Por Passa Palavra

Translated into french and english.

O êxtase das primeiras horas confirmou o que já se esperava: a derrota de Bolsonaro e a vitória de Lula nas eleições de 2022, antecipada por praticamente todas as pesquisas de intenção de voto desde que Lula voltou ao tabuleiro eleitoral. O que não podia ser antecipado, pelo menos não antes da votação de 2 de outubro, é que essa vitória seria apenas formal, meramente numérica, ficando Lula à frente de Bolsonaro por meros 2,1 milhões de votos, ou seja, 1,8% dos votos válidos.

Em vez de contestar o resultado das eleições e alegar imediatamente a ocorrência de fraudes, como vinha dando demonstrações de que faria, Bolsonaro manteve-se inicialmente em silêncio. É que, com o grande êxito do bolsonarismo na votação de 2 de outubro, abriram-se a Bolsonaro duas vias: a) a da política habitual, no parlamento, onde dispõe da maior bancada, e b) a do radicalismo de rua. É nesta bifurcação que se entende o silêncio de Bolsonaro, deixando cada uma destas vias afirmar-se perante a outra, numa espécie de seleção natural.

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A análise dos resultados da votação de domingo, 30 de outubro, confirma que o bolsonarismo — mesmo sem Bolsonaro na presidência, e ainda que ele opte pela via institucional, conservadora — desfruta de um apoio popular muito mais amplo do que se imaginava.


Lula venceu em 3.123 municípios no segundo turno; foram 3.376 municípios no primeiro turno. Ou seja, Lula “perdeu” 253 municípios, 250 dos quais foram “conquistados” por Bolsonaro, restando 3 onde ambos empataram. Em algumas cidades a diferença entre ambos foi muito pequena, de menos de 0,1%. O aumento na quantidade de votos recebidos por ambos os candidatos, comparando o primeiro e o segundo turno, foi maior para Bolsonaro em todos os estados do país, e em mais de um estado Lula perdeu votos: no Amazonas Lula perdeu 16,3 mil votos, no Amapá foram 7,9 mil, no Acre 7,5 mil e em Roraima 1,6 mil. Mesmo nos estados em que Lula aumentou a quantidade de votos relativamente ao primeiro turno, Bolsonaro conseguiu obter mais votos.

Apesar disso, seis governadores apoiados ou que declararam apoio a Lula no segundo turno foram eleitos, contra cinco bolsonaristas. Contudo, isto apenas consolidou a vantagem de Bolsonaro, que conseguiu eleger oito candidatos a governador, contra quatro apoiados por Lula no primeiro turno. Evidentemente essa força eleitoral é fruto também do uso sem precedentes da máquina pública na campanha bolsonarista, contando com coações patronais, compra de votos e os mais variados expedientes autoritários. E é possível aventar que parte dessa base institucional bolsonarista troque de lado pela conveniência política.

Entretanto, parece-nos claro que a votação de 2 de outubro já havia antecipado a derrota atual, o desaparecimento da esquerda, ao passo que a votação de 30 de outubro, a mais apertada desde a redemocratização, serve agora para ativar a base radical do bolsonarismo.

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Na manhã do dia 31 de outubro a esquerda e os “progressistas”, ainda de ressaca após o resultado positivo — para o centro — depararam-se em praticamente todos os Estados do país com bloqueios de estradas, feitos principalmente por caminhoneiros. Em alguns lugares, barricadas de pneus em chamas; em outros, caminhões sendo utilizados para barrar o trânsito, geralmente nos dois sentidos das rodovias. Ônibus vindos da região Nordeste, a única região onde Lula obteve a maioria dos votos em todos os estados, eram parados e os passageiros hostilizados.

Os caminhoneiros responsáveis pelos bloqueios pretendem impedir a transferência do poder a Lula e garantir a permanência de Bolsonaro no poder em 2023, ou seja, sem a necessidade de novas eleições e, se necessário, com a intervenção das Forças Armadas. Vale ressaltar, em aplicativos de trocas de mensagens, os membros do movimento afirmam que sua luta não é apenas em prol de Bolsonaro, mas de “algo maior”, o “futuro do Brasil”. Misturam-se, à exigência de manutenção de Bolsonaro no poder, pautas de caráter nacionalista e religioso, o anticomunismo e o apelo para que “o Brasil não se torne uma nova Venezuela”. Num panfleto circulando em grupos do aplicativo Signal, o autointitulado Movimento Nacional de Resistência Civil alega ter por objetivo a “impugnação imediata das eleições, destituição dos responsáveis do TSE [Tribunal Superior Eleitoral] e STF [Supremo Tribunal Federal] que promovem a desordem institucional com decisões ilegais, apoiando ou exigindo do Presidente da República a aplicação do Art. 142 da Constituição Federal — GLO: Garantia de Lei e Ordem — regulamentado pelos artigos 15 e 16 e Lei Complementar 97/99”. O art. 142 da Constituição Federal brasileira não autoriza, obviamente, o uso das Forças Armadas para impedir a transferência de poder após as eleições. Por sua vez, as operações de Garantia da Lei e da Ordem, em tese, só podem ser usadas contra “atos ou tentativas potenciais capazes de comprometer a preservação da ordem pública ou ameaçar a incolumidade das pessoas e do patrimônio”. Ou seja, para que esse instrumento repressivo fosse utilizado de acordo com a sua finalidade legal e constitucional, teria de ser aplicado contra os bloqueios de rodovias pelos bolsonaristas.

