Por Leo Vinicius Liberato
O artigo é dividido em cinco partes (2, 3, 4 e 5)e traz os seguintes tópicos:
- Introdução
- O conceito de assédio organizacional
- Reposicionamento e realocação dos indesejados
- Degradação das condições de trabalho
- A difusão e normalização de abusos pela hierarquia
- Gestão por medo
- A racionalização do trabalho sujo de assédio organizacional
- Considerações finais
Introdução
A Fundacentro é uma fundação federal cuja missão é a pesquisa e difusão de conhecimento em Segurança e Saúde no Trabalho (SST). Sua sede é em São Paulo e, além da sede, possui atualmente 12 Unidades Descentralizadas em diferentes cidades do Brasil.
Anteriormente abordei o assédio institucional ao qual a Fundacentro está submetida desde 2019[1]. Trata-se de assédio institucional de natureza organizacional. Portanto, o assédio institucional se cruza com a existência de um assédio moral organizacional (o qual denominaremos apenas por assédio organizacional). Ambos têm como origem o objetivo de aplicar à Fundacentro uma lógica unidimensional, baseada em valores financeiros e econômicos. Valores esses que, uma vez reinando absolutos, negam a própria missão da Fundacentro, a atividade e saúde de seus servidores. Mas as consequências não se limitam à imposição de uma lógica economicista totalitária.
Em 2019 a Fundacentro foi de certa forma apoderada por agentes que vislumbraram usá-la para dar continuidade às reformas trabalhista e previdenciária, isto é, dar continuidade ao rebaixamento do custo da força de trabalho e ao corte de benefícios previdenciários dos trabalhadores. Ao mesmo tempo que buscavam fazer um uso dela estranho à missão institucional, davam curso a um processo agressivo de redução e enxugamento. Esse é o contexto em que emerge e se aprofunda o assédio organizacional que apresentaremos.
O período em que os servidores da Fundacentro passaram a ser submetidos ao assédio organizacional se inicia com a presidência de Marina Brito Battilani em 2019, prossegue com sua substituição na presidência por Felipe Mêmolo Portela no mesmo ano, e tem continuidade com a substituição dele por Luciana Ferrari Siqueira na presidência da Fundacentro em 2022. Durante todo esse período, Paulo César Vaz Guimarães tem sido assessor da presidência e chefe de gabinete da presidência, e Diego Fernando Ferreira de Oliveira tem sido chefe do setor de Recursos Humanos (setor esse que mudou de nome duas vezes ao longo desses anos, tendo seu chefe ampliado poder e recebido aumento do cargo em comissão).
Nosso objetivo reportando o caso de assédio organizacional na Fundacentro, que se iniciou na gestão que tomou posse em 2019, é contribuir para o entendimento dos processos e instrumentos dessa forma de assédio, principalmente no serviço público. Contribuir também para que esse assédio em curso cesse e para pensarmos formas de evitar que volte a se repetir, tanto na Fundacentro quanto em outros locais.
Os fatos aqui expostos são comprováveis por documentos e/ou por testemunhas. O exposto aqui não esgota evidentemente todos os fatos e perspectivas sobre o assédio organizacional na Fundacentro. Certamente outros servidores, de diferentes Unidades e setores, vivenciaram e testemunharam outras situações e fatos que também caracterizam o assédio organizacional na Fundacentro. Os documentos apresentados em anexo [a partir da 2a parte] muitas vezes são ilustrativos, para que o leitor saiba que os fatos aqui expostos não são inventados por quem escreve. Por vezes outros documentos ou testemunhos poderiam ser juntados para comprovar as situações e fatos que exponho ao longo do texto.
Além de práticas características de assédio organizacional, como, por exemplo, a utilização de instrumentos de gestão por medo, a retirada de instrumentos de trabalho e o reposicionamento degradante dos servidores, o caso atual da Fundacentro nos permite pensar outros fenômenos relacionados ao assédio organizacional. Entre eles o papel importante que a chefia ou diretoria de Recursos Humanos joga no estabelecimento dessa modalidade de assédio em processos de enxugamento e desestruturação no setor público. Outro fenômeno observável é a mistura ou a indiscernibilidade, a partir de certo ponto, entre o uso de poder abusivo para alcançar objetivos, e a manutenção do poder abusivo como fim em si mesmo.
