc.” Reforça tal impressão o fato de o SINASEFE/IFSC ter participado ativamente na luta pela confirmação de Gariba no cargo de reitor, entendida como parte de uma luta mais ampla de resistência às intervenções do governo Bolsonaro.

Existe alguma ilegalidade nisso tudo? Não. Existe alguma imoralidade nisso tudo? Também não. Lei e moral, entretanto, não costumam ser boas bússolas na luta de classes, porque há outros interesses mais terrenos em jogo. Afastando esses dois elementos, procedimento tanto mais necessário em tempos de “bem contra o mal”, observa-se que, para “fazer o bem”, adequando-se o SINASEFE/IFSC a um contexto de fortes constrangimentos jurídicos e políticos em meio a um governo fascista, o resultado foi o reforço da fragmentação e dispersão dos trabalhadores, e da circulação de gestores entre Estado e sindicato. Nos dois casos, e apesar de toda boa vontade das partes envolvidas no que diz respeito à defesa dos direitos dos trabalhadores, é a coletividade dos trabalhadores do IFSC quem sai prejudicada. Não pelo que foi dito e feito, mas como externalidade negativa que se impõe nas entrelinhas do que foi dito e feito. É a tais entrelinhas que se deve, também, ter atenção, mesmo nos contextos mais adversos da luta de classes, porque condicionam o porvir. Entre acordos rebaixados e portas giratórias, trabalha, incansavelmente, a velha toupeira.

Notas

[1] Constituição Federal de 1967, art. 157, § 7º.

[2] Decreto-Lei n° 1.632, de 04 de agosto de 1978, art. 3º, incisos I a III.

[3] Constituição Federal de 1988, art. 37, VI.

[4] Constituição Federal de 1988, art. 37, VII.

[5] CARVALHO, Hannah. O custo político-social da greve do servidor público e o julgamento do recurso extraordinário 693.456/RJ. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22 , n. 4955, 24 jan. 2017 . Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55307. Acesso em: 02 ago. 2022;

[6] SILVEIRA MARTINS HÜBNER ADVOGADOS. Direito de greve: os 3 golpes do STF nos servidores públicos. Disponível em: https://www.smh.adv.br/direito-de-greve-golpe-nos-servidores-publicos/. Acesso em: 02 ago. 2022; SIQUEIRA, Gustavo S. O STF no Egito: greve e História do Direito no Recurso Extraordinário n.º 693.456/RJ. Revista Direito e Práxis [online]. 2019, v. 10, n. 2, pp. 1016-1045. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2179-8966/2019/39637. Epub 27 jun. 2019. ISSN 2179-8966. Acesso em: 02 ago. 2022; CUNHA, Piaza Merighi da. Análise econômica do direito e direito do trabalho: uma análise sobre o Recurso Extraordinário 693.456 e o ônus econômico ao direito de greve do servidor público no Brasil. Revista Electrónica de Direito – RED, 2017, nº 2. Disponível em: https://cije.up.pt/download-file/1590 . Acesso em 02 ago. 2022.

[7] BATISTA, Vera. Novas regras inibem o direito de greve dos servidores brasileiros. Correio Braziliense, 12 jun. 2021. Disponível em: https://blogs.correiobraziliense.com.br/servidor/novas-regras-inibem-o-direito-de-greve-dos-servidores-publicos/ . Acesso em: 02 ago. 2022.

As obras que ilustram este artigo são do artista venezuelano Carlos Cruz-Diez (1923 – 2019).

3 COMENTÁRIOS

  1. Pode parecer um comentário inútil, mas esse texto merece palmas. Além disso, como no texto de autoria do João Bernardo sobre o filme “A onda” publicado nesse site, me senti quase sem fôlego e, ao mesmo tempo, com vontade de atravessar esse girar constante em espiral que é a luta social. Fica aqui, então, a forte solicitação para que mais textos como esse, de análise geral e particular, sejam publicados – para que nossa formação como trabalhadores (sou um deles, ex-classe média baixa, universidade, pós e trabalhador de estado e áreas abandonadas) prossiga!

  2. Wo aber Gefahr ist, wächst / Das Rettende auch (Mas onde está o perigo / cresce também o que salva) – HOLDERLIN

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