Na verdade, as atuais manifestações já vinham sendo articuladas desde antes do segundo turno em grupos bolsonaristas nas redes sociais, inclusive por militares da reserva, sem participação de entidades envolvidas na greve de caminhoneiros de 2018. Esse fato tem sido sublinhado por lideranças daquela greve, como Wallace Landim, o Chorão, presidente da Associação Brasileira dos Condutores de Veículos Automotores (ABRAVA), Carlos Alberto Litti Dahmer, diretor da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes e Logística (CNTTL) e José Roberto Stringasci, presidente da Associação Nacional de Transportes do Brasil (ANTB), que reconheceram a vitória de Lula e se opuseram aos bloqueios.

Ocorre que, ao que tudo indica, diante daquelas duas possíveis linhas de ação, Bolsonaro buscou testar a força do radicalismo de rua, replicando a mesma tática empregada pelos caminhoneiros em 2018, ainda que sem o apoio das lideranças sindicais dos caminhoneiros. É preciso lembrar que os protestos golpistas patrocinados por Bolsonaro durante todo o seu governo foram sendo progressivamente acuados pelo Poder Judiciário, tendo impactado muito menos sobre a política, a economia e o cotidiano do que a greve de caminhoneiros de quatro anos atrás.

Esta greve, ocorrida entre 21 e 30 de maio de 2018, teve na época fortes impactos econômicos, levando a uma queda de 38,7% na média diária de exportações e 31,8% na média diária de importações. Além disso, provocou uma queda de 20,2% na produção de veículos leves, caminhões e ônibus, gerou escassez de produtos de primeira necessidade, fazendo os preços aumentarem em média 1,11% entre maio e junho, e uma redução nas projeções de crescimento econômico, de 2,46% para 1,76% (projeções posteriormente confirmadas, quando se aferiu um crescimento de 1,8% naquele ano). Levou, por fim, a um aumento de 23,3% no risco-país e, por conseguinte, a uma deterioração da taxa de câmbio. Como resultado, o governo Temer ficou de joelhos e teve de atender a praticamente todas as demandas dos caminhoneiros.

No fim de seu governo, vendo-se novamente isolado, com membros do primeiro escalão do governo iniciando as articulações para a transição de governo — com especial ênfase para o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, uma das principais figuras do chamado Centrão, que iniciará a transição junto de Geraldo Alckmin, vice de Lula — Bolsonaro pareceu tentar reeditar manifestações com o mesmo nível de impacto econômico da greve de 2018, pesando os custos e benefícios de pender para a radicalização ou o conservadorismo. Se não as estimulou diretamente, por outro lado não lhes impôs quaisquer óbices, observando o rumo dos acontecimentos. Fato é que, durante a campanha, o presidente tentou reforçar sua ligação, ultimamente fragilizada, com os caminhoneiros, como fez com bastante êxito durante a greve de 2018, algo que lhe garantiu forte apoio da categoria nas eleições daquele ano. Além disso, Bolsonaro criou um auxílio de R$ 1.000,00 para os caminhoneiros e antecipou o seu pagamento em outubro, tentando assegurar o apoio da categoria nas eleições deste ano. Se isto não foi suficiente para gerar uma nova mobilização patrocinada pelas entidades representativas dos caminhoneiros, em defesa de sua permanência no poder, a atuação dos bolsonaristas nas redes sociais tratou de impulsionar uma mobilização sem o respaldo dessas entidades.

As atuais manifestações de caminhoneiros esclarecem algo que não estava claro para parte da esquerda em 2018, inclusive para o Passa Palavra: que aquela greve uniu interesses corporativos dos caminhoneiros — categoria formada, de um lado, por trabalhadores assalariados e, de outro, por pequenos empresários independentes, comumente chamados no Brasil de “autônomos” — a interesses das empresas de transportes, muitas delas ligadas ao agronegócio, o que explica a articulação, àquela época como hoje, de demandas pragmáticas da categoria com pautas de extrema-direita. Em 2018 chegamos a cogitar da possibilidade de, a partir dessas demandas pragmáticas, corporativas, haver uma guinada à esquerda nas mobilizações, ou então uma convergência com mobilizações de outras categorias de trabalhadores. Essas expectativas foram logo e evidentemente frustradas, uma vez que a convergência entre trabalhadores e patrões, grandes ou pequenos, tende a direcionar qualquer mobilização à direita, não à esquerda.

O resultado é que hoje, uma vez mais, a politização da categoria dos caminhoneiros dá azo a mobilizações de cariz fascista; não mais para levar a extrema-direita ao poder, e sim para tentar evitar que seja apeada do poder. Em vez de afetar as relações de trabalho no setor de transportes, deixando clara a linha que divide horizontalmente trabalhadores e patrões, esta politização tem apenas reforçado a solidariedade vertical entre trabalhadores e patrões, e servido para dotar o bolsonarismo de capacidade de intervenção econômica, como se verifica no presente momento.