Como dito anteriormente, as consequências do assédio institucional e organizacional na Fundacentro não se limitam à imposição de uma lógica financeira, ao enxugamento, à deterioração das condições de trabalho, ao sofrimento e adoecimento de servidores e ao desvirtuamento da missão institucional. Os agentes que vieram com objetivos estranhos à Fundacentro tiraram proveito de uma situação latente há muito tempo na instituição. Houve uma simbiose entre os objetivos político-econômicos de quem se apoderava da Fundacentro, e a busca por parte de alguns servidores da casa de um exercício de poder abusivo sobre os outros servidores. Houve uma simbiose entre objetivos economicistas externos e objetivos de uma parcela, pequena mas operativa, de servidores movidos por ressentimento e/ou por interesses que remetem ao exercício de poder e ganhos financeiros. Essa simbiose gerou um ambiente de trabalho soturno e adoecedor, em que a Fundacentro parece existir atualmente para servir as pessoas em cargos comissionados e ao gozo de poder delas sobre o conjunto dos servidores da casa.
O conceito de assédio organizacional
Em empresas privadas o assédio organizacional costuma estar relacionado ao objetivo de alcance de metas de produção, como ocorre com certa frequência em bancos. No caso do serviço público é provável que o assédio organizacional esteja mais relacionado ao objetivo de enxugamento do órgão ou a uma reestruturação buscando mudar o objetivo institucional do mesmo. É este último caso que está na origem do assédio organizacional na Fundacentro.
Na definição de Gosdal e Soboll, o assédio moral organizacional se caracteriza por:
um conjunto sistemático de práticas reiteradas, inseridas nas estratégias e métodos de gestão, por meio de pressões, humilhações e constrangimentos, para que sejam alcançados determinados objetivos empresariais ou institucionais, relativos ao controle do trabalhador (aqui incluído o corpo, o comportamento e o tempo de trabalho), ou ao custo do trabalho, ou ao aumento de produtividade e resultados, ou à exclusão ou prejuízo de indivíduos ou grupos com fundamentos discriminatórios[2].
Na definição do Conselho Econômico e Social Francês, reproduzida por Adriane Araújo:
Constitui assédio moral no trabalho todas as atitudes repetidas, cuja finalidade é a degradação das condições humanas, sociais, materiais de trabalho de uma ou mais vítimas, de modo a violar seus direitos e sua dignidade, podendo alterar gravemente seu estado de saúde e podendo comprometer seu futuro profissional[3].
Um dos elementos frequentes no assédio organizacional é a degradação das condições de trabalho[4]. Esse aspecto do assédio organizacional é particularmente presente em processos de fusão de empresas e órgãos, com enxugamento do quadro, no qual há objetivo de redução de custos e/ou de estimular processos de demissão “voluntária” e de aposentadoria. A deterioração das condições de trabalho muitas vezes passa pela privação de acesso a instrumentos de trabalho, como telefone, computador, entre outros[5]. Deve-se acrescentar ainda a privação dos recursos imateriais necessários para o desenvolvimento do trabalho, o que significa uma organização do trabalho adequada, normas e formas de controle que possibilitem ou sejam compatíveis com o desenvolvimento da atividade. Outro aspecto do assédio organizacional são as estratégias abusivas de gestão, dentre as quais a gestão por injúria, gestão por estresse e gestão por medo[6].
Vinicius Cerqueira aponta que problemas de comunicação como a falta de diálogo e de espaços de fala democráticos, com informes de cima para baixo sem possibilidade de questionamento, favorecem a ocorrência de assédio organizacional, levando à insegurança dos trabalhadores[7].
É frequente que, quando o objetivo dos gestores é a redução de funcionários e se “desfazer” de funcionários indesejados por algum motivo, o assédio organizacional se expresse também na forma de reposicionamento e realocação desses trabalhadores, seja no organograma ou fisicamente. Nas palavras de Adriane Araújo, muitas vezes são postos em
locais em que ficam expostos aos demais trabalhadores e deslocados do organograma operacional de forma a serem identificados como menos relevantes ou inúteis. Os trabalhadores desajustados às normas da organização são assim remanejados para setores menos valorizados na empresa ou simplesmente a outro setor em que são rebaixados de função, mesmo que a designação e a remuneração sejam as mesmas[8].
Araújo (2006) ressalta que “o posicionamento do trabalhador na organização espelha o reconhecimento de seu valor dentro do ambiente de trabalho”[9], e por isso é frequente em situações de assédio que os trabalhadores assediados sejam reposicionados no organograma e/ou mudados de salas e locais. O local do trabalhador, seja no ambiente físico, seja no organograma, está vinculado à dinâmica de reconhecimento e valorização. E a dinâmica do reconhecimento, por sua vez, está vinculada à construção da identidade do sujeito. O não reconhecimento tem potencial de abalar a identidade construída através do trabalho, e, seguindo a psicodinâmica do trabalho, “não há crise psicopatológica que não esteja centrada numa crise de identidade”[10]. Por isso, Lis Soboll afirma que “para a compreensão da relação saúde-doença diante do assédio moral e organizacional no trabalho é essencial abordar a dinâmica intersubjetiva da identidade no trabalho”[11].
