Paris é uma festa?

Por Cridom

 

Lá se vão pouco mais de sete meses em Paris na mesma toada que outros tantos brasileiros, brazucas, batendo cabeça aqui e ali, vivendo da mão para a boca, correndo atrás de trabalho quase o tempo todo. Um dia tem serviço no outro não tem. Às vezes até consegue um contrato de trabalho por 30 dias seguidos, às vezes fica um, dois, três meses sem conseguir trabalhar. Quase todo mundo na condição de sem-papel e se passando por português, usando documentos falsos portugueses, a conhecida identidade tabajara que custa entre 80 e 200 euros a depender do vendedor. Já conheci um brazuca que comprou uma dessas de um policial daqui, outros compraram por aqui mesmo, ou ela vem do Brasil, ou da Grã-Bretanha pelos correios daqui, a La Poste; é coisa que em todo canto aqui se acha; anúncios dessas à venda a gente sempre encontra em dezenas de grupos de Whatsapp de brasileiros que estão na França. Só o que se passa nesses grupos já dariam textos e mais textos. Tem de tudo: gente buscando tudo que é tipo de informação sobre como se ajeitar por aqui, abrir conta em banco, ter um chip de celular com número daqui, qual supermercado é mais barato, lugares para passear, comer, comprar roupas de festa ou roupas baratas, um advogado que fale o português, encontrar uma feira, uma assistente social que fale o português, como declarar imposto, fazer um cartão para ir ao médico, um cartão de transporte com tarifas mais baratas para gente comprovadamente pobre e necessitado, abrir conta em banco, matricular os filhos nas escolas, conseguir assistência social, roupas, alimentos, um quarto, uma casa, ou uma vaga numa casa para morar com mais cinco ou dez pessoas, como se legalizar aqui, uma igreja evangélica para frequentar ou uma para indicar; nunca vi tanto brasileiro evangélico falando de suas igrejas, seus propósitos com Deus, suas conversões, seus pastores e suas pastoras, e convidando tudo que é brasileiro para as suas igrejas. Realmente tem de tudo nos grupos, mas nada se compara com a busca por um trabalho qualquer. E toda semana tem gente se mobilizando para ajudar uma pessoa ou uma família inteira que está passando fome, precisa de emprego urgentemente, precisa de roupas. Gente que já está buscando roupa no lixo ou prestes a ir morar na rua com os filhos pequenos. Tudo isso é assunto nos locais onde trabalhamos: escritórios onde fazemos faxina, limpamos mesas, lavamos vidros; canteiros de obras onde fazemos a faxina pesada, retiramos entulhos, levantamos escritórios, demolimos estruturas, retiramos lixos, lixamos e pintamos paredes, construímos ou reformamos casas. Milhares de pessoas trabalhando sem contrato algum ou com contratos precários e temporários. Em muitos casos só recebe se trabalhar e só trabalha quando o patrão chama. Se não há trabalho, ficamos em casa a espera da chamada e não ganhamos nada. E assim vamos vivendo e trombando com gente do mundo todo. Se há um lugar no mundo em que realmente se concentram pessoas do mundo inteiro esse lugar é Paris, a grande Paris inteira, seus trens, seu transporte público, os vestiários e os refeitórios das obras e seus canteiros lotados dessa gente pobre, simples, comum, onde talvez ainda seja possível encontrar aqueles nos quais a esperança da transformação radical dessa sociedade possa ser depositada, essa gente que, no caso dos brasileiros, principalmente, não pertence à cultura do universo acadêmico brasileiro e nunca a pertenceu, não está o tempo todo preocupada com identidades, com o politicamente correto, com o gênero neutro, com a vitória de um santo para presidente do Brasil. Essa gente que como tantos outros milhares que vieram de outros cantos tem preocupações mais urgentes, às vezes só tem um pão, uma baguete daqui para almoçar e uma água da torneira para beber. Às vezes nem baguete tem e nem no refeitório fica. Às vezes fica e ganha um pouco de comida dos colegas. Às vezes alguém até busca um lanche de baguete para o colega que não tem nada para comer na obra. Tristeza que não tem fim. Lugares sujos, sem estrutura adequada para se sentar, comer, descansar, gente trabalhando sem equipamentos de segurança, comendo poeira o dia todo; às vezes não tem nem água e banheiro no local de trabalho. Essa Paris não fura a bolha, não aparece ao lado da Paris que é bela, que é cheia de festas, moda, arte, alta cultura. Essa gente de todos os cantos, tantas pessoas que lhes faltam dentes na boca, que pula catraca no transporte público quase todo dia e quase todo dia tem que andar esperta com os fiscais, fugir dos fiscais e da polícia, fugir de uma multa de 50 euros por pular uma catraca. Essa gente que trabalha doente, com covid. Já cheguei a trabalhar um mês inteiro ao lado de um iorubá da Nigéria que tinha uma ferida na testa que vazava o tempo todo. Quando ele não estava se esforçando para vencer as atividades da faxina pesada estava secando a ferida. O mundo dos sem-papel e do trabalho pesado ou precário aqui está repleto de miseráveis. E acho até que os brasileiros não estão no topo da lista. Não os vejo pulando tantas catracas e nem atacando geladeiras e armários das empresas quando o patrão ou o chefe não estão vendo. Coisa comum é tanto a busca por qualquer alimento quanto a resistência passiva ao trabalho, enrolar o máximo que pode e assim suar e sofrer menos, carregar pesos em dois ou até em grupo quando se poderia carregar sozinho. Já que temos que trabalhar muito para ganhar pouco ou quase nada, então vamos poupar esforços onde e quando der. Resistência coletiva eu ainda estou para ver. Até hoje só vi uma manifestação de rua de negros africanos sem-papel. Nada mais que isso. Já rodei por dezenas de locais de trabalho e nem com gente de qualquer sindicato esbarrei ou peguei um panfleto de um grupo, um sindicato, um partido que seja. Nunca trombei com um piquete, uma obra paralisada, uma greve da construção civil ou de faxineiros, limpadores de vidros; nada, nada. Parece que tudo está por ser construído. Não é nem começar do zero, talvez seja começar do menos dez. Para toda essa gente Paris não é uma festa. Paris é um ninho de miseráveis.

 

A arte que ilustra o texto é da autoria de Hieronymus Bosch (1450-1516).

1 COMENTÁRIO

  1. Cridom, belo texto… Paris não é uma festa. Nem Rio, nem São Paulo são festa. O ninho de miseráveis é transnacional, posto que o capital é universal.

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