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Na noite de segunda-feira, 31 de outubro, a quantidade de bloqueios de estradas chegou ao seu pico, com 421 pontos de obstrução. Antes do pronunciamento de Bolsonaro, ocorrido na terça-feira, 1º de novembro, eram 235 pontos de obstrução. A Polícia Rodoviária Federal (PRF), que durante a votação do dia 30 de outubro realizou uma operação nas estradas para tentar impedir que eleitores, sobretudo da região Nordeste, chegassem aos locais de votação, fazendo ao menos 549 blitze e parando pelo menos 610 ônibus, apenas acompanhava os bloqueios, quando não confraternizava abertamente com os manifestantes. Em discurso direcionado ao movimento, um policial foi filmado dizendo aos manifestantes: “estamos tudo [sic] no mesmo barco. Estamos junto com vocês”, concluindo com uma nada sutil orientação aos manifestantes: que resistissem durante 72 horas, pois nesse meio-tempo Bolsonaro supostamente não poderia se pronunciar. Em outro episódio, policiais rodoviários estaduais foram filmados prestando continência aos manifestantes. Em declarações à imprensa, a PRF dizia aguardar uma decisão judicial que determinasse a liberação das rodovias, tentando disfarçar sua colaboração com os bloqueios, ao mesmo tempo em que, por meio do Twitter, informava os pontos de obstrução e as vias que se encontravam liberadas, coordenando logisticamente as ações dos manifestantes para travarem mais pontos. Em outras palavras, é o eixo exógeno do fascismo aguardando o aval do chefe para prosseguir a escalada golpista, convergindo com o eixo endógeno pressionando por baixo.

Com mais e mais decisões judiciais determinando o desbloqueio das estradas, a PRF agia de maneira diferente em cada lugar: em Palhoça, município do estado de Santa Catarina, por exemplo, mesmo após decisão judicial atendendo a pedido do governo do estado, a PRF deixou o local sem dispersar os manifestantes e desobstruir a rodovia BR-101. Em Luziânia, município do estado de Goiás, a PRF chegou a usar bombas de gás lacrimogêneo para desbloquear a BR-040, mas horas depois os manifestantes iniciaram outra obstrução e a polícia deixou o local, passando a observá-los à distância. O Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou as decisões proferidas pelo ministro Alexandre de Moraes, que determinou a liberação das estradas e autorizou o acionamento das polícias militares estaduais, o que, somado a diversas outras decisões da Justiça Federal em vários estados, aumentou a pressão sobre a PRF, acusada de omissão, fazendo com que pedisse o reforço da Força Nacional. Em São Paulo a tropa de choque da Polícia Militar foi utilizada, no dia 2 de novembro, para desbloquear a Rodovia Castelo Branco. Ao todo, a polícia militar paulista diz ter feito 147 desbloqueios até as 6 horas do dia 2. Os bolsonaristas, entretanto, têm conseguido manter focos de resistência ou iniciar outros bloqueios depois de serem dispersados, na medida em que continuam a haver bloqueios em 11 dos 27 estados da federação.

Os impactos econômicos fizeram-se sentir imediatamente. Os bloqueios levaram, por exemplo, à paralisação das atividades em frigoríficos, sobretudo no estado de Mato Grosso, responsável por 16% da produção nacional. Segundo um representante do setor, todos os estabelecimentos no estado ficaram com 50% da produção comprometida, com prejuízos variando entre R$ 20.000,00 e R$ 200.000,00 por dia de paralisação. Já se fizeram sentir também na indústria de laticínios, que em 2018 teve um prejuízo estimado em R$ 1 bilhão, com 300 milhões de litros de leite descartados. Outro setor já atingido é o dos supermercados, com 70% dos estabelecimentos afetados em pelo menos 7 estados brasileiros. E tudo indica que o prosseguimento dos bloqueios atingirá outros serviços e indústrias, impactando duramente na vida e saúde da população, como nos serviços de saúde: a Associação Brasileira da Indústria Química (ABIQUIM) e a Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica (ABRAMED) têm alertado para o risco de falta de oxigênio, reagentes e contrastes. Os bloqueios também afetaram a produção de vacinas, viagens aéreas, postos de gasolina, levaram à paralisação de plantas de montadoras de veículos, afetaram o escoamento de matérias-primas utilizadas na construção civil e causaram diversos outros problemas.

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É importante salientar o caráter heterogêneo e relativamente difuso dos grupos bolsonaristas que articulam os bloqueios de estradas. Lideranças locais, articulando-se pelas redes sociais, direcionam os manifestantes e coordenam as atividades, dentre elas a logística da recepção de doações (comida, água, etc.). Empresários e Igrejas têm fornecido, por exemplo, banheiros químicos e tendas para a distribuição de mantimentos e alimentos aos manifestantes. Trata-se, na verdade, de verdadeiras acampadas, com famílias inteiras engajadas nos bloqueios.

Quando as primeiras decisões judiciais começaram a determinar a dispersão das manifestações, a identificação dos seus participantes e a aplicação de multas aos responsáveis, foram recebidas com tranquilidade pelos manifestantes, pois duvidavam que as autoridades competentes fossem cumprir tais ordens e reprimir o movimento. Todavia, quando a ordem partiu do ministro Alexandre de Moraes, do STF, que ordenou que as polícias militares estaduais tomassem atitudes para encerrar os bloqueios nas rodovias, e intimou as autoridades responsáveis a reagirem a possíveis casos de omissão, a reação foi contrária. Moraes, que se tornou o arqui-inimigo do bolsonarismo, gerou um ar de indignação nos grupos bolsonaristas, estimulando a pauta de “findar a ditadura do STF”.