É importante ressaltar que muitas práticas e ações que caracterizam o assédio organizacional, isoladamente podem ser consideradas normais, ou erros normais e inconveniências que eventualmente acontecem nas organizações. É o contexto, a recorrência, a forma de execução e/ou as circunstâncias de certas práticas e ações que caracterizam o assédio e que caracterizam também essas ações e práticas como de assédio.
Como destaca Lis Soboll, o assédio organizacional é racionalizado e normalizado pelos gestores, e por vezes até mesmo por trabalhadores. Essa racionalização ocorreria a partir de um discurso baseado numa razão e necessidade econômica ou de eficiência[12]. O assédio organizacional costuma ter como raiz, no mundo do trabalho atual, uma organização do trabalho construída a partir de valores unicamente financeiros.
A violência está na forma de organização do trabalho, que impõe a lógica financeira e econômica como único código válido, desrespeitando os limites do próprio trabalho, as necessidades e os valores humanos e sociais. O assédio organizacional é a prática da violência que utiliza aparatos, políticas e a estrutura organizacional ou gerencial, de forma sutil ou explícita[13].
No contexto em que um valor único é perseguido pela alta gestão, como a redução de custo, “difunde-se a ideia de que tudo é permitido para se chegar aos objetivos da empresa, e os chefes são estimulados a cometer abusos, perseguições, cobranças violentas que redundem em assédio moral”[14]. Trata-se de mecanismo de difusão da arbitrariedade do alto a baixo na hierarquia que nos remete à questão do “guarda da esquina”. No emblemático caso da France Télécom, no qual 60 suicídios ocorreram entre 2006 e 2009 devido ao assédio organizacional, os gerentes mais abaixo na hierarquia foram encorajados a deixar de lado os escrúpulos, sendo treinados em táticas de desestabilização para atingir os objetivos de enxugamento que lhes eram dados. Táticas essas que incluíam retirar instrumentos de trabalho, rebaixar colegas e oferecer incentivos financeiros. Na sentença dada pelo Juiz no caso da France Télécom, aparece outro aspecto do assédio organizacional: o abuso que fere a dignidade dos trabalhadores; a extensão da degradação das condições de trabalho que vão além do exercício normal do poder gerencial[15].
Nos processos de enxugamento e redução de custos com funcionários, quando existe estabilidade do emprego como no caso dos servidores públicos, a tendência é que o assédio seja maior, uma vez que demitir o trabalhador sem justa causa não é possível.
Notas
[1] LIBERATO, LEO V. M. O Assédio Institucional na Fundacentro. Afipea, Nota Técnica 26, 2022. Disponível em: https://afipeasindical.org.br/content/uploads/2022/06/NT_26_Assedio_Institucional_na_Fundacentro.pdf
[2] GOSDAL, Thereza Cristina; SOBOLL, Lis Andrea Pereira, et al. Assédio moral organizacional: esclarecimentos conceituais e repercussões. In: SOBOLL, Lis Andrea Pereira; GOSDAL, Thereza Cristina. Assédio moral interpessoal e organizacional. São Paulo: Ltr, 2009, p. 37.
[3] ARAÚJO, Adriane R. O Assédio Moral Organizacional. Dissertação. Mestrado em Direito. Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2006, p. 94.
[4] SOBOLL, Lis A. P. Assédio Moral/Organizacional: uma análise da organização do trabalho. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008; e Araújo op. cit.
[5] SOBOLL op. cit.; Araújo op. cit.
[6] SOBOLL op. cit.
[7] CERQUEIRA, Vinicius da S. Assédio Moral Organizacional nos Bancos. Dissertação. Faculdade de Direito. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.
[8] ARAÚJO op. cit., p. 113.
[9] ARAÚJO op. cit., p. 113.
[10] DEJOURS, Christophe. A Banalização da Injustiça Social. Rio de Janeiro FGV, 1999, p. 34.
[11] SOBOLL op. cit., p. 148, grifo da autora.
[12] SOBOLL op. cit.
[13] SOBOLL op. cit., p. 126.
[14] CERQUEIRA op. cit., p. 31.
[15] SCANDELLA, Fabienne. How France Télécom broke the law. Hesmag, n. 21, spring-summer, 2020, pp. 47-50.
Leo Vinicius Liberato é tecnologista da Fundacentro, doutor em Sociologia Política.
Ilustram o texto obras de Victor Brauner (1903-1966)