O barulho dos protestos e da resistência destes grupos à repressão policial contrastou, inicialmente, com o silêncio do presidente. Bolsonaro no alto, aguardando o desenrolar dos acontecimentos, e abaixo uma divisão de seus aliados em dois campos: por um lado, o fatalismo de parte de sua família, como o senador Flávio Bolsonaro e a primeira-dama Michelle, além da disposição de aliados do Centrão de colaborarem no processo de transição. De outro, figuras do bolsonarismo declarando apoio ou estimulando os bloqueios. É o exemplo de Carla Zambelli, deputada bolsonarista investigada por portar uma arma nas vésperas da votação do segundo turno e perseguir um homem que a teria provocado na rua: num primeiro momento reconheceu a derrota, mas em seguida passou a promover os bloqueios e a desobediência às ordens judiciais. Zé Trovão, ex-caminhoneiro eleito deputado federal, e Gustavo Gayer, um influencer bolsonarista eleito deputado federal, seguiram o mesmo caminho. Nikolas Ferreira, outro influencer, eleito deputado federal com a maior votação obtida por um candidato a este cargo em 2022, também publicou uma declaração interpretada pelos caminhoneiros como um sinal de aprovação às manifestações: “soldado que vai à guerra e tem medo de morrer é um covarde”.

O nível de delírio nos grupos bolsonaristas é tamanho que foi divulgado entre eles que o silêncio do presidente se devia às próprias exigências do art. 142 da Constituição Federal. Se Bolsonaro fizesse qualquer pronunciamento favorável ao movimento, argumentam os mobilizadores, a intervenção militar não iria se concretizar, já que “a Constituição requer que a intervenção seja feita apenas sob livre e espontânea vontade do povo, sem uma liderança institucional”. Todavia, acrescentavam, caso Bolsonaro se pronunciasse e fosse contrário aos bloqueios, os manifestantes, que se autodenominam como “resistência civil”, continuariam nas ruas em prol da tomada de poder pelos militares.

Depois de 44 horas de absoluto silêncio, Bolsonaro fez um pronunciamento ambíguo, de apenas 2 minutos, dizendo serem bem-vindas as “manifestações pacíficas”, desde que não aplicassem os “métodos da esquerda”, “invasão de propriedades, destruição de patrimônios e cerceamento do direito de ir e vir”. Na quarta-feira à noite, 2 de outubro, o presidente fez novo pronunciamento, que parece ser uma concessão à sua base conservadora em detrimento de sua base radical, porém mantendo a ambiguidade ao solicitar o desbloqueio de estradas mas legitimar as mobilizações e incentivar que continuem em outros lugares, como praças, reforçando o movimento já iniciado por parte dos manifestantes, de migrar para a frente dos quartéis.

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Seja como for, apesar da desobstrução de centenas de vias e, agora, das manifestações ambíguas do presidente, os bolsonaristas, como já visto acima, têm demonstrado capacidade de resistência. E os manifestantes vêm se antecipando a possíveis obstáculos à articulação política nas redes sociais e demais plataformas das big techs. Cientes da possibilidade do banimento de grupos no WhatsApp e no Telegram, muitos estão cientes de que precisam migrar para o Signal e/ou utilizar uma VPN. Dizem que é preciso priorizar a criptografia, a discrição e o dinamismo, mostrando superioridade, nesse sentido, em relação às organizações de esquerda, que no Brasil possuem um histórico de desleixo para com as práticas de segurança.

A esquerda, por sua vez, ou os vestígios que dela restaram, pelo menos, divide-se entre aqueles que supõem uma vitória fácil, fiel na coibição de um golpe pelas “instituições”, e aqueles que acompanham atentos os acontecimentos. Os transtornos causados pelos bloqueios, no entanto, forçaram a população a agir, como ocorreu em um ponto de bloqueio em São Mateus, no estado do Espírito Santo, onde populares desfizeram barricadas e conseguiram liberar uma via; ou em Angra dos Reis, com operários voltando do trabalho; ou ainda o caso expressivo de torcidas organizadas que removeram diferentes bloqueios para poder acompanhar seus times. As poucas ameaças feitas por parte da esquerda foram rapidamente condenadas pelo restante dela. De um jeito ou de outro, a esquerda limita-se a observar o fascismo abrir suas asas, paralisada, apegando-se às “instituições democráticas”. Em verdade, essa é uma linha coerente com as ações da esquerda nos últimos anos: mesmo quando considerou que sofria um golpe, ou que havia um genocídio em curso, ou que o fascismo chegava ao poder, o apelo dessas organizações foi apenas o que as instituições do Estado funcionassem corretamente.

Enfim: terá o dia 30 de outubro anunciado dias melhores? Ou um desastre calculado?

13 COMENTÁRIOS

  1. Boa análise,abre possibilidades de pensar as contradição em nosso meio,a distância com o mundo do trabalho,sem respostas e atalhos fáceis em todo o texto. Poderíamos começar a pensar que as tarefas são as básicas: Sair das bolhinhas e do mundo Teletubbies,cair pro meio das contradições de classe,seus conflitos e disputas. Ir para as Ruas, território de disputa por excelência, recuperar a noção de Territórios em disputas,e talvez quem sabe,Refundar o que pensamos que deva ser o campo da Esquerda anticapitalista,em nosso caso

  2. Sem ser falta de visão. Não podemos não potencializar nosso feito. Ganhamos da máquina do Estado nunca usada tão explicitamente e roletada. Ganhamos da máquina poderosa de dele news com a assessoria do Steve Banho. Ganhamos do derramamento do orçamento secreto e outras estratégias como a dia ônibus no Nordeste.
    Temos que ficar vigilantes, mas não super valorizar estas manifestações, ter 2 tres caminhoneiros pagos obstrui a vias e ter pessoas ensandecidas ameaçando e uma polícia reforçando da imagem de um tamanho maior do que é. E a esquerda vai voltar a falar de socialismo, de justiça sócio ambiental, de racismo, patriarcado quando. Ou vai seguir na institucionalidade com o povo abandonado?

  3. A “tarefa” é a de sempre,pensar o conjunto de fenômenos dos últimos anos,as relações de força e as mudanças tão acentuadas no país. Pensar tudo isso,mas passar a limpo a falida imaginação política que nos trouxe até aqui,capaz que foi de desmontar os movimentos e organizações construídas ao longo das décadas anteriores. Pensar como saímos das enrrascadas do Estado/da institucionalidade,com enfase na autonomia da ação. Né mole não o que temos pela frente,mas se não fizermos, só restará as bolhinhas e o calendário eleitoral,nada mais.

  4. Acho que é preciso formular bem sobre o tal campo da esquerda anti capitalista que no Brasil não passa de um grande NADA boiando por aí.

  5. As desmobilizações dos caminhoneiros e/ou donos de empresas nas estradas foram feitas segundo uma lógica antigreve clássica (é só ver como isso se deu aos gritos de “vai trabalhar vagabundo” ou congêneres), sempre alentada pelos setores mais a direita, e quem já participou de movimentos grevistas sabe disso. Isso me leva a crer que foi a direta tradicional quem desmobilizou a extrema-direita e, como sempre, a esquerda tem replicado isso como uma grande vitória. Bem, me parece que a questão agora é uma disputa entre a direita tradicional e uma extrema-direita, contando com aplausos da esquerda/extrema-esquerda.

  6. O tão aguardado relatório do Exército sobre a segurança do processo eleitoral será divulgado amanhã, quarta-feira. Junto aos primeiros dias de silêncio de Bolsonaro sobre o resultado eleitoral, que ajudou a insuflar seus apoiadores arruaceiros, esse tem sido outro “silêncio ensurdecedor” que cumpre o mesmo papel, mas não está sendo muito lembrado. Ao que tudo indica, as Forças Armadas, que insistiram sob a pressão de Bolsonaro a se colocar enquanto entidade fiscalizadora do processo, divulgarão supostas falhas e vulnerabilidades do processo eleitoral, dando caldo para a narrativa de fraude eleitoral que estão promovendo nas manifestações em frente aos quartéis do Exército. Eles resistiram em divulgar os resultados da auditoria após o primeiro turno, em confronto com o TSE que solicitou a divulgação, e nem mesmo chegaram a divulgar qualquer resultado parcial das apurações, muito provavelmente esperando o desenrolar dos acontecimentos a fim de encontrar a melhor forma de se posicionar para fortalecer o bolsonarismo. Bolsonaro, aliás, já sabe o conteúdo deste relatório, e deve ter articulado este movimento de forma conjunta. O jornal Poder 360 antecipa informações que serão divulgadas:

    https://www.poder360.com.br/eleicoes/defesa-enviara-relatorio-sobre-eleicao-ao-tse-em-9-de-novembro/

    E sobre as manifestações golpistas: apesar do fim dos bloqueios de rodovias e estradas, o movimento tem demonstrado força e resiliência em seus atos em frente aos quartéis, onde houve o comparecimento de multidões em todo o país neste final de semana e início de semana. Fatos que geraram inclusive as cenas de confronto com policiais que foram divulgadas ontem. Dá para ver que são pessoas que realmente acreditam numa conspiração contra Bolsonaro, e estão mesmo dispostas a arriscar suas vidas em defesa do presidente e no ataque ao Judiciário. Não à toa nos grupos de divulgação e comunicação do movimento estão fazendo muitas menções à rebelião e violência dos protestos na Ucrânia em 2014 (Euromaidan), pois é esse o tom que querem dar daqui em diante. Alguns acompanharam atentamente o movimento de divulgação e comunicação virtual que fizeram nesta última semana pós-eleição. Eles tem uma dinâmica de comunicação e colaboração muito eficiente, pois conseguem migrar milhares de pessoas entre grupos de aplicativos de conversa em curtíssimo tempo, o que impede que sua atividade seja impedida pelo bloqueio dos canais de comunicação pela Justiça. E assim suas narrativas tem se espalhado e atingido enorme público — pessoas “aleatórias” que tenho entre os contatos chegaram a compartilhar imagens do movimento.

    Do lado da mídia tradicional, a opção para reprimir os protestos foi fazer uma divulgação marginal no noticiário, mas na emissora Jovem Pan, aliada do bolsonarismo, eles tem obtido notória promoção e divulgação, além da defesa por parte da maioria dos comentaristas. Sabemos também da simpatia das forças de segurança pelo movimento, ontem mesmo o Exército solicitou infraestrutura ao governo do DF para que os manifestantes que protestam em frente quartel-general tenham sua “segurança garantida”.

    https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/11/exercito-pede-ao-df-ambulancia-limpeza-e-reboque-em-area-de-ato-antidemocratico-em-brasilia.shtml

    Nos EUA, a narrativa da fraude eleitoral foi bem sucedida, com mais de 40% da população americana acreditando que as eleições de 2020 foram fraudadas e metade acreditando que as eleições de meio de mandato de hoje (08/11) serão afetadas por fraudes, inclusive com eleitores republicanos incitando o uso de armas de fogo para retaliar qualquer “tentativa de fraude”. Contudo, a expectativa é de que os republicanos adquiram a maioria na Câmara dos Representantes.

  7. Afinal o relatório do Ministério da Defesa, elaborado por membros das Forças Armadas, foi divulgado. E ele é ambíguo o suficiente para, ao mesmo tempo, estimular uma nota do TSE dizendo que o relatório não apontou qualquer fraude e, por outro lado, estimular os delírios dos bolsonaristas radicais, quando sugere aperfeiçoamentos, sobretudo para evitar a possibilidade de “acesso à rede, durante a compilação do código-fonte e consequente geração dos programas”, algo que tem sido repetido por Bolsonaro e os bolsonaristas diariamente. Assim, o
    relatório favorece, ao mesmo tempo, aquelas duas linhas de ação referidas no editorial (a institucional e radicalização nas ruas).

  8. E na esteira dos últimos comentários: para evitar ambiguidades em sua estratégia, o Ministério da Defesa publicou hoje uma nova nota em que não diz descartar a possibilidade de fraude nas eleições de 2022, concluindo que esta à disposição para “manter a ordem no país”. Ou seja, caso seja necessário e haja as condições, eles estarão aptos a chancelar o golpe de estado que os bolsonaristas desejam promover.

    https://www.gov.br/defesa/pt-br/centrais-de-conteudo/relatorio-das-forcas-armadas-nao-excluiu-a-possibilidade-de-fraude-ou-inconsistencia-nas-urnas-eletronicas

  9. A meu ver, as Forças Armadas tentam, por meio dessa nota, equilibrar-se entre a simpatia pelo bolsonarismo – o que é mais do que natural, pois estamos falando das Forças Armadas, que se situam, evidentemente, no lado direito do espectro político, hoje hegemonizado pelo bolsonarismo – , e a tentativa de canalizar a insatisfação dos bolsonaristas para dentro das instituições: “reiteramos a crença na importância da independência dos Poderes, em particular do Legislativo, Casa do Povo, destinatário natural dos anseios e pleitos da população”. O que estão dizendo é, basicamente, “segue o jogo”. Lula vai tomar posse e quem quiser fazer-lhe oposição, que o faça pela via institucional. Por outro lado, quando mandam um recado ao Judiciário, criticando “possíveis arbitrariedades ou descaminhos autocráticos”, estão exigindo que o Judiciário não imponha obstáculos jurídicos a essa inserção institucional, nem à atuação do bolsonarismo radical nas ruas. Penso, por fim, que estão deixando claro que qualquer ação das Forças Armadas – para um lado, impedindo a transferência de poder a Lula, e sobretudo para outro, intervindo contra os manifestantes – está desde já descartada. É o que me parece.

  10. Exatamente Fagner. Só que o que está na mesa de negociação, como moeda de troca para a desmobilização e dispersão dos atos, que apresenta tendências radicais ao redor do Brasil, é a manutenção das Forças Armadas nas instituições, ou ao menos alguns representantes. É um fato, eles não querem desembarcar do Estado, portanto querem se tornar mediadores do conflito latente dos bolsonaristas – que aos poucos estão superando seu líder carismático -com as instituições democráticas, aqui, o judiciário.

  11. Os manifestantes em frente aos quartéis e que bloquearam centenas de rodovias, estradas e vias nas últimas semanas clamam claramente por um golpe de Estado pelas Forças Armadas. Não vejo nenhuma pauta “intermediária” levantada nestes protestos. Logo, a posição ambígua das Forças Armadas fortalece os radicais a favor do golpe de Estado, pois não há meio termo possível sobre essa questão, e considerá-la uma pauta legítima já indica que eles não descartaram um golpe de Estado. Nas mídias bolsonaristas, a possibilidade da concretização deste golpe de Estado só foi reforçada por esses últimos posicionamentos dos militares, apesar de que na grande mídia não alinhada ao bolsonarismo, a estratégia tenha sido, desde o princípio, não dar muito espaço a este movimento e também interpretar de forma mais favorável os últimos acontecimentos.

    Vamos aos fatos:

    1) O movimento de paralisação de rodovias e estradas somente foi finalizado após ordem do seu líder, Jair Bolsonaro. Basta comparar as quantidades diárias de bloqueios após os dois pronunciamentos que ele realizou, especialmente o segundo em que afirmou explicitamente para não paralisarem vias de trânsito. Se ele não tivesse feito seus pronunciamentos, talvez os bloqueios continuassem massivamente até agora.

    2) Ao mesmo tempo o presidente não desistiu do movimento golpista e disse que os manifestantes poderiam continuar se manifestando por outros meios, como o comparecimento aos quartéis. Ou seja, para ele é positivo manter este movimento mobilizado para que espere os acontecimentos e possa contribuir para qualquer cenário eventual.

    3) Mesmo que os bolsonaristas aceitem realizar a transição de governo, nada impedirá que o movimento reacenda em outra altura com o objetivo de derrubada do novo governo através de um golpe de Estado, como no cenário em que Jair Bolsonaro e sua família sejam investigados e condenados pela Justiça, podendo trazer sua inelegibilidade inclusive. Para os radicais, esta situação será uma senha para que tentem novamente, e com total aval de seu líder, uma empreitada golpista. Não é possível saber de antemão os desdobramentos deste cenário.

    4) Não podemos menosprezar o que ocorreu na semana após a eleição. Os bolsonaristas conseguiram de fato paralisar o país e só não tivemos mais impactos econômicos pela mudança de curso do próprio movimento, pois a polícia não estava disposta a reprimi-lo e tudo indica que permanecerá assim em novas empreitadas. Caso iniciem os trancamentos de novo, os prejuízos poderão ser ainda piores. Neste sentido, os militantes nem precisam da colaboração ativa das forças de segurança para conquistar seus objetivos. Eles por si só têm os meios de gerar caos social e econômico suficiente para dar base a uma mudança de regime político, caso os seus líderes deem sua chancela e se articulem conjuntamente.

    5) Temos muitos eventos ainda ocorrendo em paralelo. Investigações estão em curso sobre diversos atores golpistas bolsonaristas, incluindo o chefe da PRF, políticos bolsonaristas, jornalistas, youtubers, empresários… A reação desses atores frente à repressão também poderá ter influência sobre os próximos desdobramentos políticos do país.

    6) Quem acompanhou o movimento de impeachment da Dilma sabe que no início a estratégia era fazer manifestações semanais, geralmente aos finais de semana, e ir cozinhando o impedimento no fogo baixo até que a pauta se massificasse e conseguisse legitimidade social suficiente para manobras parlamentares. Ao que parece, o movimento golpista está adotando uma estratégia semelhante e, seguindo a sequência de protestos do último final de semana, estão repetindo a tática neste final de semana com feriado prolongado, com financiamento de excursões até Brasília.

    7) Esclarecendo ainda mais o porquê dos militares darem um afago aos golpistas com sua nova nota publicada, que por si só é uma declaração desnecessária, vamos ao texto:

    O primeiro parágrafo ressalta o compromisso dos militares com o “Povo Brasileiro” (manifestantes):
    “Acerca das manifestações populares que vêm ocorrendo em inúmeros locais do País, a Marinha do Brasil, o Exército Brasileiro e a Força Aérea Brasileira reafirmam seu compromisso irrestrito e inabalável com o Povo Brasileiro…”

    O segundo parágrafo é sobre a garantia da livre manifestação de pensamento:
    “A Constituição Federal estabelece os deveres e os direitos a serem observados por todos os brasileiros e que devem ser assegurados pelas Instituições, especialmente no que tange à livre manifestação do pensamento…”

    O terceiro parágrafo é para ressaltar a legitimidade dos protestos contra o Judiciário e, portanto, legitimar o movimento golpista:
    “Nesse aspecto, ao regulamentar disposições do texto constitucional, por meio da Lei nº 14.197, de 1º de setembro de 2021, o Parlamento Brasileiro foi bastante claro ao estabelecer que: “Não constitui crime […] a manifestação crítica aos poderes constitucionais nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais, por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais””

    O quarto parágrafo critica a restrição de direitos, mas atenção especial para o fato de que os primeiros objetos de crítica são os agentes públicos:
    “Assim, são condenáveis tanto eventuais restrições a direitos, por parte de agentes públicos, quanto eventuais excessos cometidos em manifestações que possam restringir os direitos individuais e coletivos ou colocar em risco a segurança pública; bem como quaisquer ações, de indivíduos ou de entidades, públicas ou privadas, que alimentem a desarmonia na sociedade.”

    O quinto parágrafo fala sobre a defesa dos militares de que controvérsias sejam resolvidas por meio do estado democrático de direito. Mas trata-se apenas de uma estratégia bolsonarista para travestir-se de legalidade em sua pauta golpista. Lendo atentamente o parágrafo, eles estão dizendo para que parlamentares ajam em favor dos manifestantes e de suas “pautas legítimas”, e para que o Judiciário pare de intervir nesta discussão com as ações de repressão que tem tomado:

    “A solução a possíveis controvérsias no seio da sociedade deve valer-se dos instrumentos legais do estado democrático de direito. Como forma essencial para o restabelecimento e a manutenção da paz social, cabe às autoridades da República, instituídas pelo Povo, o exercício do poder que “Dele” emana, a imediata atenção a todas as demandas legais e legítimas da população, bem como a estrita observância das atribuições e dos limites de suas competências, nos termos da Constituição Federal e da legislação.”

    O sexto parágrafo é uma continuação da ideia desenvolvida no quinto, de que parlamentares devem agir para frear as “arbitrariedades ou descaminhos autocráticos” que ferem a “Liberdade” do povo brasileiro, referindo-se implicitamente ao Judiciário:

    “Da mesma forma, reiteramos a crença na importância da independência dos Poderes, em particular do Legislativo, Casa do Povo, destinatário natural dos anseios e pleitos da população, em nome da qual legisla e atua, sempre na busca de corrigir possíveis arbitrariedades ou descaminhos autocráticos que possam colocar em risco o bem maior de nossa sociedade, qual seja, a sua Liberdade.”

    O sétimo parágrafo faz referência ao papel que as Forças Armadas reivindicam para si de Poder Moderador, permanecendo “vigilantes, atentas e focadas em seu papel constitucional na garantia de nossa Soberania, da Ordem e do Progresso, sempre em defesa de nosso Povo.”

    O último parágrafo conclui a ideia levantada pelo sétimo, com observação de que os militares primam pela “Legalidade, Legitimidade e Estabilidade”, que nada mais são do que termos guarda-chuvas, que mesmo os golpistas devem concordar, pois acreditam que agem dentro destes valores.

    8) Por conta de tudo isso, hoje não posso descartar a possibilidade de um golpe de Estado com participação das forças de segurança no horizonte do novo governo. Não falo de sua iminência, mas da sua simples possibilidade.

  12. Davi,

    Embora de fato a nota dos militares contenha uma concepção das Forças Armadas enquanto “poder moderador”, não se pode deixar de notar que ela descarta qualquer intervenção militar, seja contra a transferência do poder a Lula, seja contra os manifestantes (se os manifestantes não tivessem desbloqueado as estradas e a polícia tivesse mantido o apoio ativo e passivo aos bloqueios, a única alternativa seria uma intervenção militar, e a meu ver o pronunciamento dos militares foi no sentido de que isso está fora de cogitação).

    Eu vejo essa nota como algo equivalente ao tweet do general Villas Bôas às vésperas do julgamento do pedido de habeas corpus de Lula em 2018. Esse tweet foi posteriormente justificado, num livro escrito pelo general, como uma tentativa de se antecipar a possíveis “consequências do extravasamento da indignação que tomava conta da população”. Villas Bôas escreveu que “tínhamos [o Alto Comando das Forças Armadas] aferição decorrente do aumento das demandas por uma intervenção militar”, e por isso “era muito mais prudente preveni-la do que, depois, sermos empregados para contê-la”. Ou seja, se o que Villas Bôas escreveu é verossímil, o tweet em questão, antes de uma ameaça de golpe, foi uma pressão sobre o Supremo Tribunal Federal para que não tomasse uma decisão que jogasse mais lenha na fogueira, ou seja, causasse uma rebelião popular violenta, obrigando os militares a terem eventualmente de intervir. Eu acho que os militares tentam de novo agora, fazendo uso desse “poder moderador” que atribuem a si mesmos, dar uma direção à luta política que “não os obrigue” a uma intervenção militar: afirmam que questões políticas devem ser resolvidas no interior das “instituições”, nomeadamente o Legislativo, e que eventuais “excessos” dos manifestantes devem ser reprimidos, mas as manifestações, desde que não resultem em violência de rua, são “legítimas” e o Judiciário deve abster-se de usar medidas de exceção contra os bolsonaristas. Deve-se ter em conta ainda que – num dos períodos de maior tensão entre Bolsonaro e os demais poderes, tanto em nível federal como estadual e municipal – Bolsonaro pressionou o então ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, em março de 2021, para que mediasse uma intervenção das Forças Armadas contra as medidas de isolamento e distanciamento social, recebendo uma resposta negativa. Bolsonaro então demitiu Azevedo e, em protesto, os comandantes das três forças imediatamente se demitiram. Não vejo no horizonte, portanto, a possibilidade de um golpe militar. Entretanto, compare-se o pronunciamento das Forças Armadas com as ações e omissões das polícias, tanto militares quanto civis, em nível federal e estadual: o risco aí parece muito maior, sobretudo se relembrarmos o motim de policiais militares no Ceará em 2020, onde o senador e ex-governador do estado Cid Gomes foi baleado por policiais militares enquanto avançava sobre eles com uma retroescavadeira [bulldozer].

    Por outro lado, acho que o próprio Bolsonaro tende a agir, agora que será sucedido por Lula, como uma espécie de vertedouro: caso o próximo governo, e sobretudo os tribunais, trabalhem para continuar isolando e eventualmente eliminar do tabuleiro político o movimento radical por ele liderado, Bolsonaro abrirá as comportas da represa e liberará a massa bolsonarista enraivecida nas ruas, colocando contra a parede o governo, os tribunais e os próprios militares, que se arrogam a função de mantenedores da ordem. Caso isso não ocorra, Bolsonaro continuará agindo dentro da institucionalidade – não necessariamente dentro da legalidade –, criando constrangimentos e tentando obstruir o governo sempre que possível, minando sua governabilidade e, é claro, produzindo desinformação. Episódios de violência e intimidação aqui e ali (como agora em Nova Iorque: https://www.poder360.com.br/justica/gilmar-e-lewandowski-sao-xingados-na-saida-de-hotel-em-ny/ e https://www.poder360.com.br/justica/barroso-e-abordado-por-brasileira-em-ny-nao-seja-grosseira/) representariam, assim, uma tentativa de manter a chama do radicalismo acesa, mas sob controle, como numa forja, Bolsonaro tendo as mãos sobre o fole.

    *

    Ainda a propósito da atuação de outras “forças armadas” para além das Forças Armadas, convém observar a crescente militarização das guardas municipais, que antes tinham apenas a função de zelar pelo patrimônio e garantir a segurança em prédios municipais, mas há vários anos têm sido empregadas cada vez mais no policiamento ostensivo, inclusive com a criação de “grupos táticos” – as ROMUs, Rondas Ostensivas Municipais – fortemente armados e treinados por batalhões de operações especiais das polícias militares, etc. Ver a esse respeito, por exemplo: https://www.seculodiario.com.br/seguranca/por-que-e-problematica-a-militarizacao-das-guardas-municipais. E sobre o risco de participação das guardas municipais num eventual levante/tentativa de golpe bolsonarista, ver: https://g1.globo.com/al/alagoas/noticia/2022/11/02/video-guardas-municipais-de-plantao-sao-filmados-participando-de-ato-bolsonarista-em-maceio.ghtml. Por fim, uma busca por “guarda municipal” no buscador do Passa Palavra ajuda a situar o problema do ponto de vista da repressão direta a mobilizações da classe trabalhadora (ver: https://passapalavra.info/?s=guarda+municipal). Além disso, como analisado por Manolo aqui: https://passapalavra.info/2018/11/123415/, deparamos com o problema da forte expansão das empresas de segurança privada no Brasil, e o próprio Passa Palavra mencionou aqui: https://passapalavra.info/2022/10/146248/ que alguns dos maiores empresários do ramo fizeram doações muito expressivas para a campanha de Tarcísio de Freitas – ex-ministro da Infraestrutura de Bolsonaro – na disputa pelo governo estadual paulista. Creio que o maior risco encontra-se justamente aí: polícias, guardas municipais e empresas de segurança privada, para além dos CACs (caçadores, atiradores e colecionadores de armas) e seus clubes de tiro.

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